Justiça com as próprias mãos: prática persiste em Alagoas, onde, em menos de dez anos, 720 casos com 129 mortes foram registrados

 

Em menos de dez anos, entre 2015 e o dia 10 de setembro de 2024, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB Alagoas registrou 720 casos de justiçamento, o ato de “fazer justiça com as próprias mãos”, no estado, resultando em 129 mortes (linchamento).

Longe de arrefecer, a prática resiste e persiste. Em um recorte mais recente, somente no dia 7 deste mês, três casos foram registrados em Alagoas, todos eles na capital, deixando uma pessoa morta e duas feridas.

No primeiro caso, um motociclista foi morto a pedradas, após roubar o celular de um casal que trafegava de carro, no Benedito Bentes. No segundo, um condutor alcoolizado foi agredido por populares após atropelar e matar um homem que caminhava pelo acostamento com a esposa, no Cidade Universitária.

No terceiro, um homem ficou gravemente ferido após ter sido supostamente confundido com um ladrão de bicicleta.  Ele foi atingido por dois disparos de arma de fogo e atacado com vários golpes de faca e pau. O caso aconteceu no Conjunto Otacílio de Holanda, no Tabuleiro do Martins.

As ocorrências integram os dados da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB Alagoas, apontando que, em 2024, já foram registrados 39 casos desse tipo, tendo nove deles resultado em morte.

Dificuldades para identificar “justiceiros”

Entrevistada pelo CadaMinuto, a advogada Daniela Lucena, presidente da Comissão, destaca que, em menos de um mês (entre a metade de agosto e a primeira semana de setembro) o número de casos cresceu de 32 para 39, e de sete para nove mortes.

Uma vez que, nos boletins de ocorrência referentes aos casos de justiçamento citados no começo da reportagem não havia informações sobre prisões de possíveis suspeitos, Daniela explicou que os dados sobre os indiciamentos são de competência da Secretaria de Segurança Pública, ressaltando as dificuldades para identificação dos responsáveis pelas agressões.

“A Comissão trabalha oficiando os órgãos responsáveis, inclusive a SSP, para verificar se foi instaurado inquérito policial e se as investigações resultaram na identificação dos supostos responsáveis. Nosso trabalho também inclui o atendimento aos familiares das vítimas, inclusive ofertando acompanhamento psicológico, pois a Comissão possui uma parceria com o curso de psicologia do Cesmac para que consiga realizar esses atendimentos”, explicou.

A presidente da Comissão frisou que, embora seja difícil identificar os responsáveis, os vídeos gerados com o aumento do uso de smartphones e  do uso câmeras de segurança patrimonial, muitas vezes têm ajudado na identificação dos envolvidos.

“Por ser um crime que possui múltiplos autores, muitas vezes se torna difícil a resolução pela polícia e pelas autoridades competentes, visto que a Justiça necessita individualizar as responsabilidades. As imagens colhidas no local do fato aumentam as chances da polícia conseguir identificar os responsáveis, porém, é difícil saber qual foi o grau de responsabilidade de cada indivíduo, isto é, saber exatamente quem deu uma paulada, uma pedrada, um chute, bem como, se a soma das ações teve como resultado a morte”, completou.

Quando as agressões terminam em morte, se configuram como linchamento.

Entre 2015 e 2024

Em todo o ano passado a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos contabilizou 79 casos. Já entre os anos de 2015 a 2023, o recorde de casos de justiça com as próprias mãos em Alagoas foi em 2019, com 123 ocorrências. Em relação ao número de mortes, 2023 foi o ano com mais registros: 30.

“O justiçamento ocorre porque as pessoas ficam muito revoltadas com algumas situações, principalmente quando são alvos de crimes, como roubos e furtos. O discurso é o de que essas pessoas estão fazendo justiça. É uma ideia falsa de que estão punindo um criminoso, praticando a tortura e, muitas vezes, até matando a vítima”, argumentou o advogado Ronaldo Cardoso, também integrante da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, por meio da assessoria de Comunicação da OAB-AL.

Ele ressalta que, na maioria dos casos, não há sequer comprovação de que foi a pessoa agredida que cometeu o crime.

“Ela pode ser confundida com outra pessoa. Quando um caso chega ao nosso conhecimento, realizamos um trabalho de conscientização e pedimos aos órgãos competentes que investiguem a situação. Esse é um crime que não macula somente a vítima, mas todo um ideal de justiça e as garantias do cidadão. É um crime sendo cometido para combater outro crime”, completa Ronaldo.

Casos de justiçamento registrados pela OAB/AL:

2015: 36 casos, com 3 mortes

2016: 35 casos, com 6 mortes

2017: 81 casos, com 15 mortes

2018: 116 casos, com 13 mortes

2019: 123 casos, com 15 mortes

2020: 83 casos, com 17 mortes

2021: 61 casos, com 8 mortes

2022: 67 casos, com 13 mortes

2023: 79 casos, com 30 mortes

2024: 39 casos, com 9 mortes, até 10 de setembro

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