Exclusivo: Por dentro de uma ‘clínica secreta’ de aborto no WhatsApp
São 0h39 do dia 22 de março. Ana* está tentando interromper a gravidez. “Comecei o meu procedimento. Não sei se é coisa da minha cabeça, mas estou sentindo calafrios.” Ela está na nona semana de gestação.
Durante as primeiras duas horas, não sente efeito algum e questiona se os remédios que tomou vão funcionar. “Eu estou muito ansiosa para dar certo.”
Após cinco horas de expectativa, começa a sentir dores muito fortes e se desespera. “Não sei mais o que eu faço! Está doendo demais, demais, demais. E não vou aguentar. Acho que eu vou desmaiar!”
O relato é feito em áudio e texto para outras 90 mulheres de diferentes regiões do Brasil que integram um grupo secreto no WhatsApp destinado orientar mulheres que querem interromper a gravidez, e, em último caso, fornecer remédios abortivos e acompanhá-las durante o procedimento.
“Acho que eu nunca senti tanta dor na minha vida!”, relata a jovem, chorando, em áudio enviado ao grupo. Outras mulheres que também interromperam a gravidez com medicamentos tentam tranquilizá-la. “Amiga, calma. Eu senti essa dor ontem. Tem alguém com você?”
“Não tem ninguém comigo. Tem só o meu irmão. Só que ele é pequeno, ele é criança. Não sei mais o que eu faço!”, responde Ana. Várias mulheres começam a se manifestar, tentando ajudá-la. “Esquenta uma bolsa de água quente e coloca na barriga. Logo vai passar a dor.”
Elas passam toda a madrugada trocando mensagens. O desespero de Ana, que dá detalhes das cólicas e do sangramento, continua. Às 7h, a jovem chega a cogitar chamar uma ambulância. “A dor está tão forte quanto antes. Será que eu já posso chamar uma ambulância? É muita dor, dor, dor!”
“Espera, essa dor vai passar”, diz uma das integrantes do grupo.
A voz adolescente chama a atenção das outras mulheres. “Quantos anos você tem?”, pergunta uma delas. “Tenho 16”, responde a garota. Ela conta que a família não sabe da gravidez. “Minha mãe deve chegar daqui a pouco. A casa está imprestável, principalmente os lençóis. Vou ter que contar para ela.”
Doze horas depois de começar a abortar, a jovem diz que a mãe chegou em casa. “Contei para ela. Ela falou que vai me levar ao médico. Vou apagar essas conversas.” Logo depois, a menina deixa o grupo de WhatsApp.
A BBC Brasil teve acesso às conversas do grupo por cinco meses para uma reportagem em português e em inglês. Uma das administradoras vende os remédios, que são encaminhados pelo correio. As outras se comportam como “guias” do aborto, responsáveis por acompanhar e “instruir” virtualmente – por mensagens, vídeos e áudios – as mulheres durante o procedimento. Elas não têm formação médica. Apostam na experiência e na dica de enfermeiros e médicos que conhecem.
As pílulas, as mesmas usadas como um dos métodos de aborto legal nos hospitais, custam entre R$ 900 e R$ 1,5 mil, dependendo da dose para cada estágio da gravidez. Funcionam induzindo contrações do útero para que o feto seja expelido.
Uma “guia” é designada a cada grávida, e elas trocam mensagens diretamente durante o procedimento. As administradoras do grupo orientam que todas procurem um hospital após o aborto para verificar se é preciso fazer curetagem (limpeza do útero) e dão instruções sobre o que elas devem dizer para convencer os profissionais de saúde de que perderam naturalmente o bebê e, assim, evitar serem denunciadas à polícia.
No grupo de WhatsApp, as grávidas recém-chegadas compartilham medos e tiram dúvidas com outras mulheres que já abortaram. Também são comuns conversas sobre o papel do homem na gestação e criação dos filhos e as leis restritivas ao aborto no Brasil.
Entre os casos que chamaram atenção da reportagem da BBC está o de uma menina de apenas 13 anos grávida do primo e o de uma jovem que diz ter sido vítima de um estupro e que optou pelo aborto clandestino por temer ser humilhada e forçada a dar detalhes da violência que sofreu.
“Meu anjo, se você foi estuprada você está protegida pela lei. Se você for ao hospital e contar o que aconteceu, eles farão o procedimento legal e de graça”, aconselha uma das mulheres. “Mas eu tenho muito medo. Medo e vergonha”, responde a jovem.
Os nomes das mulheres que participam do grupo foram trocados nesta reportagem. Várias podem ser menores de idade e algumas foram vítimas de violência ou estão em situação de vulnerabilidade.
A médica Alessandra Giovanini, coordenadora do núcleo de Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, alerta para os riscos de se fazer aborto sem acompanhamento médico.
“Acho que elas (administradoras do grupo de WhatsApp) têm até a intenção de ajudar. Mas essas pacientes correm o risco de ter uma hemorragia muito grande, correm o risco de ficar com restos ovulares e ter uma infecção que pode até levar à morte.”
Abortivos pelo correio
Para verificar a veracidade das promessas de venda do abortivo, a repórter da BBC News Brasil pagou R$ 930 via depósito bancário (R$ 900 pelo medicamento e R$ 30 do frete) após ser aceita no grupo identificando-se como uma jovem grávida de quatro semanas.
Dois dias úteis depois, o remédio chegou ao endereço indicado à vendedora. Seis pílulas vieram dentro de uma caixa de CD, envoltas em uma pequena embalagem de papel.
O volume de adesões e de abortos feitos por meio desse grupo de WhatsApp impressiona. Cerca de 20 grávidas entram nele a cada mês, pelas contas feitas pela BBC Brasil. Segundo uma das duas administradoras do grupo, cerca de 300 abortos foram realizados em três anos.
Muitas mulheres saem do grupo depois de interromper a gestação. A maioria relata sentir náuseas, fraquezas e dores durante o procedimento, mas destaca o apoio e a atenção recebida das mulheres que administram o grupo. Abortos são realizados diariamente sob a orientação das “guias”. Só no dia 28 de dezembro, pelo menos três gestantes abortaram, conforme as trocas de mensagens observadas pela reportagem.
Para entrar no grupo secreto de WhatsApp, é preciso ser convidada por uma das administradoras. As novatas são recepcionadas por esta mensagem:
“Olá, seja bem-vinda! Esse é um grupo feminista destinado à venda de medicamentos. Nosso grupo é um espaço de acolhimento e auxílio, então, por motivos de segurança, pedimos que apaguem o histórico do grupo no mínimo uma vez por semana, podendo haver verificação de cumprimento dessa solicitação.”
E todas as participantes precisam seguir regras, como não “fazer julgamento de cunho machista” e não compartilhar as conversas com pessoas de fora do grupo.
Elas recebem um PDF com instruções detalhadas sobre o procedimento, os contatos para a compra do medicamento e até o telefone de uma clínica clandestina na Grande São Paulo, caso prefiram fazer o aborto com um médico. Também é enviado um tutorial em vídeo.
O procedimento na clínica, conforme repassado pelas administradoras no grupo, custa de R$ 4,5 mil a R$ 7,5 mil, a depender do estágio da gravidez. Só a primeira consulta custa R$ 400, segundo uma gestante que procurou o serviço.
É uma possibilidade distante para a maior parte das mulheres que optam pela clínica virtual. Em várias ocasiões, mulheres relataram dificuldade até mesmo em juntar dinheiro para comprar o medicamento de R$ 900.
“Estou anunciando várias coisas pessoais para vender e fazendo doces, mas parece impossível levantar tanta grana sem que me faça falta dentro de casa”, comentou Carolina*. “Me encontro em uma situação financeira terrível e sozinha com dois filhos, uma de apenas dez meses.”
As mulheres que vendem o remédio justificam o custo alto dizendo que correm riscos ao comercializar o produto. O medicamento vendido por elas é proibido de ser comercializado no Brasil desde 2005, justamente por causa do efeito abortivo. O uso é restrito a hospitais.
“Nosso estoque está limitado e não podemos dar desconto. Salvo casos raríssimos. Não existe isso, gente. Isso é um produto ilegal e MUITO difícil de conseguir. O que mais tem por aí é falsificação. Respeitem o nosso trabalho. A gente cumpre com a nossa parte direitinho e sempre”, disse uma das coordenadoras do grupo.
A legislação brasileira prevê pena de um a quatro anos de prisão para quem provoca aborto com o consentimento da gestante.
Segundo o advogado criminalista Conrado Almeida Gontijo, as jovens que administram o grupo também correm o risco de serem denunciadas pelo comércio de um remédio que não tem autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para ser vendido – a pena para esse crime varia de 10 a 15 anos de prisão.
Origem do grupo
A BBC Brasil entrevistou a coordenadora do grupo de WhatsApp. A jovem contou que decidiu abrir a “clínica virtual de aborto” depois de engravidar aos 19 anos em decorrência de um estupro.
“Eu não consegui interromper a gravidez legalmente porque o pai era uma pessoa influente. Eu amo meu filho. Mas a maternidade não era algo que eu escolhi para mim. Eu sentia que tinha a vida inteira pela frente e roubaram isso de mim”, afirmou.
“Eu decidi criar o grupo porque eu não acho justo que as mulheres sejam obrigadas a ter um filho se elas não quiserem.”
Questionada sobre ter medo de ser presa, ela responde que sim. “Não vou dizer que não pensei em parar. Às vezes, ainda penso. Mas quando vejo que uma mulher tem as oportunidades que eu não tive, me sinto melhor. Gosto de ver as mulheres seguindo em frente.”
Segundo a jovem, os remédios são vendidos com uma pequena margem de lucro, e a receita é compartilhada com aquelas que atuam como “guias” das grávidas durante o procedimento. Uma outra parte do dinheiro, segundo ela, vai para a doação das pílulas abortivas a mulheres que não podem pagar pelo remédio.
Durante os cinco meses em que a BBC News Brasil acompanhou as conversas do grupo, as administradoras não pressionaram para que as gestantes abortassem. Uma delas chegou a enviar a foto do bebê de uma mulher que desistiu de interromper a gravidez.
“Bárbara* faz parte do grupo e decidiu ter. Esse é o bebê dela. Ela desistiu do procedimento”, escreveu a jovem que criou o grupo.
“Que lindeza!”, reagiu outra integrante. ”Não é? Que fique claro que a gente apoia qualquer decisão. A que ela escolheu só é mais aceita pela sociedade. A alternativa a gente oferece, e fico feliz em vê-las felizes, independente de como decidam seguir a vida”, concluiu a coordenadora.
O perfil de quem procura o ‘aborto por WhatsApp’
A grande maioria das mulheres que integram o grupo, incluindo as coordenadoras, é jovem – têm entre 18 e 25 anos.
Muitas moram com os pais e estudam – estão nos primeiros semestres da faculdade – e dizem nas conversas de WhatsApp que optaram pelo aborto porque não querem deixar os estudos e não têm independência financeira.
“Gente, eu tenho uma última pergunta. Eu procurei a médica pelo meu plano de saúde, mas meus pais não sabem de nada que aconteceu. Vocês sabem se esses procedimentos da transvaginal e do exame de sangue costumam aparecer na folha de pagamento do plano?”, perguntou uma jovem do Rio de Janeiro, preocupada com a possibilidade de os pais descobrirem o aborto.
Outra jovem, de 18 anos, contou que ela própria nasceu de uma gravidez indesejada e não tem uma boa relação com os pais. “Eu fui feita em um ‘acidente’. Tenho 18 anos, e há dois anos estou sem contato com os meus pais. Virei um fardo para os meus avós.”
“Eu tenho 23 anos e, se não fosse minha mãe, estava ferrada. Ela não vive até hoje por minha causa e do meu irmão”, compartilhou outra mulher.
No dia 8 de março, Lidiana*, de Goiás, entrou no grupo com a intenção de comprar o abortivo para a irmã de 13 anos, que havia engravidado do primo de primeiro grau. “Ela quer tirar e eu também aconselho, mas tenho medo de o procedimento ser muito intenso para ela por causa da idade”, contou.
“Por diversos motivos a gravidez não é desejada. Ela é muito nova, a criança é fruto de um relacionamento com o primo de primeiro grau, entre outros.” Até a publicação desta reportagem, Lidiana ainda não havia decidido se compraria o remédio.
Outras mulheres que integram o grupo já têm filhos, e comentam entre si sobre o impacto das dificuldades da maternidade na decisão de interromper a segunda ou terceira gestação.
“Mando meu filho para a escola doente, porque não posso ficar com ele. Ele fica dez horas na escola todo dia. Confesso que me corta o coração”, confidenciou uma mulher de Minas Gerais.
“Eu passo uns bocados com meu filho. Se eu tivesse tido mais coragem na época eu teria tirado, mas eu era muito ingênua, achava que era mais simples.”
‘Eu vou morrer?’
A primeira preocupação das mulheres que entram no grupo é saber se o remédio funciona e se “não vão morrer” de tanto sangrar.
Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, de pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), 500 mil interrupções de gravidez são feitas anualmente de forma clandestina no Brasil. Cerca de metade termina em internações. Dados do Ministério da Saúde apontam que pelo menos quatro mulheres morrem por dia por causa de complicações decorrentes de abortos.
“Será que preciso pegar folga no dia que eu for fazer? Sangra, tipo, muito? Aiiiii quantas perguntas”, escreveu Lara*, no dia 12 de dezembro, 15 dias antes de tomar os remédios. “Tenho muitas dúvidas ainda. Queria saber das meninas que fizeram. Tô ansiosa.”
“Tem chances de eu morrer?”, perguntou outra gestante.
Várias mulheres passam a compartilhar suas experiências e tirar dúvidas, como Mariana*, de São Paulo, que havia abortado 11 dias antes.
“Quando eu fiz, demorou bastante pra sangrar. Fiquei morrendo de medo, comecei a fazer o procedimento à 1h30 da madruga. Às 10h da manhã, senti cólicas absurdas de fortes, o líquido amniótico desceu, e em poucos minutos o feto saiu inteiro na privada.”
Ela contou que foi ao hospital fazer curetagem.
“Sangrei horrores, e saiu bastante pedaço. Continuei sangrando e com cólicas, e dois dias depois saiu um pedaço grande da placenta. Porém, continuava com muitas cólicas insuportáveis. Em uma semana fui ao hospital, fiz exames e deu abortamento incompleto (quando sobram restos do feto ou placenta). Fiz a curetagem, que teve seus péssimos momentos, mas graças a Deus me livrei de tudo.”
Bárbara*, de Pernambuco, contou que quase desmaiou durante o procedimento. “Tem uns momentos que dá muita fraqueza. Eu não tive diarreia, mas vomitei bastante. E fiquei fraca, quase desmaiando e com calafrios. Mas foram umas três horas sofrendo e, depois, alívio.”
A BBC Brasil entrevistou uma jovem de 28 anos que interrompeu a gravidez com auxílio do grupo.
“Eu fiz o uso dos comprimidos e, depois de algum tempo, quando começaram os efeitos de dor, de cólica, eu me mantive calma, e conversei com algumas meninas. As meninas se ajudam e se apoiam ao nível de não dormirem se alguém faz o procedimento na madrugada”, relatou.
“O aborto não tem que ser utilizado como contraceptivo, não deve ser usado de forma banal. Mas, como mulher, eu tenho direito à autonomia do meu corpo.”
Riscos graves
A BBC Brasil consultou a ginecologista Renata Peixoto, que realiza procedimentos legais de interrupção de gravidez em um hospital público de Brasília e atende lá mulheres que tiveram complicações por abortos clandestinos.
Ela disse que as doses recomendadas pelas administradoras do grupo de WhatsApp são altas. O objetivo seria garantir eficácia, já que essas mulheres não têm com a possibilidade de fazer o procedimento em hospitais.
A BBC Brasil questionou as administradoras do grupo sobre as doses prescritas. As jovens disseram que a dosagem foi recomendada por médicos que conhecem. Elas afirmam que nenhuma grávida que integrou o grupo morreu, mas reconhecem que há riscos.
“Não é 100% seguro. Mas se eu não acompanhar essas mulheres, elas vão acabar fazendo de outra forma, talvez mais insegura. Não quero deixá-las sozinhas”, disse uma das administradoras.
Quando uma grávida faz aborto supervisionado na rede pública, ela toma um comprimido de cada vez e é observada para verificar se o procedimento foi concluído e se o sangramento está dentro do esperado. O objetivo é justamente evitar que tomem o medicamento em dose maior que o necessário. Em alguns casos, a interrupção da gravidez é feita por sucção, mediante anestesia, por ser um procedimento rápido e sem dor.
Nos Estados Unidos, no entanto, o aborto com medicamento é, muitas vezes, realizado legalmente em casa, por orientação médica. As gestantes podem entrar em contato com a clínica durante o procedimento e são orientadas a retornar em caso de hemorragia.
A médica Renata Peixoto diz que atende todos os dias mulheres com “abortamento incompleto” e que, pelo menos três por semana, recebe pacientes que tiveram claramente complicações decorrentes de procedimentos clandestinos.
Segundo a especialista, os riscos de fazer o procedimento sem supervisão médica vão de hemorragia – que pode levar à necessidade de transfusão ou morte, se a mulher não procurar ajuda – à ruptura e infecção do útero, especialmente se realizado por mulheres submetidas anteriormente a cesárea ou que estejam em gestação avançada, ou seja, de mais de 11 semanas.
“Atendi uma vez uma menina de 19 anos que estava com infecção tão avançada no útero que tivemos que retirar o útero dela, porque o tratamento com antibiótico não daria conta. Infelizmente, é uma menina nova que não poderá mais ter filhos”, disse.
“O que a gente vê é que a proibição do aborto não impede que ele aconteça. As mulheres que realmente não querem ter acabam abortando de qualquer jeito, mas correm riscos.”
As administradoras do grupo de WhatsApp recomendam às mulheres irem ao hospital de dois dias a uma semana depois de tomarem os abortivos. O objetivo é verificar se há resquícios do feto e evitar infecções.
Paula* não seguiu as orientações, o útero dela infeccionou e ela precisou ser internada. ”Eu saí do hospital (agora). Era pra começar a tomar antibióticos hoje, mas só consigo amanhã”, disse ela às demais integrantes do grupo no dia 15 de dezembro.
“Não vou morrer, né?”, perguntou. Uma das administradoras tentou acalmá-la. “Vai não. Pode ficar tranquila. Mas, por favor, tome direitinho (os antibióticos) a partir de amanhã.”
No dia seguinte, Paula voltou a dar notícias. “Eu enrolei para ir ao hospital achando que a dor ia parar, e ainda tinha resto de material que infeccionou meu útero. Agora estou tomando antibióticos. Se você sentir dor demais, é muito importante ir ao hospital”, aconselhou às outras gestantes.
Proibição legal
Além dos riscos à saúde, as mulheres que abortam clandestinamente vivem o medo de serem denunciadas ao procurarem atendimento no hospital em caso de complicação ou para fazer curetagem (retirar eventuais resquícios do feto do útero).
O Código Penal brasileiro prevê pena de prisão de um a três anos a mulheres que fizerem um aborto.
A BBC Brasil entrevistou uma jovem de São Paulo que foi denunciada por interromper a gravidez justamente pela médica de plantão que a atendeu. Ela tomou pílulas sozinha em casa e se desesperou com as dores. Acabou indo a um hospital público, e a médica chamou a polícia.
A mulher, de 24 anos, contou que os policiais foram até o hospital e a interrogaram enquanto ainda sangrava.
“Assim que acabei de abortar o feto, eu tive uma convulsão. Eles entraram na sala falando que era para eu confessar, senão eu ficaria algemada, que eu iria para um presídio. Foi autuado crime em flagrante”, disse. Ela teve que pagar fiança para ser liberada e hoje enfrenta um processo penal.
No grupo de WhatsApp a que a BBC Brasil teve acesso, várias conversas giram em torno do medo de ser denunciada ao procurar atendimento.
“Oi, meninas. O que vocês falaram no hospital? Tenho muito medo da curetagem. Foram em hospital normal, emergência?”, perguntou uma das mulheres.
“Eu fui ao hospital normal. Disse que tinha acordado com sangramento e cólicas. E que estava grávida de seis semanas”, relatou outra jovem, de Campinas (SP).
Um dos receios delas é que o remédio abortivo seja detectado. “Eu tô sem unha para roer de tão ansiosa para poder dormir sem ter pesadelo com isso. Li que se o sangramento encher quatro absorventes noturnos em menos de duas horas, é para procurar o hospital”, comentou uma estudante de veterinária de 23 anos que havia acabado de receber os remédios abortivos.
As administradoras do grupo dão uma série de orientações às gestantes para evitar que sejam descobertas ao procurar ajuda. Elas dão dicas de como fingir um aborto espontâneo e evitar suspeitas. “Atue”, resumem elas.
Problemas com métodos contraceptivos
A professora Diana Greene, da Universidade da Califórnia, que faz pesquisa demográfica sobre aborto em todo o mundo, disse que a maior causa de gravidez indesejada é a dificuldade das mulheres em encontrar métodos contraceptivos adequados para o organismo delas.
“É importante lembrar que ninguém engravida sozinha. Os homens fazem parte deste processo. E o grande problema é que muitas mulheres não encontram métodos contraceptivos adequados às necessidades delas”, disse à BBC Brasil.
“Algumas sofrem com efeitos colaterais dos métodos com hormônio, os homens não aceitam usar camisinha ou o governo dificulta o fornecimento gratuito de outros métodos”, exemplifica.
Esse é um dos principais assuntos discutidos pelas mulheres que integram o grupo de WhatsApp. Muitas dizem que pararam de tomar anticoncepcional porque tinham efeitos colaterais. Outras relatam que enfrentaram burocracias ao pedir, na rede pública ou ao plano de saúde, para implantar o DIU (Dispositivo Intra-Uterino).
“E o DIU que meu plano não deixa, porque eu não tenho filho? Só depois de ter o primeiro! Absurdo. E meu direito de não querer ser mãe? Não sou materna”, se queixou uma mulher de São Paulo na véspera de Natal.
“Eu queria muito algo sem ser hormônio. Expliquei ao médico que não queria, porque fumo e que vou passar por um procedimento cirúrgico para emagrecer. Mas ele não passou nada. Só anticoncepcional”, comentou uma jovem de Minas Gerais.
Outra mulher, do Rio de Janeiro, disse que o médico dela recomendou não fazer sexo como método contraceptivo. “Meu médico disse que se não quero engravidar é só eu não dar. Só porque não tenho parceiro fixo há três anos.”
Também há discussões sobre a resistência dos homens em usar camisinha. “Sempre arrumam um jeito de culpar a mulher. E depois querem que ela se lasque parindo uma criança que não quer”, reclamou uma participante.
Elas também questionam o fato de não haver anticoncepcionais masculinos no mercado. “Está muito confortável para eles. Desistem das pesquisas, porque o anticoncepcional masculino causaria os mesmos efeitos que os femininos. Mas os homens são muito egoístas para assumir essa responsabilidade.”
Outro tema recorrente é a criminalização do aborto no país.
“Meninas, deixa eu falar uma coisa para as moças que ainda não fizeram por medo de algo. Eu curso engenharia, e na minha faculdade só tem filha de rico. Aborto entre elas é normal. Elas debatem numa boa, e a maioria já fez, só que fora do país”, comentou uma jovem do Rio de Janeiro. “Aborto só é pecado para pobre”, criticou.
Outra mulher, do Espírito Santo, disse que foi “obrigada” a ter o filho e que tentou se matar durante a gestação. “Eu tive um filho obrigada… O pai furou o preservativo. Botaram um cão de guarda atrás de mim 24h para eu não abortar. Me senti um lixo. Tentei me matar duas vezes”, relatou. ”Até hoje não me sinto feliz com meu filho… É um trauma olhar pra ele e lembrar daquele inferno. Amo ele, mas o trauma não some.”
“Engravidei com 18 anos e, como eu era superingênua e não tinha contato com dinheiro, não pude abortar. Minha mãe até fez uns remédios caseiros para ver se funcionava, mas claro que não funcionou. Hoje tenho 26 anos, faço faculdade e trabalho, mal consigo ter tempo para meu filho exatamente para tentar garantir um futuro para ele. E poucas pessoas entendem isso”, compartilhou outra jovem do Espírito Santo.
O aborto é permitido na maior parte dos países desenvolvidos, como Estados Unidos, Canadá e os integrantes da União Europeia. Na América Latina, Cuba e Uruguai permitem a prática. Na Colômbia, o aborto passou a ser permitido para resguardar a saúde mental da mulher o que, na prática, contempla a gravidez indesejada.
Apesar de o Brasil ter uma das legislações mais restritivas do mundo em relação ao aborto, segundo a OMS, uma proposta, no Congresso Nacional, pode tornar a lei ainda mais rígida.
Uma comissão da Câmara aprovou no ano passado uma emenda à Constituição que estabelece a proteção da vida desde a concepção. Na prática, a proposta pode criminalizar até abortos em caso de estupro e feto com anencefalia. O texto segue em tramitação.
Por outro lado, o Supremo vai decidir se o aborto até o terceiro mês deve deixar de ser crime.
Os debates nas duas casas já começaram e podem determinar o futuro de um tema polêmico que envolve a saúde de milhares de mulheres.
“Fazer um aborto não é uma decisão fácil. Ninguém quer passar por isso. Quando eu fiz, eu tinha 17 anos. Eu fiz o aborto sozinha num quarto de hotel. O pior sentimento é o de abandono”, descreveu uma jovem de 24 anos no grupo de WhatsApp.
*Os nomes foram trocados para proteger a identidade das mulheres.
Fonte: BBC Brasil