Reconhecida como capital de Israel pelos EUA, por que Jerusalém é uma cidade tão sagrada e disputada?
Jerusalém voltou a ser pivô de um confronto sangrento entre israelenses e palestinos com dezenas de mortos – o mais letal desde a guerra em Gaza em 2014.
Os atos de violência foram motivados pela abertura da embaixada americana em Jerusalém, que ocorreu nesta segunda-feira. Em dezembro, a decisão do presidente americano, Donald Trump, já havia enfurecido os palestinos e causado controvérsia na comunidade internacional.
Opositores da decisão de Trump dizem que ela é uma clara demonstração de que os Estados Unidos apoiam a reivindicação de Israel ao domínio completo de Jerusalém – palestinos dizem ter direito à parte leste da cidade.
Trump não esteve presente durante a cerimônia de abertura, mas fez uma transmissão de vídeo afirmando que “Israel é uma nação soberana com o direito de determinar sua própria capital, mas durante muitos anos deixamos de reconhecer o óbvio”.
Houve confronto entre policiais e manifestantes que levantaram bandeiras palestinas. Enquanto isso, na fronteira com Gaza, o Exército israelense disse que 40 mil palestinos participaram de “protestos violentos” em 13 locais ao longo da cerca de segurança.
O Hamas já prometera aumentar a intensidade dos protestos antes da terça-feira, quando os palestinos relembram o que eles chamam de Nakba – quando milhares deixaram suas casas ou foram deslocados após a fundação do estado israelense, em 14 de maio de 1948.
Árabes e judeus travam uma intensa disputa desde o começo do século 20 para transformar Jerusalém em capital da Palestina e de Israel, respectivamente. Mas esse conflito, que faz do Oriente Médio um centro permanente de tensão, é apenas mais um capítulo de uma história que mescla confrontos por território e heranças sagradas há milênios.
Jerusalém já foi ocupada, destruída, sitiada, atacada e capturada muitas vezes por diferentes povos – entre eles egípcios, babilônios, romanos, árabes e judeus – em cerca de três mil anos de história. Também foi glorificada por cristãos, judeus e muçulmanos, que veem na cidade o berço de suas religiões.
A aparente convivência harmônica entre os bairros judaico, mulçumano, cristão e armênio na Cidade Velha, cercada por muros em Jerusalém Oriental, contudo, não é um indicativo de que o atual confronto esteja perto do fim.
Mas como essa cidade de 150 quilômetros quadrados, área pouco menor que a de Natal, capital do Rio Grande do Norte, tornou-se a mais sagrada e disputada do mundo por tantos milênios?
Heranças religiosas
Para os cristãos, Jerusalém foi o palco da paixão de Cristo, o local onde Jesus foi crucificado, morto e sepultado – o lugar exato, o Monte Calvário (ou Gólgota), ficava próximo da Jerusalém antiga, dentro dos limites da cidade atual.
Para os muçulmanos, Jerusalém é o lugar onde o profeta Maomé ascendeu aos céus. Já segundo a tradição judaica, a cidade foi declarada como capital do reino dos judeus pelo rei Davi e é o local onde foi construído um templo para guardar a Arca da Aliança, onde estariam as tábuas dos Dez Mandamentos.
Por isso, até hoje, Jerusalém atrai peregrinos de diferentes religiões em busca de lugares sagrados.
Na Cidade Velha, é possível percorrer, por exemplo, as 14 estações pelas quais se acredita que Jesus passou carregando a cruz até a Igreja do Santo Sepulcro; visitar a mesquita de Al-Aqsa e se deslumbrar com a Cúpula da Rocha; e, ainda, depositar votos de fé no Muro das Lamentações, um pedaço do Templo de Jerusalém erguido por Herodes e cercado por sinagogas.
Disputas por território
Parte das disputas na região está relacionada à crença de fiéis de que seus antepassados chegaram primeiro à região onde hoje fica Jerusalém, ou mesmo de que a ligação com a cidade é mais legítima.
Apesar de haver indícios de que o local já era habitado em 3200 a.C., ninguém sabe ao certo quem foram os primeiros a ocupá-lo.
A história de conflitos na região envolveu, no fim do século 7 a.C. egípcios e assírios e, em séculos seguintes, babilônios e persas, gregos, romanos, turcos e otomanos.
Os confrontos forçaram a diáspora judaica e Jerusalém foi controlada por muçulmanos por séculos até o final da 1ª Guerra Mundial e o fim do Império Otomano. A partir daí, franceses e britânicos ocuparam a região, redefinindo fronteiras.
O confronto entre judeus e palestinos
No começo dos anos 1920, a região da Palestina passou a ficar formalmente sob o comando do Reino Unido e, com apoio dos britânicos, judeus de todas as partes do mundo começaram a voltar à Terra Santa, migrando para o território do atual Estado de Israel.
Jerusalém foi capital do Mandato Britânico da Palestina até 1948. Um ano antes, a Assembleia Geral da ONU decidiu pelo plano de partilha da Palestina entre um Estado árabe e outro judeu, Jerusalém foi designada como corpus separatum (corpo separado), sob controle internacional. O plano, porém, não chegou a ser implementado.
Em 1948, foi declarada a Independência do Estado de Israel e, logo em seguida, eclodiu a guerra árabe-israelense. Ao final daquele conflito, Jerusalém foi dividida, com a parte ocidental sob controle de Israel e a parte oriental controlada pela Jordânia.
A Cúpula da Rocha, em Jerusalém, é um dos lugares mais sagrados do Islã
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Depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967, Israel capturou a parte oriental da cidade e, desde então, vem construindo assentamentos em Jerusalém Oriental. Esses assentamentos são considerados ilegais pela comunidade internacional, posição que é contestada pelo governo israelense.
Os palestinos, por sua vez, reivindicam que Jerusalém oriental é a capital palestina. Esse pleito faz parte das tratativas de acordo de paz para tentar criar um Estado palestino ao lado de Israel.
Estima-se que um terço da população de Jerusalém seja composto por palestinos – e muitas são as famílias que estão na região há séculos.
Enquanto árabes e judeus enfrentam dificuldades para executar o plano de partilha da Palestina conforme determinado pela ONU, as ações militares na região nunca cessaram.
Decisão polêmica
A chefe de política internacional da União Europeia, Federica Mogherini, afirmou: “Esperamos que todos ajam com moderação para evitar uma perda maior de vidas”. A Alemanha, por sua vez, afirmou que Israel tem o direito de se defender e deve fazê-lo de maneira proporcional.
Um dos pronunciamentos mais fortes em relação ao confronto veio do Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos, o saudita Zeid Ra’ad al-Hussein, que condenou “o assassinato chocante de dezenas e os danos a milhares causados pelo fogo aberto de Israel”.
Na fronteira de Israel com a Faixa de Gaza, palestinos atiram pedras e dispositivos incendiários contra o Exército israelense, que usa atiradores de elite.
Nesta segunda-feira, um porta-voz do presidente da Autoridade Palestina Mahmoud Abbas afirmou que “com este passo, o governo americano cancelou seu papel no processo de paz e insultou o mundo, o povo palestino e a nação árabe e islâmica, além de criar provocação e instabilidade”.
O secretário-geral da Liga Árabe, Ahmed Abul Gheit, disse que é “vergonhoso ver países celebrando, juntamente com os EUA e Israel, a mudança da embaixada americana para uma Jerusalém ocupada, em uma violação clara e grave da lei internacional”.
Já o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, disse que a abertura da nova embaixada é “um dia glorioso” e que Trump está “fazendo história ao reconhecer a história”.
Na tentativa de manter a neutralidade e não influenciar diretamente o já complicado acordo de paz na região, a comunidade internacional nunca reconheceu a soberania de Israel sobre a cidade. A maioria dos países, por exemplo, estabeleceu representações diplomáticas em Tel Aviv e arredores, mas não em Jerusalém.
Por isso, o anúncio do reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel por Donald Trump e a mudança da embaixada foram criticados também por aliados dos EUA, como o Reino Unido. Até mesmo o papa Francisco se manifestou pedindo que a decisão fosse revista.
A decisão de Trump vai na mesma direção de uma medida aprovada em 1995 pelo Congresso dos Estados Unidos, prevendo a transferência da Embaixada para Jerusalém. No entanto, isso nunca havia sido posto em prática, porque era necessária aprovação da Presidência, o que nunca ocorreu – até agora. Todos os semestres, o ato do Congresso foi encaminhado aos presidentes, mas a praxe sempre foi renunciar a mudança.
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