Por que uma briga de irmãos levou à renúncia do presidente do Peru

O Peru já teve sua versão dramática — e sanguinária — de Game of Thrones. Entre 1529 e 1532, Huáscar e Atahualpa, irmãos e herdeiros do trono do Império Inca, travaram uma guerra pela conquista do poder. Quase cinco séculos depois, outros dois irmãos protagonizam sua própria versão de conspirações e traições: os filhos do ex-ditador Alberto Fujimori (1990-2000), a primogênita Keiko e o caçula Kenji, são os personagens principais de uma trama de subornos, escândalos de compras de votos e troca de favores, puxadas de tapetes cinematográficas, destituição do chefe de Estado, chegada ao poder de um presidente fraco e surgimento de um futuro cheio de incertezas.

Esse cenário era inimaginável quando Pedro Pablo Kuczynski tomou posse como presidente, em julho de 2016. Na ocasião, ninguém poderia imaginar que esse economista amigo dos mercados, ex-concertista de flauta transversal e primo do cineasta Jean-Luc Godard encerraria seu mandato três anos antes do previsto. Em 21 de março deste ano, no entanto, Kuczynski tornou-se o primeiro presidente da América Latina a cair por causa do escândalo da empreiteira brasileira Odebrecht, que confessou perante a Justiça dos Estados Unidos ter pago us$ 29 milhões em propinas entre 2005 e 2014 no Peru.

Na lista de baixas que o caso Odebrecht provocou entre as lideranças políticas peruanas, Kuczynski é apenas o nome mais recente. O ex-presidente Alejandro Toledo fugiu da Justiça peruana e está refugiado nos eua, enquanto não é deferido seu pedido de extradição. O ex-presidente Ollanta Humala e sua mulher, Nadine Heredia, estão presos desde julho de 2017. O ex-presidente Alan García está sendo processado na Justiça.

A queda de Kuczynski ocorreu em meio ao “tiroteio” político entre os irmãos Fujimori. Keiko está vinculada ao poder desde sua adolescência, quando seu pai se separou de sua mãe, Susana Higuchi, após ela ter denunciado casos de corrupção do marido. Com a mãe relegada ao ostracismo e tratada como louca, Keiko assumiu as funções de primeira-dama. Após a prisão do pai em 2007, tomou o comando do fujimorismo e foi candidata duas vezes à Presidência da República (2011 e 2016). Perdeu em ambas as ocasiões, mas transformou o fujimorismo na principal força opositora no Poder Legislativo.

Keiko desvencilhou-se aos poucos da velha guarda de seu pai e rodeou-se de novas figuras, representantes de um fujimorismo “desnatado”. Há alguns anos, ela deixou de insistir na liberação do pai — condenado a 25 anos de prisão por ser responsável por uma estrutura repressiva que assassinou 7.620 civis e pelo desvio de us$ 6 bilhões —, já que isso lhe subtraía votos. Na contramão, seu irmão Kenji, caçula do ex-ditador, não deixou de exigir sua libertação. Enquanto a irmã agia como primeira-dama, Kenji, ainda criança, brincava no palácio com tanques de plástico. Adulto, tentou fazer carreira como líder do fujimorismo, mas teve de se resignar a ser ator coadjuvante da irmã mais velha. Para se diferenciar de Keiko, Kenji rodeou-se da velha guarda fujimorista.

Kuczynski chegou ao poder em meados de 2016 graças ao voto antifujimorista. Derrotou Keiko no segundo turno presidencial com uma exígua vantagem de 40 mil votos. Apesar da vitória, sua base parlamentar era mínima, com apenas 18 deputados de um total de 130 do Parlamento peruano. Depois de ser denunciado na Justiça, Kuczynski tentou primeiro desmentir vínculos com a Odebrecht. Posteriormente, admitiu que sua consultoria realizara trabalhos para a empreiteira num período em que ele estava de licença da empresa.

Em dezembro, o Parlamento reuniu-se para votar o impeachment de Kuczynski com a acusação de “incapacidade moral permanente”. Na noite da votação, quando tudo indicava que Keiko conseguiria destituir Kuczynski, Kenji e seus nove deputados aliados (autodenominados “The avengers”, isto é, “Os vingadores”) impediram o impeachment. Faltaram oito votos para a destituição. Os peruanos ficaram boquiabertos com a guinada.

Horas depois, Kenji escreveu a frase “Chegou a hora” em sua conta de Twitter junto com a cena do filme infantil Rei leão, na qual o protagonista Simba, já adulto, sobe em uma colina e assume a liderança da alcateia antes comandada por seu pai, Mufasa. No dia seguinte, os médicos de Alberto Fujimori entraram com um pedido de indulto “humanitário”, concedido, um dia e meio mais tarde, por Kuczynski. Kenji levou o anúncio do indulto ao pai no hospital, enquanto Keiko ficou de fora do principal momento fujimorista da última década.

Keiko não perdoou a traição do irmão e a sobrevivência de Kuczynski. No início de março, ela insistiu com uma nova votação de impeachment. Kuczynski tinha chances de driblar a nova tentativa de destituição, mas, na véspera da votação, foram divulgados vídeos que mostravam Kenji e aliados negociando a compra de votos pelo governo para evitar o impeachment. Os vídeos foram gravados e divulgados pelos aliados de Keiko. Kuczynski renunciou, e o Parlamento empossou como novo presidente Martín Vizcarra, que até a véspera acumulava o posto de primeiro-vice-presidente e de embaixador no Canadá.

A curto prazo, a vencedora dessa guerra política é Keiko, já que removeu o homem que a havia derrotado nas urnas. Também venceu a queda de braço com seu irmão Kenji, praticamente colocando a pique sua carreira política. Mas, a médio e longo prazo, ela também deve perder, já que ficou com a imagem de uma líder política autoritária e sem respeito pelas instituições — as investigações sobre a Odebrecht indicam que ela também recebeu dinheiro irregular da empreiteira. Além disso, Keiko, ao denunciar o irmão na Justiça por corrupção, solapou qualquer possibilidade de reunificação do fujimorismo.

Após três anos de conflito entre Huáscar e Atahualpa, o vencedor foi o segundo. Mas Atahualpa desfrutou muito pouco sua vitória. Poucas semanas depois de ter eliminado seu irmão, ele deparou o conquistador espanhol Francisco Pizarro, que aproveitou o enfraquecimento dos incas, prendeu o novo imperador e o executou.

 

 

Fonte: Época

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