O álcool “muda” a personalidade?
É sempre assim, em um grupo de amigos, junta-se de tudo: o tímido, o extrovertido, emotivo, o romântico, o palhaço, o ansioso, o apressado, o baladeiro e o calmo. As rodas de conversa sempre tem como atrativo algo a se consumir, embora o consumo maior seja de “compartilhar momentos em grupo” um outro consumo também se faz presente: o álcool. Aos poucos todos partilham da substância e começam a emitir comportamentos “estranhos” diferentes do normal. Daqui a pouco já mudaram de personalidade e agem como se esses adjetivos usados no início do texto não servissem mais. Pode o álcool ser capaz de “mudar” a personalidade? Ao que sabemos, personalidade nada mais é do que um padrão de comportamento que se repete, não podendo ser, dessa forma, algo intacto e não passível de modificação. Ao contrário do que muitos pensam, estamos o tempo todo mudando nossa personalidade à medida em que estamos expostos a eventos ambientais que nos proporcionam emitir comportamentos que garantam nossa sobrevivência. A garota introvertida do interior, logo mudará de personalidade ao estar em situações que requeiram extroversão dela na capital, por exemplo. Sob efeito de álcool, somos nós mesmos ou outras entidades se apossaram de nosso corpo? Uns ‘héteros’, logo viram ‘homossexuais’, uns ‘calados’ logo viram ‘falantes’, uns ‘calmos’ logo viram ‘agressivos’, outros ‘quietos’ logo ficam ‘safados’. Como a ciência do comportamento analisa essas contingências será tema deste artigo e iniciaremos falando sobre as drogas.
O consumo de substâncias tóxicas tem acompanhado o convívio social desde a mais tenra idade, tendo registros, inclusive, no livro sagrado judaico-cristão com a embriaguez de Noé (Gn 9:21). Conforme Britto et. al. (2012), “os termos substância ou drogas referem-se a compostos químicos que são ingeridos pelas pessoas”. Essa definição inclui substâncias lícitas como álcool, nicotina e cafeína, esta última presente no café, refrigerantes, chocolates, além das drogas ilícitas como cocaína, heroína, maconha, dentre outras.” Tais substâncias possuem compostos químicos capazes de (des) ativar áreas específicas do sistema nervoso central, permitindo a emissão de determinados comportamentos por aqueles que às fazem uso. Por exemplo, algumas pessoas podem ativar áreas específicas ligadas a agressão, por isso se tornam tão violentas sob efeito de drogas; já outras pessoas podem tornar-se extremamente calmas, sob efeito das mesmas substâncias. Dentre os efeitos esperados, de modo geral, há comprometimento na concentração, na memória, na atenção, na coordenação motora, na percepção, entre outros. Tais efeitos têm como precursores a ação de neurotransmissores que são liberados através dos neurônios por vias sinápticas. Os danos no organismo causado por substâncias químicas incluem, inclusive, àquelas usadas com objetivo clínico, as quais possuem a função de agir no organismo progredindo, estabilizando ou retrocedendo um quadro sintomático ou sinalizador de quadro patológico (diazepam, amplictil, rivotril, santiazepam, ritalina, prozac, carbolítium, etc.).
A medida em que as sociedades evoluem, a busca por prazer, através de substâncias tóxicas, vai ganhando novas formas e, com isso, efeitos diferentes de acordo com as necessidades dos usuários; entre eles, substâncias que possuem efeitos alucinógenos como o álcool. O álcool, quimicamente conhecido como etanol, é uma droga depressora e está presente em grande parte de nossa sociedade, em diferentes grupos sociais, independentemente de classe econômica, posição ou função social. O consumo de álcool na sociedade contemporânea é visto predominantemente de forma positiva, “o que dificulta o reconhecimento de determinados padrões de consumo como doença e, ao mesmo tempo, a mobilização de profissionais de saúde para diminuir índices de problemas decorrentes do uso do álcool.” (Heckmann & Silveira).
O que leva uma pessoa a consumir álcool e outras drogas? De acordo com a abordagem comportamental, consumir drogas deve ser analisado como qualquer outro comportamento inerente ao ambiente em que o sujeito está inserido, não como sintomatologia de alguma patologia, poisa a análise do comportamento admite uma relação funcional entre o organismo e o ambiente que, segundo De Rose “A afirmativa, recorrente da obra de Skinner, de que as causas do comportamento estão no ambiente, deve ser entendida de acordo com uma noção muito ampla de ambiente, que não inclui apenas a configuração de eventos que antecede o comportamento, como em certas versões da psicologia estimulo-resposta, mas todo um tecido de relações entre comportamento e ambiente interagindo, por sua vez, com a sua herança genética.”
Por ambiente entende-se não apenas ao físico e concreto, mas a todo conjunto de variáveis que, numa relação de causalidade, antecede o resposta do organismo que, por sua vez, será sucedido por uma conseqüência reforçadora ou punidora da resposta emitida; à esta relação, dá-se o nome de tríplice contingência ou relação contingencial. Com isso, a análise do comportamento não aponta que as causas do comportamento estejam dentro do sujeito, mas no ambiente.
Dessa forma, consumir bebida alcoólica implica em livrar-se de algo aversivo ou conseguir algo reforçador. Chamamos de aversivo tudo aquilo que é visto como ruim para o indivíduo (fazer uma prova de vestibular, chegar atrasado num evento importante, perder o relógio, esquecer de tomar o remédio, esquecer a bolsa no supermercado ) e reforçador tudo aquilo que é bom para o mesmo (ganhar na loteria, ser elogiado, estar com a pessoa querida, tirar boa nota na prova, receber o salário fim do mês). Com isso, consumir álcool vai estar ligado a esquecer opressões que o sujeito vem passando, reduzir desconfortos gerados por certos estilo de vida, livrar-se de um evento ansiogênico, minimizar a timidez frente ao momento em que precisa estar mais inibido, ser aceito e valorizado por determinado grupo, aliviar o estresse de determinada atividade, entre outros. Indivíduos que veem a substância alcoólica como estimulo reforçador tendem a usar e abusar da mesma, até mesmo pelo efeito reforçador gerado pelo consumo (Britto et. al. 2012), ou seja, visto que ela se mostra como algo prazeroso, a tendência de consumi-la cada vez mais aumenta, não permitindo ao sujeito analisar os efeitos desagradáveis a longo prazo de seu consumo. Estes só serão percebidos quando problemas no organismo começarem a surgir, a esta fase, o sujeito já estará tão dependente que nos esforços para diminuir o consumo já não serão tão efetivos como seria se a decisão fosse tomada antes.
Comportamentos emitidos sob efeito de bebida alcoólica, em pleno estado de embriaguez deve ser analisado como qualquer outra emissão comportamental quando sem efeito de álcool. No entanto faz-se necessário analisar de maneira mais minuciosa levando em consideração que a substancia etanol agiu sob o sistema nervoso permitindo o descontrole de determinadas áreas cerebrais. França (1978) citado por Santos (2009) afirma que na embriaguez soltam-se progressivamente os impulsos recalcados, livres graças ao entorpecimento das inibições morais. (SANTOS 2009, p.2 apud FRANÇA 1978, p. 3). É no estado de embriaguez que comportamentos socialmente evitados pelo indivíduo, muitas vezes são emitidos de maneira menos discriminada. Por exemplo, Joana é uma menina muito tímida e solteira há 4 anos, se dedicando muito ao seu trabalho, em estado de embriaguez Joana passa a se comportar de forma muito “depravada” emitindo comportamentos de busca constante por sexo. O caso de Joana, deixa claro que estes comportamentos não eram emitidos em condições “normais” porque ela evitava tendo em vista que seria mal vista pela sociedade. Dá-se a essa fase o nome de excitação, que pode ser identificada pela diminuição da capacidade de julgamento, desinibição, euforia, agressividade, enfim, o comportamento de autocontrole fica prejudicado. As pessoas não conseguem mais controlar aquilo que controlavam, a menos que seja algo muito vivo em seu cérebro.
A análise do comportamento levará em conta todas as variáveis envolvidas na emissão de determinado comportamento, seus antecedentes e consequentes, organismo, história de vida e ambiente social da pessoa. Com isso, esta ciência por considerar a historia de vida do indivíduo irá identificar qual a relação desta com o comportamento emitido. Comportamentos agressivos emitidos contra alguém durante o estado de embriaguez, por exemplo, muitas vezes tem raízes na relação coercitiva existente entre os sujeitos envolvidos no evento. Baseado nisso, as pessoas emitirão comportamentos que de certa forma tem uma funcionalidade, não sendo, portanto, algo incompatível com o organismo que o emite. O estado de embriaguez são pode ser a causa do comportamento de violentar, mas sim a relação coercitiva existente no ambiente, gerando um controle coercitivo. Controle coercitivo é abertamente justificado como uma maneira para os fortes se protegerem dos fracos e para os anteriormente fracos alcançarem seu lugar no topo. (SIDMAN, 1995, pg. 206). Coerção é mesmo que reprimir, castigar, punir, forçar alguém a fazer algo que não queira, etc.
Portanto, o problema da embriaguez começa no ato de ingerir álcool somado às contingencias que possibilitam comportar-se de modo ‘desenfreado’, quando intoxicado pelo etanol. Permitir-se entrar num estado de embriaguez para comportar-se da maneira como gostaria acaba gerando uma armadilha de reforçamento a ponto de dificilmente o organismo ser capaz de produzir os mesmos comportamentos naturalmente, tanto os comportamentos em busca de reforçadores quanto os comportamentos que elimina os aversivos. A embriaguez por si só não deve explicar a emissão comportamental, mas o ambiente onde o comportamento é emitido. Há de se levar em consideração que algumas funções cerebrais são (des) ativadas quando em intoxicação por substancia química, porém, é valido considerar que tais alterações neuroquímicas não podem ser causas exclusivas do comportamento emitido.
Diego Marcos Vieira da Silva
Graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas
Referências:
Baum, W.M. Compreender o behaviorismo: comportamento, cultura e evolução. Tradução Maria Teresa Araujo Silva [et. al.]. -2 ed. REV. E AMPL. -Porto Alegre: Artmed, 2006. 312 p.; 23cm.
Britto, I.A.G.S.; Britto, A.L.G.S.; Alves, J.C. & Souza, N.R. Sobre o comportamento de consumir e depender de substâncias Vox Faifae: Revista de teologia da Faculdade FAIFA Vol. 4 Nº 1 (2012) ISSN 2176-8986
Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos Mentais 5 DSM-5/[American Psychiatric Association, traduc. Maria Inês Corrêa Nascimento et. al.]; revisão técnica: Aristides Volpado Cordioli et.al. –e. Porto Alegre: Artmed, 2014. Xliv, 948p.; 25cm.
SIDMAN, M. Coerção e suas implicações (Tradução de Maria Amália Andery & Teresa Maria Sério). Campinas: Editora Livro Pleno. (Obra original publicada em 1989), 1995.
Wolfgang Heckmann Camila Magalhães Silveira. Dependência do álcool: aspectos clínicos e diagnósticos Disponível em: <http://www.cisa.org.br/UserFiles/File/alcoolesuasconsequencias-pt-cap3.pdf> Acesso em 08 de janeiro, 2016.
Muto pertinente a discussão. Parabéns Diego…
Tendo em vista que vivemos num contexto sócio-cultural em que o uso abusivo do álcool é frequente e acarreta tantos prejuízos para a vida de quem consome e convive, vejo a extrema relevância em abordar o tema de forma contextualizada e funcional. Esse artigo é valioso! Parabéns, Diego. ;)
“Permitir-se entrar num estado de embriaguez para comportar-se da maneira como gostaria, acaba gerando uma armadilha de reforçamento a ponto de dificilmente o organismo ser capaz de produzir os mesmos comportamentos naturalmente,… ” Gosto da maneira como constrói seus textos porque, por mais que você dê um nó em minha compreensão com tantos conceitos dá análise, que requer um estudo mais aprofundado, nas linhas finais você mastiga de um jeito que atende a todos os níveis de conhecimento, sejam dá análise ou não.
Parabéns!!