O luto dói e pode derrubar, mas superar é necessário

istock-509864876Em 1936, o poeta inglês W.H. Auden (1907-1973) escreveu e publicou Funeral Blues, um poema que ganhou popularidade após aparecer no filme Quatro Casamentos e um Funeral (Four Weddings and a Funeral, 1994) na cena em que um dos personagens homenageia o seu parceiro morto. Desde então, o poema tem sido citado como exemplo de manifestação pública de perda e luto. Está lapidado no memorial do novo estádio de futebol Heysel, em Bruxelas, onde 39 torcedores morreram na final da Copa dos Campeões da Europa, em 1985. A primeira estrofe é tão forte que o seu início já traz as palavras (Stop all the clocks) que muitas vezes substituem o título original:

“Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e ele não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão em seu cortejo atrás.”*

O luto é muito mais do que o profundo sentimento de tristeza pela morte de alguém que amamos. Além das naturais reações emocionais, pode trazer impacto cognitivo, físico, no bem-estar social. No seu livro seminal Sobre a Morte e o Morrer (On Death and Dying, 1969), a psiquiatra suíço-americana Elisabeth Kübler-Ross (1926-2004) descreveu o modelo com as cinco fases do luto: 1. negação (a pessoa não acredita que aquilo seja verdade); 2. raiva (fica irritada e frustrada consigo e com os outros); 3. barganha (“negocia” para que a perda não ocorra e promete mudar seu estilo de vida); 4. depressão (fica angustiada, isola-se e entristece); 5. aceitação (aceita a morte como uma etapa inevitável da vida).

Algumas vezes, porém, o luto pode se complicar e perdurar por um período muito maior do que o esperado. Quando a morte é violenta e súbita, a condição pode ser ainda mais difícil e persistir com grande intensidade. Embora cada um vivencie a perda de uma maneira diferente, as grandes tragédias podem nos trazer informações sobre a importância de alguns aspectos para a elaboração e aceitação do luto.

Em março de 2001, ocorreu a “tragédia de Entre-os-Rios”, com a queda de uma ponte centenária sobre o Rio Douro, no norte de Portugal. Um ônibus com 53 pessoas e três automóveis com seis pessoas caíram no rio, e todos morreram arrastados pela sua correnteza, o que causou enorme comoção. Apenas quinze corpos foram recuperados na costa da Galícia e os das outras 36 pessoas nunca foram encontrados. Dez anos após esse acidente, pesquisadores portugueses observaram que as famílias com múltiplas perdas e cujos corpos dos familiares nunca foram encontrados apresentaram maiores níveis de luto prolongado e de sintomas de stress pós-traumático e de depressão. O mesmo já havia sido verificado em estudos com os familiares de vítimas do tsunami na Ásia em 2004 e de parentes do terremoto/tsunami no Japão em 2011. Os resultados desses estudos, assim, confirmam e estendem a face mais dolorosa que as famílias de desaparecidos de ditaduras e de regimes totalitários vivenciam, pois não é possível superar plenamente todos os estágios da dor e elaborar plenamente o luto pela perda.

Esses achados têm sido apoiados por dados científicos, pois hoje se reconhece que o luto pode ter impacto na estrutura e no funcionamento do cérebro. Em um estudo controlado, observou-se que os participantes com luto não elaborado tiveram pior desempenho em testes cognitivos e apresentavam menor volume cerebral do que aqueles que passaram pelo processo de luto normal, sugerindo que há um maior impacto neurológico apenas no luto complicado. Mais recentemente, um estudo demonstrou que os indivíduos com luto persistente demonstraram alterações no funcionamento em áreas límbicas e paralímbicas do cérebro, relacionadas a ansiedade e tristeza, assim como o cíngulo anterior e a região frontocortical, áreas associadas ao processamento das emoções.

De toda forma, pode-se concluir que a perda e o luto, especialmente quando resultantes de grandes desastres, nos mostram a influência do acaso sobre todos nós e que a finitude é parte da vida. A busca pela elaboração do luto normal é um processo que, com os diversos rituais que a humanidade criou, pode transformar a dor em saudade. Isso porque, por mais difícil que seja aceitar, os relógios continuam, uma vez que, querendo ou não, o tempo não para.

Observação 1 – *Tradução de Nelson Ascher no seu livro Poesia Alheia (Rio de Janeiro: Imago, 1998).
Observação 2 – Este texto é dedicado à memória de Virgínia Edi Maffei Del Guerra

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