‘Pequeno segredo’ é o melhor filme brasileiro dos últimos anos
Toda narrativa cinematográfica ancorada em fatos reais enfrenta um duplo desafio: o de se afirmar como criação artística autônoma e, ao mesmo tempo, manter a aderência à verdade do enredo que a originou. Raras vezes no cinema brasileiro esse desafio foi superado de maneira mais feliz e delicada que em “Pequeno segredo”, de David Schurmann. Afirmando o poder e a vocação de fabulação do cinema, o filme em primeiro lugar conta uma história – história que fala diretamente ao sentimento de qualquer espectador com o coração desarmado.
Mas essa narrativa vai muito além da reconstituição linear da experiência, já em si poderosa, vivida pela família Schurmann a partir da adoção de Kat, uma menina portadora do vírus HIV: com roteiro, fotografia e interpretações impecáveis, “Pequeno segredo” cria uma trama na qual personagens e acontecimentos muito distantes (em mais de um sentido) convergem de forma comovente. Uma trama cujo significado é dado – como na vida – pelo embate permanente entre acaso e escolha, entre a vontade e o destino, entre o amor e a indiferença que se manifesta muitas vezes na forma brutal do preconceito.
Assista abaixo ao trailer de “Pequeno segredo”.
“Pequeno segredo” não conta apenas a vida de Kat já pré-adolescente, com seus questionamentos e conflitos típicos da idade intensificados pelo drama que ela própria desconhece: paralelamente, o filme conta outra história de amor e laços familiares, a de seus pais biológicos. O viajante neozelandês Robert (Erroll Shand) conheceu e se apaixonou por Jeanne (Maria Flor, no melhor papel de sua carreira) em Manaus, e a este encontro improvável se somou o acaso de um acidente que afetou tragicamente o futuro do casal. Indo morar com Robert em seu país natal, Jeanne engravida, mas tem que lidar com a hostilidade da sogra e a difícil adaptação a uma nova realidade. Quando ela conhece o casal Schurmann, de passagem pela Nova Zelândia em seu périplo marítimo, Kat é um bebê. Pouco mais tarde, a doença contraída por Jeanne numa transfusão de sangue se manifesta.
Nessa interseção entre os dois eixos narrativos, emergem, convergem e ganham sentido diversas questões subjacentes à trama: a natureza do amor e da família; a capacidade de superação; a necessidade de enfrentar a adversidade e reinventar a própria história. Por tudo isso, e pelo refinamento técnico e de linguagem que se camufla na sua simplicidade aparente, “Pequeno segredo” é, sim, o melhor filme brasileiro dos últimos anos. No estilo, na forma e no conteúdo, está plenamente credenciado para disputar e vencer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Com o apoio e a torcida, espera-se, de todos os brasileiros – mesmo daqueles que, sem terem assistido ao filme, se sentiram derrotados com sua indicação.