Estrupro: os obstáculos das vítimas de violência

mulheres-protestaram-no-rio-de-janeiro-apos-caso-de-estupro-coletivo-ter-vindo-a-tona-1464637831485_v2_615x300Apesar de avanços na legislação, o combate à violência contra a mulher no Brasil ainda tem um tortuoso e longo caminho pela frente.

O caso de estupro coletivo da jovem de 16 anos no Rio de Janeiro evidenciou algumas das principais dificuldades que as mulheres enfrentam quando tentam denunciar algum tipo de violência. Entre as principais delas estão a falta de capacitação dos agentes públicos, que muitas vezes colocam em descrédito os depoimentos das vítimas, e a exigência excessiva para se comprovar a violência, o que acaba deixando muitos agressores impunes.

“Às vezes, o processo de denunciar acaba sendo mais violento para essas mulheres do que a própria violência”, disse à BBC Brasil Silvia Chakian, promotora de Justiça e especialista em casos de violência contra a mulher. “Vivemos numa cultura que desacredita da palavra da vítima pelo simples fato de ela ser mulher. Que valor, nós todos, sociedade, instituições, sistema de Justiça, estamos dando à palavra das vítimas de violência sexual?”

Em conversa com a promotora e algumas vítimas de violência, a BBC Brasil listou alguns dos principais obstáculos que uma mulher enfrenta no processo de denúncia de um agressor:

1 – Falta de capacitação de agentes públicos

A reclamação mais comum e recorrente entre as mulheres é sobre a forma como são tratadas nas delegacias.

“Começando por ele (delegado), tinha três homens dentro de uma sala. A sala era de vidro, todo mundo que passava via. Ele colocou na mesa as fotos e o vídeo. Expôs e falou: ‘me conta aí’. Só falou isso. Não me perguntou se eu estava bem, se eu tinha proteção, como eu estava. Só falou: ‘me conta aí'”, disse a vítima de estupro coletivo ao Fantástico.

“Ele perguntou se eu tinha o costume de fazer isso, se eu gostava de fazer isso (sexo com vários homens)”, prosseguiu.
Chakian explica que não é raro ver mulheres recebendo esse tipo de tratamento ao denunciar uma violência.

“Não é incomum que elas sejam submetidas a uma desconfiança da sua palavra desde o início. Existe até um medo da vitima da estigmatização, do julgamento moral, de não ser acreditada quando procura as instituições. Isso precisa ser reconhecido e combatido”, disse a promotora.

“Vi o depoimento dessa menina dizendo que foi ouvida numa sala envidraçada, (a qual) as pessoas circulavam pra vê-la. Isso é inaceitável, é uma nova violência contra ela. Uma oitiva mal conduzida com a vítima de um crime bárbaro como esse causa inúmeros danos emocionais.”

Outro caso ouvido pela BBC Brasil, desta vez de uma vítima de violência doméstica, retratou a mesma dificuldade. Maria Fernanda (nome fictício), que sofria agressões frequentes do namorado, desistiu de denunciá-lo por causa do tratamento que recebeu na delegacia.

“Você tem certeza que vai fazer isso (denunciar)? Essas marcas aí? Estão tão fraquinhas… até você chegar no IML (para fazer exame de corpo de delito), já vão ter desaparecido. Se você denunciar, vai acabar com a vida dele. Ele vai perder o emprego e não vai adiantar nada, porque vai ficar alguns dias preso, depois vai pagar fiança e vai sair ainda mais bravo com você”, dizia o delegado a Maria Fernanda.

“Os agentes públicos – da polícia e até do Judiciário – são membros de uma sociedade machista. E reproduzem esses estereótipos às vezes no atendimento dessas mulheres. Falta capacitação”, afirmou a promotora.

O programa federal Mulher, Viver Sem Violência, lançado em março de 2013, busca amenizar esse problema: tem, entre seus objetivos, o de capacitar policiais e agentes públicos para atender melhor vítimas de violência.

Foram criadas também duas unidades – em Brasília e Campo Grande – das chamadas de Casa da Mulher Brasileira, que integram no mesmo espaço serviços especializados para os diversos tipos de violência contra a mulher: acolhimento, delegacia, Ministério Público, etc.

2 – Descrédito à palavra da mulher

A vítima do Rio foi à delegacia denunciar o crime na última quinta-feira, após a divulgação de um vídeo pelos próprios suspeitos que mostravam imagens dela nua e desacordada enquanto os rapazes conversam ao fundo. “Engravidou de 30”, diz um deles. Em uma das fotos divulgadas pelo Twitter é possível ver o rosto de um deles, que posa para a câmera em frente à menina.

Diante do delegado Alessandro Thiers, da Delegacia de Repressão de Crimes de Informática do Rio (que não cuida mais do caso), a vítima diz ter enfrentado o primeiro obstáculo.

“O próprio delegado me culpou. Quando eu fui à delegacia, eu não me senti à vontade em nenhum momento. Acho que é por isso que muitas mulheres não fazem denúncias. Tentaram me incriminar, como se eu tivesse culpa por ser estuprada”, disse a jovem em entrevista ao Fantástico.

A então advogada dela, Eloísa Samy, havia dito à BBC Brasil que, durante o depoimento da jovem, o delegado “fez perguntas que claramente tentavam culpá-la pelo estupro. Ele chegou a perguntar: ‘Você tem por hábito participar de sexo em grupo?’. Não acreditei e encerrei o depoimento”, disse a advogada.

Thiers também chegou a declarar que não estava convencido de que houve estupro: “A gente está investigando se houve consentimento dela, se ela estava dopada e se realmente os fatos aconteceram”.

Em entrevista coletiva nesta segunda-feira, a nova delegada do caso, Cristiana Bento, disse ter “convicção” de que a violência ocorreu.

“Está lá no vídeo, que mostra um rapaz manipulando a menina. O estupro está provado. O que eu quero agora é verificar a extensão dele, quantas pessoas praticaram esse crime”, disse.

A questão mais urgente apontada por Chakian é justamente o fato de a palavra da vítima de violência ser muitas vezes questionada e desvalorizada, tanto pelas instituições da Justiça quanto pela sociedade.

“As investigações podem reproduzir estereótipos de gênero. Nesse caso, existe um vídeo e, mais importante, existe a palavra dela. Por que essas mulheres continuam sendo exaustivamente questionadas, cobradas nos mínimos detalhes?

Elas têm suas palavras confrontadas o tempo inteiro, como se desde o início essa palavra não fosse digna de crédito”, disse Chakian.

Para ela, isso contribui para que os casos de violência sexual e violência doméstica sejam tão subnotificados. Segundo dados do estudo “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas 10% dos casos chegam ao conhecimento da polícia.

“Por que tanta desconfiança? Por que antes de buscar os antecedentes dos criminosos, investigamos os antecedentes da vítima?”, questionou Chakian.

“A própria sociedade mostra um julgamento comportamental nesse caso. ‘Ela estava com aquela roupa, é frequentadora de baile funk, já tinha filho de traficante’ – esses ‘argumentos’ usados nos comentários de muita gente tentam ‘justificar o crime’, mostrar que ela parecia consentir. Isso é inaceitável.”

3 – Ter de comprovar a violência

Quando consegue vencer as dificuldades de fazer uma denúncia, a mulher vítima de violência precisa passar por outro processo complexo: o de conseguir comprovar o crime. Primeiro porque alguns tipos de agressão não deixam vestígios – ou até deixam, mas esses vestígios se “perdem” rapidamente, caso ela demore alguns dias para denunciar.

O laudo do estupro coletivo, segundo informações do jornal Bom Dia Rio, feito após a denúncia da menina na polícia, teria concluído que “não houve indícios de violência” no caso. Isso porque, como ela sofreu a violência na sexta e foi denunciar uma semana depois, os indícios dos crimes já não estariam mais evidentes.

“Há um trauma muito grande no que essas mulheres vivem e isso faz com que elas demorem para denunciar. Mas temos que mudar esse pensamento de que é preciso comprovar essa violência com testemunha e com prova pericial. Temos que avançar pra dar credibilidade à palavra dessas mulheres”, opinou Chakian.

Além disso, algumas marcas são “facilmente contestáveis” por advogados de defesa. “Muitas vezes a discussão fica em torno do consentimento (da vítima). (Mas há) a violência que acontece entre quatro paredes, sem testemunha”, explicou a promotora.

“Aqui, a vítima tem que dar sinais de que está rejeitando a relação sexual. A lei diz que só configura estupro mediante uso da violência ou grave ameaça. Na prática, isso significa que são essas mulheres que têm de comprovar que rejeitaram o ato sexual, e isso é cruel. As circunstâncias deveriam comprovar.”

“No Canadá, por exemplo, a legislação avançou para o ‘Yes Means Yes’ (Sim significa sim). Ou seja, o consentimento precisa ser expresso e afirmativo. Se a vítima não dá evidências de consentimento, se ela não contribui para a relação, é estupro. Por exemplo, se a menina está bêbada ou desacordada, com os braços repousados, isso não é símbolo de consentimento”, explicou a promotora.

Segundo Chakian, muitas vezes, no julgamento de casos assim, acaba prevalecendo o “conservadorismo comportamental”.

“Dizem: ‘ah, mas ela não se deu o respeito’. Mas como assim? Se ela está pelada, de saia curta ou coberta até o pescoço, ela tem que ser respeitada do mesmo jeito. Consentimento nunca pode ser sinônimo de submissão. Drogas, álcool, sono, isso são circunstâncias que retiram a capacidade da vítima consentir voluntariamente. Ela se torna vulnerável. E esse caso é de estupro de vulnerável”.

4 – São 368 Delegacias da Mulher para 5,5 mil municípios no Brasil; e elas não funcionam 24h, nem aos finais de semana

A DDM (Delegacia da Mulher) foi criada para proporcionar um atendimento diferenciado às mulheres vítimas de violência. Em teoria, em unidades especiais da polícia civil criadas só para atender esses casos, a mulher recebe um acolhimento mais adequado.

No entanto, essas delegacias especiais, em geral, funcionam somente no horário comercial. Em São Paulo, por exemplo, elas fecham em horários variados, entre 18h e 20h.

Aos finais de semana – quando ocorrências de estupro ou violência doméstica são mais frequentes -, as DDMs estão fechadas, o que obriga mulheres a esperar alguns dias para fazer a denúncia ou então a recorrer às delegacias tradicionais, como foi o caso de Maria Fernanda.

Além disso, o número de Delegacias da Mulher no país ainda é bastante restrito. Milhares de cidades não contam com unidades especiais desse tipo – são 368 espalhadas por 5.597 cidades brasileiras.

Sem uma DDM por perto, novamente a mulher é encaminhada para uma delegacia tradicional, onde há menos preparo para lidar com casos do tipo.

5 – O agressor nem sempre é punido

A dificuldade em comprovar a violência parece se refletir nos dados que comparam o número de denúncias com o de agressores punidos.

Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 6.778 homens estavam presos por crimes de estupro até junho de 2014. Para se ter uma ideia, também em 2014, houve 47,6 mil casos de estupro no país, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“Temos que melhorar a efetividade da lei. E, ao mesmo tempo, incorporar no sistema de Justiça aquilo que chamamos de olhar de gênero na apuração do caso. Olhar a mulher sob esses aspectos, do trauma, da vergonha, do julgamento, E colocar a vítima no centro da investigação”, disse Silvia Chakian.

BBC

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