Como a saída de Dilma muda o panorama político na América Latina
O afastamento temporário da presidente Dilma Rousseff representa um ponto de inflexão no panorama político da América Latina, encerrando um ciclo de poder dominado pela esquerda.
A opinião é de especialistas ouvidos pela BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Segundo eles, governos de tendência política mais liberal devem retomar gradativamente espaço.
Uma indicação desse novo direcionamento foi dada na sexta-feira com dois comunicados, quase simultâneos, divulgados pelo Itamaraty.
Agora sob o comando do senador José Serra, o órgão rejeitou duramente as manifestações dos governos de Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, além de outras entidades internacionais, sobre o afastamento de Dilma, chamando de “falsas” as interpretações de que o impeachment seria um golpe de Estado.
No mesmo dia, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, chamou de volta ao país o embaixador no Brasil. Na linguagem diplomática, a convocação de um embaixador é considerada um sinal forte de desagrado.
“O Brasil é um ponto de inflexão”, afirma à BBC Mundo Paulo Velasco, professor de Relações Internacionais da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), em referência ao impacto da saída de Dilma sobre o panorama político da América Latina. A petista está suspensa do cargo por até 180 dias enquanto enfrenta julgamento no Senado.
“Depois de quase 20 anos de governos progressistas na América do Sul, a tendência é que (os governos) voltem à direita e centro-direita, governos mais liberais. E temos que ver como isso vai funcionar”, acrescenta.
Progressismo
Segundo especialistas, três grandes processos deram forma e impulso à chamada “virada progressista” na América Latina ─ ou pós-neoliberal, como dizem alguns especialistas ─ e uma sequência de projetos de enfoque regional: o chavismo na Venezuela, o petismo no Brasil e o kirchnerismo na Argentina.
A vitória eleitoral de Hugo Chávez na Venezuela, em 1998, que deu início a um ciclo marcado pela chegada ao poder de organizações ligadas à esquerda.
Em janeiro de 2003, Luiz Inácio Lula da Silva assumia a Presidência do Brasil e levava ao poder pela primeira vez o Partido dos Trabalhadores.
No mesmo ano, em maio, o peronista Néstor Kirchner, morto em 2010, assumiu a presidência da Argentina.
Como resultado de uma nova correlação de forças regional, na 4ª Cúpula das Américas, em 4 e 5 de novembro de 2005, em Mar del Plata, foi assinado o documento que marcou o fim do projeto da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
O projeto, um extensão do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, havia sido promovido pelos EUA e muito criticado por Lula, Kirchner e Chávez.
E quase no fim daquele ano, o sindicalista cocaleiro e ativista indígena Evo Morales foi eleito presidente da Bolívia.
Em 2006, Michelle Bachelet chegou ao poder no Chile, dando início a uma série de políticas sociais.
E o eixo se fortaleceu em 2007, quando Rafael Correa assumiu o cargo no Equador e quando Cristina Kirchner sucedeu seu marido Néstor na presidência da Argentina.
“Mas agora (esse cenário) se rompe completamente”, destaca Velasco.
Liberalismo?
Para os especialistas, a mudança teve início em novembro de 2015, com a vitória de Mauricio Macri na Argentina, pondo fim a 12 anos de kirchnerismo.
De fato, o governo argentino foi um dos primeiros a reconhecer a sucessão presidencial brasileira.
“O governo argentino manifesta respeito ao processo institucional que está se desenvolvendo e confia que o desenlace da situação consolide a solidez da democracia brasileira”, disse um curto comunicado da chancelaria argentina.
Enquanto isso, o sucessor de Chávez, que morreu em 2013, Nicolás Maduro, enfrenta uma grave crise econômica e a oposição pede um referendo revogatório para adiantar o fim de sua gestão.
Além disso, em janeiro a oposição assumiu o controle do parlamento pela primeira vez em 17 anos de hegemonia chavista.
E, em fevereiro, Evo Morales perdeu uma batalha eleitoral pela primeira vez em mais de dez anos: o referendo com o qual pretendia abrir a porta de uma reforma constitucional para poder voltar a concorrer nas eleições.
A derrota ocorreu apesar dos altos índices de aprovação a Morales nas pesquisas eleitorais.
Em junho, no segundo turno das eleições gerais do Peru, Keiko Fujimori pode superar a sombra de seu pai ─ Alberto Fujimori, preso por assassinato, sequestro e lesões corporais graves ─ ganhar a presidência, tirando Ollanta Humala de cena.
Além disso, os escândalos de corrupção desgastaram o brilho do que fora uma das figuras mais respeitadas do continente, a mandatária chilena Michelle Bachelet.
Algo que também ocorreu com o equatoriano Correa.
‘Imperativo econômico’
Para João Augusto de Castro Neves, especialista em América Latina da consultoria política Eurasia Group, as mudanças se devem ao que ele chama de “imperativo econômico”.
“(O fenômeno) tem um componente sistêmico, que é o freio da economia”, diz.
Ele prefere falar de um movimento em direção ao pragmatismo em vez de um deslocamento para a direita.
Ingrid Bleynat, dos Instituto de Desenvolvimento Internacional do King’s College de Londres, também diz que a economia é o motor da mudança. “O mais determinante é o que acontece com a economia”.
“Está claro que, para a Venezuela, mais importante do que o que acontece no Brasil é o que ocorre com os preços do petróleo”, afirma.
E, segundo os especialistas, o fim da década dourada das matérias-primas tem muito a ver com a mudança de cenário.
As economias latino-americanas cresceram, entre 2003 e 2012, acima de 4%, segundo dados da Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), organismo independente da ONU responsável por promover o desenvolvimento econômico e social da região.
Desde a década de 1960, a região não havia registrado um período de crescimento tão intenso.
Apesar disso, as previsões do Fundo Monetário Internacional sinalizam que a economia latino-americana acabará 2016 com uma contração de 0,3%.
E a principal causa é a queda das matérias-primas.
Entre 2011 e 2015, a queda dos preços dos metais, petróleo, gás e do carvão foi de quase 50%, segundo a Cepal.
No caso concreto do preço do petróleo cru, o barril venezuelano teve um pico de 103,42 dólares por barril em 2012, o que significou para o país uma receita de US$ 48 bilhões.
E a queda foi terrível para as finanças públicas, pois em 2015 esta receita despencou para US$ 12,5 bilhões.
Da mesma forma, há menos de quatro anos o Brasil foi declarado a sexta maior economia do mundo e seu ministro da Economia naquela época dizia que antes de 2015 o país ultrapassaria a França e subiria para a quinta posição. Mas as economia brasileira está estagnada desde então.
Corrupção
De acordo com Jorge Castañeda, ex-secretário das Relações Exteriores do México entre 2000 e 2003, as “derrotas” dos governos chamados progressistas não ocorreram apenas por causa da situação econômica. Atualmente, Castañeda é professor da Universidade de Nova York.
“Muitos líderes de esquerda da América Latina caíram devido à corrupção endêmica na região e por subestimar a crescente intolerância a isso”, escreveu o professor em um artigo para o jornal americano The New York Times.
“Quando alguns dos governos, como o do Chile e da Bolívia, começaram a se concentrar no problema já era tarde demais.”
Em parte também o Brasil está nesta situação pois o governo de Dilma Rousseff e o PT foram implicados no enorme caso da Petrobras, nas investigações da Lava Jato entre outros.
Como consequência da mudança de governos, a América Latina “vai começar a ser menos relevante em arenas internacionais, por este mesmo detrimento do projeto de integração regional”, segundo Ingrid Bleynat, no King’s College de Londres.
“A ideia do Mercosul, da Unasul e tudo isto vai mudar sensivelmente”, acrescentou Velasco, da Uerj.
De acordo com o professor, é quase garantido que o próximo governo brasileiro não dará “a mesma importância que os chanceleres de Lula e Dilma deram à ideia do Mercosul e da Unasul”.
Castro Neves, do Eurasia Group, acredita que estas organizações “vão ter que deixar de ser politizadas e passar a ser mais pragmáticas, se concentrar no econômico”.
Mudança de relações
Segundo os especialistas, a política exterior da região também deve mudar.
A proposta de Macri visa claramente a Aliança do Pacífico, o eixo Estados Unidos-Europa, de acordo com analistas.
E Velasco afirma que, caso Dilma Rousseff seja definitivamente afastada, o Brasil vai seguir o mesmo caminho da Argentina.
“Na política externa vai haver um destaque muito maior aos países tradicionais para o Brasil, sobretudo fora da América Latina, (tendo destaque) os Estados Unidos e países europeus”, afirmou.
“A América Latina perde um pouco o peso que tinha para o Brasil nos últimos anos”, da mesma forma que o país perdeu peso na região, disse o professor da Uerj.
Também haverá mudanças nas relações internas.
“Vai mudar a relação com a Venezuela, Bolívia e Equador”, disse Velasco.
A Venezuela teve um apoio muito importante do Brasil, que ajudou o país a entrar no Mercosul e vendeu produtos para os venezuelanos nos momentos de desabastecimento.
Mas o novo ministro das Relações Exteriores, José Serra, é um senador do PSDB, um partido que já criticou abertamente a proximidade e os negócios do Brasil com a Venezuela e com Cuba.
Políticas sociais
“Estamos sendo testemunhas do avanço da direita, mesmo que seja momentâneo”, disse Ingrid Bleynat, do King’s College.
Mas ela acrescenta que “isso não deveria afetar as políticas sociais” implementadas pelos governos chamados “progressistas”.
“Pelo menos não para políticas tão bem estabelecidas como o Bolsa Família no Brasil (…) que foi aprovada com o apoio de todo o arco político”, acrescentou.
Castro Neves, do Eurasia Group, concorda mas acrescenta que estas políticas “deverão ser revisadas”.
“O que veremos são outras medidas que atentem contra os interesses das classes populares”, disse Bleynat.
Fonte: BBC