Liberação da maconha medicinal pode chegar antes do ano novo
O uso medicinal da maconha pode ser regulamentado no Brasil antes da virada do ano. A expectativa é de pais que, desde o início de 2014, cobram urgência na mudança das normas, já que seus filhos sofrem tipos graves de epilepsias e podem ser beneficiados por medicamentos à base da Cannabis sativa. A pressão já garantiu maior agilidade nas autorizações especiais e na liberação da prescrição por algumas especialidades médicas. Mas a lista de demandas continua grande, pois a burocracia e a desarticulação entre os órgãos ainda posterga o acesso a uma esperança de melhora.
Para o ano que vem, a novidade é que eles se organizaram: ontem, foi oficialmente criada uma associação brasileira para reunir pais e usuários da maconha medicinal. Isso porque, de um tema até então esquecido do debate público, hoje é opção de tratamento para cerca de 500 famílias no país, segundo estimativa do psiquiatra Antonio Zuardi, pesquisador do potencial terapêutico da erva e palestrante da última edição dos Encontros O GLOBO.
— Em 1980, o grupo do pesquisador Elisaldo Carlini fez o primeiro estudo em pacientes resistentes a tratamentos habituais de epilepsia. Mas ele ficou esquecido todo este tempo e foi redescoberto recentemente por famílias de crianças com crises epilépticas graves — lembrou Zuardi, professor Psiquiatria da USP de Ribeirão Preto, durante evento na Casa do Saber O GLOBO.
Uma das definições mais aguardadas é a reclassificação, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do canabidiol (CBD), presente na maconha. Da lista de substâncias proibidas, ele passaria a ser de uso controlado. Na prática, isso garantiria que os pais pudessem importar produtos com CBD sem a necessidade de autorizações especiais.
Na próxima quinta-feira, haverá uma reunião pública da diretoria colegiada da Anvisa, em Brasília, para avaliar a reclassificação do CBD. A primeira ocorreu em 29 de maio, mas não teve resultado prático.
— Vou a Brasília porque, enfim, a Anvisa deverá reclassificar o CBD — anima-se Maragerete Brito, mãe de Sofia, portadora de CDKL5, doença rara que tem como um dos sintomas crises de epilepsia, as quais foram reduzidas à metade após a importação clandestina do produto. — Estamos tendo avanços porque a pressão social tem sido muito forte.
Hoje, já é possível ter autorização, em caráter excepcional, para importação do produto. Segundo a Anvisa, de 297 pedidos, 238 foram aprovados. Um dos entraves, no entanto, é que, para conseguir essa autorização, é preciso ter uma prescrição médica. Como se trata de substância proibida, são poucos os que aceitam fazer a receita. Foi por isso que, na quinta-feira, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou resolução autorizando a prescrição — no entanto, apenas por algumas especialidades médicas (psiquiatria, neurocirurgia e neurologia), em casos de epilepsias que não respondam a tratamento convencional e a menores de 18 anos. O que era para ter resolvido um impasse acabou recebendo críticas.
— O conselho perdeu uma ótima oportunidade de estar mais perto dos pacientes. A resolução é uma decepção, é absolutamente restrita — cobra o cirurgião oncológico Leandro Ramires, cujo filho, Benício, de 6 anos, sofre de síndrome de Dravet. — As instituições precisam se articular e definir uma regulamentação.
Ramires se refere à Anvisa e ao CFM, mas também à Receita Federal, já que um dos entraves é a liberação do produto na alfândega. Um dos casos é de Júlia Merquior, mãe de Helena, de 8 anos, que sofre de epilepsia refratária. Ao tentar importar um produto com CBD, que custaria US$ 100, lhe foi cobrada a cifra de R$ 11.468,97 pela empresa do serviço de remessa. Com a Receita Federal ela sequer conseguiu contato direto.
— Não pudemos pagar a quantia, então o produto não foi liberado. Com esse dinheiro, poderia ir até os EUA e voltar com o remédio — reclama Júlia, que revela que a filha reduziu o número de crises em 50%.
Quando questionada sobre as dificuldades de pais com relação ao CBD, a Receita apenas responde enviando a lista de regras padrões de importação de medicamentos e suas taxas correspondentes, sem sequer citar a substância em questão.
Enquanto as instituições demoram a tomar decisões e discutir como lidar com essa demanda, as pesquisas científicas com a cannabis, muitas das quais brasileiras, avançam velozmente. Há diversos estudos com CBD revelando seu potencial para reduzir sintomas ou tratar distúrbio do sono, fobia social, epilepsia grave, psicose, mal de Parkinson etc.
O CBD não é o único componente com potencial terapêutico da maconha. Ao todo, são 80 substâncias (os chamados canabinoides) presentes na planta. E há estudos até mais avançados com o tetraidrocanabinol (THC), que é o responsável pelo seu efeito psicotrópico. No plano medicinal, há indicações de uso para náusea e vômito em pacientes com câncer que passam por quimioterapia; aumento de apetite em portadores de HIV; redução de dores crônicas, controle de rigidez muscular em algumas doenças, entre outros.
O número de estudos cresceu exponencialmente a partir dos anos 90, após a descoberta dos canabinoides. Mas seu uso, na realidade, remonta há mais de quatro mil anos. Até as primeiras décadas do século XX, a maconha era usada como erva medicinal, inclusive no Brasil. Mas foi proibida em diversos países, a começar pelos EUA, na esteira da forte política de repressão ao uso recreativo.
Também palestrante do evento do GLOBO, a psiquiatra Analice Gigliotti, chefe do setor de dependência química da Santa Casa do Rio, explica que, no passado, a maconha fumada era usada com fim medicinal, o mesmo que é liberado em alguns estados americanos, o que é bem diferente do isolamento de substâncias específicas para a produção de remédios.
— Existem estudos mostrando que substâncias da maconha podem tratar doenças, mas é um contrassenso prescrever maconha fumada, que traz males à saúde, principalmente a adolescentes, e causa dependência — diz a psiquiatra. — É importante estarmos atentos aos diferentes níveis de liberação: uso medicinal, descriminalização, despenalização… E notarmos quando o lobby para a liberação da venda está usando a seu favor a campanha da maconha medicinal.
Para o cardiologista e curador dos Encontros O GLOBO, Cláudio Domênico, o debate ganhou fôlego este ano e deverá continuar no próximo.
— A princípio, nenhum médico hoje tem resistência ao uso das substâncias da maconha para tratar crises convulsivas, mas sobre o uso recreativo não há consenso entre psiquiatras, e o debate ainda é longo — conclui Domênico.
Fonte: O Globo