Denúncias mostram desvio em cidades devastadas por enchente

8058_ext_arquivoEm 2010, uma enchente terrível devastou muitas cidades do interior de Alagoas e de Pernambuco. Uma situação dramática, que o Fantástico mostrou para todo o país. Milhões em dinheiro público foram enviados para reconstruir esses lugares.

Quatro anos depois, o Fantástico voltou lá, e sabe o que encontramos? Postos de saúde que não atendem ninguém, escolas caindo aos pedaços e verbas que saíam da prefeitura, para pagar serviços que jamais foram feitos.

Junho de 2010, Alagoas. “A água toma conta do centro da cidade. A população entra em pânico”, disse um morador na época.

Alagoas, hoje, quatro anos depois. Um posto de saúde foi construído justamente para atender as famílias das vítimas da enchente. Mas o posto está com portas quebradas e pedaços de madeira espalhados pelo corredor, em uma situação de abandono.

Junho de 2010, Pernambuco. “O que chama a atenção aqui é que estamos no segundo andar do prédio do hospital e olha só a quantidade de lama”, disse o repórter na época.

Pernambuco, hoje, quatro anos depois.

“Um buraco enorme no teto. Chove dentro do prédio”, mostra o repórter.

Fantástico volta nas cidades que visitou há quatro anos

São obras atrasadas. Além de desperdício e desvio de dinheiro público que afetam a vida de famílias inteiras. Gente que primeiro tinha sido vítima da natureza. Depois, chegaram R$ 3,5 bilhões para educação, saúde para reconstruir as cidades.

Mas… Fiação elétrica exposta e mais buraco no teto. E é assim que os alunos estudam aqui em uma das escolas destruídas na cidade de Palmares.

A enchente de 2010 no Rio Mundaú atingiu 19 cidades alagoanas e 68 de Pernambuco. Quase 100 mil pessoas ficaram desabrigadas, 45 morreram. O Fantástico voltou nas cidades que visitou há quatro anos, para ver que fim levou o dinheiro da reconstrução.

Santana do Mundaú, Alagoas, 11 mil habitantes. Mais de 700 crianças estudam na beira do rio que transbordou em 2010. É uma área de risco, condenada pela Defesa Civil. Os alunos não deveriam estar no local. Mas veja só o que aconteceu. Fotos mostram o colégio novo, pronto para receber os estudantes. Mas de uma hora para outra, a escola caiu.

“A construtora já assumiu o erro, o equívoco que teve na falta de estudo de solo, já notificamos e isso não vai ter nenhum custo para o estado”, disse o coordenador do Programa de Reconstrução de AL, Herbert Motta.

Quatro anos depois da tragédia em Alagoas, das 55 escolas destruídas pela cheia, 14 ainda não foram entregues pelo Governo de Alagoas.

Fantástico: O senhor acha que nesse prazo não era para estar tudo pronto, secretário?
Herbert Motta: Tivemos várias dificuldades não só climáticas como de terreno. E o compromisso do governo é que a gente entregue, feche esse ano, entregando 100 % dessas unidades.

Dinheiro para escola existe, mas a obra ainda não começou

O Fantástico também esteve em Pernambuco, na cidade de Palmares, com 62 mil habitantes. A escola que foi mostrada no início da reportagem é uma das quatro que ainda não foram reconstruídas em Palmares. Os alunos seriam transferidos para uma nova. Dinheiro tem, mas a obra nem começou.

A equipe do Fantástico entrou em uma sala que tem um buraco no teto, que pega praticamente toda a parte da frente da sala, até a mesa da professora.

O prefeito de Palmares disse que a construção das novas escolas é responsabilidade do estado. E agora, quatro anos depois da enchente, faz uma promessa.

“A gente vai pegar esses alunos, colocar em outro espaço, enquanto se constrói a nova escola”, destaca o prefeito de Palmares, João Bezerra, do PSB.

O governo de Pernambuco disse que as escolas de Palmares só devem ficar prontas em outubro do ano que vem. De volta a Alagoas, mais uma escola caindo aos pedaços.

Fantástico: Tudo meio precário, a impressão que dá é que a escola está desmontando.
Luciene dos Santos, diretora da escola: Está desmontando porque está passando tempo, ninguém fez nada.

O colégio fica em Rio Largo, 75 mil habitantes. O Fantástico chegou no horário das aulas.

“Nós temos 722 alunos”, diz a diretora da escola Luciene dos Santos.

Fantástico: 722? Só um banheiro?
Luciene: Só um banheiro.
Fantástico: Merenda é servida ao lado do banheiro?
Luciene: Do lado do banheiro.
Fantástico: Cheio de buraco no telhado. Quer dizer que quando chove então?
Luciene: Alaga tudo.

Unidade de saúde que custou R$ 500 mil está abandonada

A construção da nova escola ficou parada por vários meses. Segundo o prefeito de Rio Largo, o motivo foi uma crise política. Crise que envolve o próprio prefeito. Acusado de irregularidades, como improbidade administrativa e formação de quadrilha, ele chegou a ser preso em 2012 e passou um ano e meio afastado da prefeitura. E na saúde, mais problemas e dinheiro jogado fora. Uma unidade está abandonada, no meio do mato. E sabe quanto custou? Quase R$ 500 mil.

Um outro Posto de Saúde era para atender os moradores de Rio Largo, depois da enchente de 2010. Foi até inaugurado, mas nunca recebeu um paciente. Móveis e equipamentos foram roubados.

“A gente já está em contato com a Secretaria de Estado de Saúde para que a gente possa, verdadeiramente, refazer o que tem que fazer e entregar para comunidade”, diz o prefeito de Rio Largo, Toninho Lins, do PSB.

Em Rio Largo, outro problema são ônibus escolares novinhos, que foram enviados pelo Governo Federal em janeiro.

Só que até agora são pelo menos sete ônibus parados, estacionados, que deveriam estar levando os estudantes para as escolas mas eles estão parados. O motivo, segundo o prefeito, é que os ônibus não têm seguro. “Nós estamos fazendo essa licitação que demanda de uma série de tempo para que a gente possa colocar efetivamente esses ônibus para rodar”, afirma o prefeito de Rio Largo.

Enquanto os novos não circulam, a prefeitura gasta mais de R$ 100 mil por mês com o aluguel de ônibus particulares.

“Havendo esses dois gastos de dinheiro público, inclusive envolvendo verbas federais, no caso da aquisição dos ônibus com certeza está havendo um dano ao erário e um ato de improbidade administrativa”, destaca o procurador da República Leandro Mitidieri.

MP sabe que famílias que moram em casas populares não foram vítimas da enchente

O Fantástico foi até União dos Palmares, Alagoas, com 62 mil habitantes. Foi nessa cidade que a água destruiu o maior número de casas em 2010: quase cinco mil.

Seu João e Dona Teresa perderam tudo e moram hoje no que sobrou da casa deles. O local está condenado pela Defesa Civil. O casal quer sair e tem direito a uma casa nova no conjunto habitacional construído para as vítimas da enchente.

Fantástico: Eles falam o quê?
João da Silva, desempregado: Tenha paciência. O seu cadastro está correto.
Fantástico: O senhor quer o que é do senhor…
João da Silva: Eu quero o que é meu.

Por que será então que o Seu João e a Dona Teresa não se mudam?

O Fantástico foi até um dos novos conjuntos de União dos Palmares. Muitas casas estão vazias, outras foram invadidas e algumas estão abandonadas. Mais dinheiro público jogado no lixo.

Uma das casas está completamente abandonada. Roubaram as janelas, as portas. Não tem nada dentro do local.

O Ministério Público já sabe que muitas famílias que moram nas casas populares em União dos Palmares e em outras cidades não foram vítimas da enchente.

E como o cadastro é de responsabilidade das prefeituras, a suspeita é que alguns imóveis foram liberados em troca de votos.

Prefeitura de União dos Palmares teria usado notas fiscais suspeitas

E foi em União dos Palmares que o Fantástico encontrou a denúncia mais grave de corrupção: políticos são acusados de fazer uma farra com o dinheiro público. A prefeitura teria pago por serviços que nunca foram realizados. E para tentar legalizar a fraude, usou notas fiscais bem suspeitas.

“Mil e duzentas notas fazem parte desse esquema de corrupção. O desvio chega a R$ 10 milhões no ano de 2013”, diz o relator da Comissão de Inquérito, vereador Paulo César Oliveira, do PMN.

Em uma das notas fiscais, aparece o pagamento de R$ 2,5 mil para a construção de 10 banheiros na escola Manoel Rosa da Paz. O Fantástico foi até lá.

Fantástico: Esses 10 não existem?
José Cizinho, diretor da escola: Não. Banheiro que existe, que foi construído pelo município, são esses aqui.
Fantástico: Só?
José Cizinho: Só.
Fantástico: Foram construídos em 2012, junto com a escola.
José Cizinho: Aqui faltam 10 banheiros.

O Fantástico procurou o prefeito de União dos Palmares.

“São 10 banheiros ou 10 chuveiros?”, pergunta o prefeito de União dos Palmares, Carlos Alberto Baia.

Fantástico: Não, 10 banheiros.
Prefeito: Dez banheiros, né? Será investigado, será apurado e o responsável será responsabilizado.

Pagamentos de serviços nunca executados

Também há outros pagamentos suspeitos, de serviços nunca executados. Como a construção de sala de aula, instalação de aparelhos de ar-condicionado e transporte de alunos e professores.

Fantástico: Teve instalação de ar condicionado aqui na escola?
Funcionária: Não.

E como explicar uma nota fiscal de R$ 2.5 mil? Entre as despesas da prefeitura, aparece o pagamento de um reboque de caminhão usado para transportar cana. Na nota fiscal, consta que esse reboque foi usado em duas viagens para levar alunos de União dos Palmares até Recife, um trajeto de 225 quilômetros.

A Câmara criou uma CPI para apurar o caso. Entre os investigados, está este homem, pai de um vereador da cidade. O nome dele aparece em várias notas e com prestação de serviços diferentes. Em uma de R$ 2 mil, ele teria transportado professores a um evento. O Fantástico checou a placa do veículo e descobriu que é de uma moto.

Fantástico: Queria saber se o senhor tem uma moto, prestou serviço para prefeitura?
“Isso foi um erro de digitação mais nada a declarar”, diz o comerciante Carlos Alberto Basilo.

Fantástico: O senhor recebeu quanto por isso, para transportar?
Comerciante: Eu nem lembro que isso foi direto para conta. Eu não sei. Não estou bem a par do valor não.
Fantástico: É dinheiro público, o senhor não acha que deveria dar satisfação disso?
Comerciante: Sim. Exatamente. Na hora que precisar de esclarecimento, vai ser dado.

Erro de digitação? O Fantástico investigou outras notas. Pela placa, localizamos um carro. No papel, ele teria sido usado para transportar professores, em 2013, por R$ 2 mil. A dona do carro diz que não é nada disso. Ela mora em Ibirité, Minas Gerais, a mais de 1.8 mil quilômetros de União dos Palmares.

“Nessa data aí, 2013, setembro, ele já estava na agência para vender. Nunca saiu de lá, não. Eu acho uma safadeza muito grande, muito grande mesmo”, afirma a funcionária pública Leila Barbosa.

Prefeito alega que tudo não passou de erro de digitação

O Fantástico também conferiu uma nota de R$ 3,5 mil, novamente para transportar professores. E encontramos mais uma moto. Agora, em Maranguape, no Ceará, a quase 900 quilômetros de distância.

“Nunca emprestei essa moto para sair do município também pior ainda. Nunca, nunca, nunca. Ela nunca saiu daqui, de Maranguape”, diz a professora Marilúcia de Andrade.

O secretário de Educação foi afastado. O prefeito de União dos Palmares alega que tudo não passou mesmo de erro de digitação na hora de emitir as notas.

Fantástico: Errar dezenas de notas, o senhor não acha estranho?
Prefeito: O inquérito administrativo que nós estamos fazendo vai apurar isso ai e ver quem é o responsável por esse desmando.
Fantástico: E o senhor não sabia de nada?
Prefeito: Não sabia.
Fantástico: Mas o senhor não se sente constrangido de não saber de nada?
Prefeito: Muito, muito, muito constrangido.

Enquanto isso, em União dos Palmares, uma escola está sem água desde o início do ano. O motivo: a falta de um equipamento simples para bombear água do açude. E na cidade, alunos vão para aula em paus de arara. Os caminhões não têm nenhuma segurança.

Jovem diz como se sente ao ir para escola de pau de arara

Fantástico: Os alunos vão continuar de pau de arara?
Prefeito: Até a gente ter uma estrada vicinal que dê condição de um ônibus transitar.

Quatro anos depois de passar por uma grande calamidade – vivendo hoje em meio a obras atrasadas, denúncias de corrupção e tendo que ir para escola de pau de arara – um jovem diz como se sente: “Rapaz, o cara se sente um pouco meio inferior aos outros, porque têm uns que vêm no conforto enquanto nós estamos vindo no caminhão”, destaca o estudante Jerônimo Marques.

 

 

 

Fonte: G1

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *