Quem inventou o horário de verão, que pode voltar a ser adotado no Brasil?
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve decidir nesta semana sobre uma eventual volta do horário de verão.
A medida foi colocada em discussão pelo governo devido à seca recorde que assola o país e à proximidade do período do calor mais intenso.
A seca diminui o nível dos reservatórios hidrelétricos, principal fonte de energia elétrica no Brasil. Já o calor aumenta o consumo de energia, devido ao uso mais frequente de eletrodomésticos como o ar-condicionado.
O horário de verão foi extinto no país em 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (PL). À época, a equipe de Bolsonaro argumentou que a economia de energia coma prática era baixa e não justificava a adoção da medida.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o Operador Nacional do Sistema (ONS) vão apresentar nos próximos dias um estudo sobre o horário de verão nas atuais circunstâncias. A decisão final caberá a Lula.
Mas quem inventou o horário de verão? E quando ele foi adotado pela primeira vez?
Um britânico com uma ideia
Era uma vez um construtor de classe média que morava no subúrbio de Chislehurst, no sudeste de Londres.
Seu nome era William Willett (1856-1915). E, não fosse por ele, os britânicos – e um quarto do planeta, incluindo o Brasil até 2019 – talvez nunca tivessem adotado o horário de verão.
Willett adorava espaços ao ar livre. Ele andava a cavalo em uma manhã de verão em 1905, quando observou que muitas cortinas permaneciam fechadas, evitando que a luz do sol entrasse nas casas.
Ele teve então uma ideia: por que não adiantar os relógios antes do início do verão?
Willett não foi o primeiro a idealizar essa medida. Civilizações antigas já reduziam e aumentavam a duração dos dias, dependendo da estação. Na Roma Antiga, por exemplo, uma hora poderia durar 44 minutos no inverno e 75, no verão.
Em 1895, o entomólogo neozelandês George Hunter propôs uma mudança de duas horas, mas sua ideia foi ridicularizada.
E, seis anos depois, em 1901, o rei britânico Eduardo 7º (1841-1910) atrasou os relógios em 30 minutos em Sandringham, no Reino Unido (onde fica uma das residências reais), para poder passar mais tempo caçando.
Mas coube a Willett fazer com que o horário de verão fosse finalmente adotado.
Em 1907, ele publicou um panfleto independente intitulado Waste of Daylight (“Desperdício da Luz do Dia”, em tradução livre), defendendo que os relógios fossem adiantados no Reino Unido quatro vezes em abril, em 20 minutos a cada vez, retornando da mesma forma ao horário normal em setembro.
Willett defendia que, além de aumentar as oportunidades de lazer, a medida reduziria os gastos com iluminação.
Seus apoiadores incluíam políticos importantes – entre eles, dois futuros primeiros-ministros britânicos: David Lloyd George (1863-1945) e um jovem chamado Winston Churchill (1874-1965), à época presidente da Câmara de Comércio.
O criador de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle (1859-1930), também manifestou seu apoio durante as discussões do projeto de lei do horário de verão, embora ele desaprovasse os incômodos ajustes parciais de Willett.
“Uma única alteração de uma hora seria um número redondo e causaria menos confusão”, afirmou Conan Doyle ao comitê que examinava a proposta.
Entre os seus oponentes, estava o então primeiro-ministro Herbert Asquith (1852-1928). O projeto de lei acabou rejeitado em 1909 por uma pequena margem e as propostas apresentadas posteriormente tiveram o mesmo destino.
Mexer com o tempo, aparentemente, era uma mudança radical demais para a época, mesmo com um governo liberal de caráter reformista. Mas Willett era incansável e continuou a defender ardentemente o horário de verão no Reino Unido, na Europa continental e nas Américas, até sua morte por influenza, em 1915.
Apenas um ano depois da morte de Willett, uma versão revisada de sua proposta foi finalmente aceita, impulsionada pela circunstância mais extenuante de todas: a guerra.
Dois anos após o início da Primeira Guerra Mundial, o Reino Unido sofria séria escassez de carvão, a principal fonte de energia para as indústrias e residências do país.
“Além do aumento da demanda para abastecer a Marinha, as ferrovias e a indústria armamentista, o Reino Unido precisava fornecer carvão para os aliados, cujas minas foram tomadas pela Alemanha, sem falar nos milhares de mineiros que se apresentaram como voluntários para a guerra”, conta o professor de história David Stevenson, da London School of Economics.
As ideias de Willett prometiam um alívio, com menos demanda pela iluminação a carvão.
A Alemanha aprovou a lei do horário de verão no dia 30 de abril de 1916 e o Reino Unido adotou a mesma medida logo em seguida, em 17 de maio. Esse tipo de imitação era comum, segundo Stevenson.
“O Reino Unido vinha tomando [ideias] emprestadas da Alemanha há muito tempo”, explica o professor. “Muitos políticos e intelectuais britânicos eram fascinados pelo país, como um exemplo de eficiência nacional superior.”
Segundo a nova lei, os relógios seriam adiantados em uma hora à frente do horário de Greenwich (GMT, na sigla em inglês), durante o horário de verão britânico.
Vários outros países europeus acompanharam rapidamente a medida, além dos Estados Unidos (que criaram a famosa expressão “adiantar na primavera, retroceder no outono”), Uruguai, Nova Zelândia, Chile e Cuba.
Dobrando a aposta
O Reino Unido vivenciou alterações ocasionais do horário de verão ao longo do século 20.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o país adiantou os relógios em duas horas em relação ao horário GMT. Era o chamado Horário de Verão Duplo, para reduzir ainda mais os custos das indústrias.
Entre 1968 e 1971, o país experimentou o Horário Padrão Britânico, avançando os relógios em uma hora o ano inteiro. Mas o teste ficou marcado pelas crianças que precisavam usar braçadeiras fluorescentes nas escuras manhãs de inverno e a medida acabou sendo profundamente impopular.
Desde então, sucessivas propostas no Parlamento têm questionado o horário de verão – e não só no Reino Unido. Medidas similares são constantemente criadas, alteradas, questionadas ou descartadas em várias partes do mundo.
No Brasil, o horário de verão foi adotado pela primeira vez em 1931, mas sua prática era irregular. A partir de 1985, os relógios passaram a ser adiantados em uma hora todos os anos, até o cancelamento do horário de verão no país, em 2019.
Por que o horário de verão é um tema tão controverso? Basicamente, os prós nunca superaram convincentemente os contras. Para cada argumento inegável em favor do horário de verão, sempre existe um evidente fator contrário.
Resumidamente, o horário de verão favorece principalmente o comércio, os esportes e o turismo, mas prejudica a agricultura e os trabalhadores e estudantes que acordam muito cedo pela manhã.
Ninguém conhece melhor esse debate do que David Prerau, autor do livro Seize the Daylight (“Aproveite a luz do dia”, em tradução livre).
“De forma geral, acredita-se que o horário de verão reduza o uso de energia, os acidentes de trânsito e os crimes em ambientes abertos, além de trazer melhor qualidade de vida”, afirma ele.
“Mas, entre os pontos negativos, estão as manhãs escuras – um problema especialmente para as crianças em idade escolar e os agricultores – e o efeito de jet lag sobre os padrões de sono.”
Um recente estudo médico finlandês chegou a relacionar o horário de verão à ocorrência de AVCs, responsabilizando a interrupção dos ritmos circadianos do corpo.
As alterações no relógio também costumam ser um instrumento político.
Durante as comemorações dos 70 anos de independência da península coreana, em agosto de 2015, a Coreia do Norte atrasou seus relógios em 30 minutos, voltando ao fuso horário que utilizava antes da ocupação japonesa.
A agência de notícias estatal declarou que o objetivo era “arrancar o legado do período colonial japonês”. A medida foi cancelada em 2018, para eliminar a diferença de horário criada em relação à Coreia do Sul.
O legado
Cerca de um quarto da população mundial de 7,4 bilhões de habitantes adota o horário de verão. Prerau não tem dúvidas sobre quem merece o crédito da adoção dessa medida.
“A aprovação de leis estabelecendo o horário de verão veio diretamente dos esforços de William Willett”, afirma ele.
Quando observamos o túmulo simples de Willett no lado externo da pacata Igreja de São Nicolau, em Chislehurst, é difícil acreditar que ele continue mantendo sua influência global, tanto tempo depois de sua morte.
No subúrbio, o legado de Willett está registrado em uma placa na sua antiga casa, no bar chamado The Daylight Inn, nas ruas com seu nome e em cartas, documentos e fotografias expostas no salão comunitário da Sociedade de Chislehurst.
Mas não seria ele merecedor de maior reconhecimento?
“Com certeza”, responde Joanna Friel, da Sociedade de Chislehurst. “Willett defendeu [o horário de verão] de forma tão apaixonada e simplesmente se recusou a desistir. Ele foi uma figura notável e, em última instância, muito importante.”
Chris Martin, principal vocalista da banda de rock britânica Coldplay, é um dos trinetos de William Willett.
O verso inicial da sua canção Clocks (“Relógios”) inclui uma possível referência ao horário de verão: “as luzes se apagam e não posso ser salvo”.
Em 2016, a banda se apresentou no Festival de Glastonbury, no Reino Unido. Eles subiram ao palco perto das 22h15, quase no mesmo horário do pôr do sol, graças ao horário de verão britânico – e a William Willett, o homem que mudou o tempo.