Jogos de azar na internet: saiba como acolher familiares com problema e buscar ajuda para vício

Estudos da Universidade de São Paulo (USP) estimam que 1% da população brasileira preencha critérios para desenvolver algum transtorno de jogo ao longo da vida: ao todo, seriam 2 milhões de pessoas viciadas na tentativa de obter ganhos com apostas. Apesar das incertezas na quantidade, especialistas veem um número cada vez maior de pessoas buscando apoio psicológico ou psiquiátrico para controlar a dependência – muitas delas, a pedido das famílias, que têm um papel importante na decisão.

Atenção! O texto a seguir pode conter gatilhos emocionais. Pessoas com problemas de dependência ou vício em jogos podem recorrer a atendimento psicológico e psiquiátrico. Se, aliado a isso, você tem pensamentos suicidas, busque ajuda. O Centro de Valorização da Vida (CVV), por exemplo, oferece apoio através de chat na internet ou pelo telefone 188.

Colaborador do Ambulatório de Transtornos de Impulso da USP e membro da Comissão das Adicções da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o médico Vinicius Andrade explica que a condição, muitas vezes, leva bastante tempo para ser percebida e diagnosticada.

Temos tanto o perfil de paciente que começa cedo, tem grandes prejuízos e pode até procurar ajuda logo; ou outros que levam décadas de prejuízos parciais e vão se afundando, tendo associação com quadros de depressão, abuso de álcool e até tentativas de suicídio.
Vinicius Andrade

Médico psiquiatra

Demorou até que Marisa* procurasse apoio especializado. A professora de Fortaleza conversou com o Diário do Nordeste, sob condição de anonimato, sobre seu longo caminho no vício, percepção do problema e início do tratamento – que continua até hoje, comemorando uma vitória a cada dia sem sucumbir novamente às apostas.

Por se considerar protagonista do próprio processo de recuperação, a reportagem opta por mostrar o depoimento de Marisa* em primeira pessoa:

Eu sou uma pessoa comum. Antes do jogo me corroer, eu tinha uma vida normal, fazia duas viagens por ano. E saí dessa vida para alguém que comia miojo e ovo porque não tinha dinheiro para comer. 

Eu apostava gradativamente, tipo droga mesmo, na vitória do meu time. Apostava 10 reaizinhos, tranquilo. Chegou o momento em que esperar 90 minutos não era o suficiente. Comecei a apostar no primeiro e no segundo tempo. Chegou o momento em que 45 minutos não eram o suficiente. Aí comecei a apostar em cartão amarelo. Tá vendo como é gradativa, a doença? Ela me pedia para eu ter uma resposta mais rápida. 

O negócio foi corroendo e agora não era mais aquela aposta de 10 reais, né? Aí você começa a apostar o dinheiro de coisas básicas de dentro da tua casa, e não tem um controle disso. É totalmente insano. Hoje eu olho para trás e digo: como que eu fazia isso? Eu jogava tomando banho, cara. 

Chegou a hora em que as partidas de futebol já não eram mais suficientes. Passei para o cassino online, que tem a roleta, tem os dados. Em um minuto, o dado rolava três vezes. Então eu tinha respostas mais rápidas e me entreguei total. Me afastei da família, me afastei de amigos, prejudiquei meu trabalho e tudo. 

Até que descobri que isso era um problema. E fora do meu controle. A gente acaba entendendo que não é sobre dinheiro, é sobre não saber parar. Porque o que é que o jogador compulsivo faz? Se ele ganha demais, ele não consegue parar. E se ele perde, ele vai fazer de tudo para arrumar alguma grana para apostar e recuperar aquilo que ele perdeu.

Era isso que a minha mente dizia para mim. 

Fazia todo o sentido esse tipo de raciocínio, entendeu? Quando procurei ajuda é que comecei a entender isso. Por isso, quando eu estou me apresentando, digo: olha, meu nome é Marisa*, sou uma jogadora compulsiva em recuperação e estou há 1 ano e 8 meses sem a primeira aposta. Por que eu digo essa frase? Porque a primeira aposta não é a única.

Quando eu iniciei minha recuperação, tive que deixar as minhas contas todas nas mãos de uma pessoa. Foram 90 dias sem esse controle. Eu tinha um celular de criança porque, se eu pegasse, digitava o nome de algum site. Aí tinha alguém para bloquear.

Tive essa desintoxicação, essa oportunidade na minha recuperação. Cada um tem a sua, mas é muito difícil porque o jogo se vende como se fosse uma forma de renda. E na verdade, não é.

Hoje, eu já vivo outra realidade. Tentei parar com um psicólogo, tentei parar com um psiquiatra e medicação, mas só consegui quando eu misturei tudo com um grupo de apoio. Cada pessoa tem uma recuperação diferente. Eu já estou há quase 2 anos sem apostar, e o programa nos ensina que cada dia é uma vitória. 

 

Legenda: Páginas de Instagram divulgam jogos de azar online, o que ajuda a popularizar a prática
Foto: Reprodução

 

COMO ACOLHER O PACIENTE

A terapia de grupo é uma das recomendações da psicóloga Beatriz Austregésilo, pós-graduada em Dependência Química, como aliada à terapia farmacológica e à psicoterapia para um tratamento mais eficiente.

“Neles, existe uma identificação com pares que é muito importante. É comum achar que ninguém mais passa por esse problema e parece sem sentido lutar sozinho, mas quando encontro outra pessoa que vivencia a mesma coisa, ajuda muito”, explica.

Para ela, os familiares que percebem o problema não devem atacar e condenar a prática, mas se mostrar disponíveis para ajudar o usuário a visualizar o transtorno. Nos diálogos, são importantes declarações cuidadosas como:

  • Você percebeu que está mais distante e não participa mais de eventos familiares? Estamos sentindo sua falta.
  • Sabemos que você está com dificuldades financeiras e cortando suas relações. Procuramos um especialista e podemos marcar, você quer ir?
  • Dá uma chance! Você não é obrigado a ir, mas podemos ir juntos.

“Acho que precisamos dar os instrumentos, mas deixar o outro participar do processo. Porque, às vezes, o paciente se sente uma marionete, mas ele precisa ser colocado no centro do processo”, garante a especialista.

Em Fortaleza, dois grupos dos Jogadores Anônimos (JA) contribuem nessa metodologia: um no Centro e outro na Praia de Iracema. A “irmandade”, como chama uma servidora ouvida pela reportagem, também segue um programa de 12 passos semelhante aos Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos. Há reuniões tanto presenciais como online.

 

“Recebemos mensagem de um monte de gente, incluindo pessoas de outros Estados. A pessoa chega muito fragilizada, mas vamos encaminhá-la da melhor forma para ela porque a gente se entende, né?”, diz a mulher, também jogadora compulsiva em recuperação.

 

Há linhas de suporte também para familiares, tratados como “codependentes” por compartilharem o sofrimento e o adoecimento do jogador. Contudo, para que tudo isso funcione, é preciso que as pessoas deem um passo importante: a aceitação.

“Não é para quem precisa, é para quem quer”, arremata. “A pessoa tem que reconhecer que o que a gente tem é uma doença, querer trabalhar nisso e entender que não tem cura. Nesse momento mesmo, que estou aqui falando contigo, e eu te agradeço porque você está sendo importante para a minha recuperação”.

SAÍDAS PARA O TRANSTORNO

Para os especialistas, o tema é sensível e tende a se acentuar com um número cada vez maior de diagnósticos. Na avaliação de Beatriz Austregésilo, há necessidade de aumentar e organizar esses grupos de apoio, “ainda pouco divulgados”, e a preparação das redes de saúde com ambulatórios especializados no tratamento do transtorno.

O psiquiatra Vinicius Andrade também destaca que “o ideal seria a gente ter maior controle dos registros de ganhos e perdas dessas pessoas”.

“Se a família começa a notar que esse indivíduo está perdendo mais do que ganha de salário, por exemplo, é necessário ver se está fazendo uso de outras substâncias e, se necessário, buscar ajuda”, diz.

Além disso, ele reflete que o poder público pode promover campanhas de conscientização parecidas com as já existentes para álcool e tabaco, com alertas sobre os prejuízos de saúde associados e slogans como “beba com moderação”.

“O incentivo dessas medidas pode sim contribuir para a redução da porcentagem da população que acaba fazendo o jogo de forma mais prejudicial”, pondera.

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