A crença espírita no ‘Vale dos Suicidas’ que angustia parentes em luto

Entre as dezenas de livros espíritas que a tradutora Maria Cecilia Cencini, 63 anos, tem, há um que ela nunca conseguiu ler: Memórias de um Suicida, da médium Yvonne do Amaral Pereira (1900-1984).

O livro relata o que seria o sofrimento após a morte — ou desencarne, para os espíritas — de almas de pessoas que se suicidaram, segundo relatos que a médium teria recebido de espíritos.

A obra traz histórias, por exemplo, de espíritos desencarnados que tiveram que observar, a partir do plano espiritual, o próprio corpo em decomposição, ou testemunhar parentes encarnados em sofrimento por conta da morte.

Maria Cecilia, que segue o espiritismo há mais de 15 anos, já havia tentado há algum tempo ler o livro, mas abandonou a leitura por considerá-la muito “forte”.

“É uma obra que com certeza veio elucidar algumas coisas, que eram talvez desconhecidas. Mas é uma literatura bastante forte, bastante impactante. Estudando a doutrina, a gente vê que não funciona bem dessa forma”, aponta Maria Cecilia.

“Eu acho que não é esse caminho. Eu acredito muito mais na misericórdia divina”, diz, indicando acreditar que o filho foi perdoado pelo ato.

O suicídio é visto no espiritismo como um ato repreensível — embora se admita algumas atenuantes — desde as obras organizadas pelo fundador da religião, o francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido por seu pseudônimo Allan Kardec (1804-1869)

A história de Maria Cecilia e a forma como os espíritas tratam o suicídio são o tema da terceira reportagem da série “Suicídio & Fé”, que aborda o tabu religioso com o ato, com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil.

A primeira reportagem mostrou que, por séculos, o suicídio foi visto como um pecado pela Igreja Católica. Até 1983, havia um documento oficial determinando que suicidas não recebessem ritos funerários normais, como a missa de sétimo dia.

Igrejas evangélicas veem o suicídio como um pecado, de acordo com especialistas ouvidos na segunda reportagem da série. Há relatos de que é comum, nesse meio, escutar que alguém que se suicidou vai para o inferno.

O número de suicídios no país vem aumentando ano a ano desde 2016, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O que dizem os textos espíritas

Vários livros importantes de Kardec abordam o suicídio.

Neles, tanto as mensagens relatadas como recebidas dos espíritos quanto as anotações de Kardec indicam que o suicídio contraria as leis divinas e gera algum tipo de punição ao espírito de quem se matou.

Em O Céu e o Inferno, são frequentemente usadas palavras como “castigo” e “pena” para quem se mata.

Um trecho diz ser comum que espíritos de suicidas sintam vermes corroendo o corpo, embora as consequências do ato variem de “duração e intensidade conforme as circunstâncias atenuantes ou agravantes da falta”.

Em outro, é dito que “longa e terrível deve ser a pena dos culpados por se terem voluntariamente refugiado na morte para evitar a luta” — nesse caso, referindo-se especificamente ao caso de suicidas que tenham escolhido essa saída para escapar de forma honrosa de alguma situação.

No Livro dos Espíritos, médiuns fazem uma série de perguntas sobre o ato de se matar.

Os espíritos respondem que o suicídio “voluntário” seria uma “transgressão” do direito de Deus sobre a vida — “voluntário” demarcaria a diferença do “louco que se mata” e “não sabe o que faz”.

Também afirmam que “muito diversas são as consequências do suicídio”.

“Não há penas determinadas e, em todos os casos, correspondem sempre às causas que o produziram. Há, porém, uma consequência a que o suicida não pode escapar: é o desapontamento”, respondem os espíritos, segundo o livro de Kardec.

“Mas, a sorte não é a mesma para todos; depende das circunstâncias.”

A historiadora e socióloga Celia Arribas, que estudou o espiritismo em seu mestrado e doutorado, resume que, do ponto de vista de Kardec, a escolha pelo suicídio seria uma “triste ilusão” — e isso tem a ver com a perspectiva de duração da vida para a religião.

“O espiritismo traz uma visão de que a vida é praticamente eterna, no sentido de que a gente tem várias existências: o que morre é o corpo, e não a alma”, diz Arribas.

“Não teria muito sentido se pensar em suicídio, porque o espírito continuaria vivo com as suas angústias, suas dores.”

Arribas, que é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), explica que Kardec considerava que sua produção tinha um caráter científico — por isso, embora os livros dele sejam vistos como um “farol”, obras posteriores são bem-vindas.

“Há um princípio proposto pelo Kardec de que o espiritismo precisaria sempre estar ao lado da ciência e dos avanços científicos. Isso abre a possibilidade de uma renovação constante.”

Assim, um livro como Memórias de um suicida pode ganhar a dimensão que tomou, popularizando a ideia de que existe um “Vale dos Suicidas” — descrito na obra como um lugar onde a alma de quem se matou passa por um período de punição e sofrimento.

“O livro tem um cenário bastante excessivo, que olha para os suicidas condenando essas pessoas”, diz Arribas.

“Essa é uma visão que não necessariamente Kardec defendia, mas a gente tem uma certa autonomia do espiritismo no Brasil.”

O livro da médium Yvonne do Amaral Pereira foi lançado em 1956. A obra, publicada pela Federação Espírita Brasileira (FEB), já teve 27 edições em português e foi traduzida para inglês e francês, além de adaptado para radionovelas.

“Não havia então ali, como não haverá jamais, nem paz, nem consolo, nem esperança: tudo em seu âmbito marcado pela desgraça era miséria, assombro, desespero e horror”, diz um trecho do livro que descreve o Vale dos Suicidas.

“Aqui, era a dor que nada consola, a desgraça que nenhum favor ameniza, a tragédia que ideia alguma tranquilizadora vem orvalhar de esperança! Não há céu, não há luz, não há Sol, não há perfume, não há tréguas!”, diz outro trecho.

Após um intenso período de sofrimento, os espíritos de suicidas do livro pouco a pouco — ainda no mundo espiritual — refletem sobre sua decisão e passam por uma espécie de tratamento, com mentores e até uma universidade que os ajudam a se preparar para uma nova encarnação.

O Vale dos Suicidas também foi retratado na TV brasileira na novela A Viagem, exibida primeiro pela Tupi e depois em uma reedição pela Globo, que completa 30 anos esse mês e será reexibida este ano pelo canal Viva.

O personagem Alexandre sofre as consequências de seu suicídio no Vale — um lugar onde se escuta gritos, o fogo arde, moribundos perambulam e o personagem é torturado.

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