Relação entre Lula e Lira mantém desconfianças e tensões mesmo após cargos e verbas
O primeiro ano do governo Lula 3 caminha para o fim com um paradoxo na Câmara dos Deputados: ao mesmo tempo que o Planalto conta com apoio de partidos que somam 370 dos 513 deputados, mais do que suficiente para aprovar emendas à Constituição, o presidente encerrou a última semana com uma série de derrotas em votações.
A inusitada aliança entre Lula (PT) e Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, começou a ser montada no mesmo dia do anúncio da vitória do petista sobre Jair Bolsonaro (PL), em 2022. O desenrolar de 2023 mostrou, porém, que a dobradinha continua marcada por desconfiança, críticas e tensionamento de lado a lado.
Apesar da vitória com a reforma tributária, houve a derrubada pelo Congresso de vetos de Lula ao marco temporal das terras indígenas, à desoneração da folha de pagamentos e à lei que muda as regras de funcionamento do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fazendários).
O próprio presidente da República expôs neste sábado (16), em São Paulo, as dificuldades no Legislativo apesar dos cargos e verbas a partidos aliados. Classificou a aprovação da reforma tributária como “fato histórico” em um Congresso em que o Executivo tem minoria.
Aliados de Lira afirmam que todas as caneladas dadas pelo presidente da Câmara no governo têm explicação não em uma indisposição pessoal do parlamentar, mas no fato de que o governo acertou a distribuição de cargos e verbas do Orçamento, as chamadas emendas parlamentares, e não tem entregado o que prometeu.
Na tradição congressual, o troco é dado principalmente nas votações em plenário.
Já do lado do governo, em especial no PT, o discurso é o de que o governo já entregou todos os anéis e até alguns dedos as emendas parlamentares, por exemplo, ficarão em torno de R$ 50 bilhões no ano que vem, valor bem próximo do que o Executivo tem para investir livremente, R$ 70 bilhões.
Além disso, dizem que o centrão quer, em suma, voltar ao modelo Bolsonaro, quando o então presidente entregou a Lira e seu aliados praticamente toda a gerência direta da distribuição de cargos federais e das emendas parlamentares.
Petistas do Congresso evitam criticar Lira em público. Avaliam que seria impossível a Lula governar sem o seu apoio. Alguns ainda concordam em parte com as reclamações do líder do centrão. Segundo eles, ministérios como Saúde e Educação estão atravancando na burocracia do dia a dia o cumprimento dos acertos feitos entre a articulação política do Planalto e o Congresso.
Há quem reclame abertamente da influência exercida pelo centrão. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann (PR), capitaneou uma resolução partidária que pintou o bloco mais ou menos como quase todos os petistas o definem nos bastidores.
O texto afirma que “as forças conservadoras e fisiológicas do chamado centrão, fortalecido pela absurda norma do orçamento impositivo num regime presidencialista, exercem influência desmedida sobre o Legislativo e o Executivo, atrasando, constrangendo e até tentando deformar a agenda política vitoriosa na eleição presidencial”.
Lira ameaçou divulgar nota em resposta, mas foi demovido por aliados.
Outro que falou abertamente foi o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ), que subiu à tribuna do plenário do Congresso na quinta-feira (14), enquanto o governo via vetos de Lula serem derrubados em sequência, para pregar a reconstrução da relação e também detalhar de forma didática tudo aquilo que é dito nos bastidores.
“Subo a essa tribuna profundamente incomodado com o que está acontecendo nesta sessão do Congresso. O que se viu nesta semana no Parlamento foi este Congresso e esta Câmara tentando e impondo derrotas sucessivas ao governo do presidente Lula”, discursou o petista.
Ele então citou os R$ 50 bilhões em emendas parlamentares, que tendem a esvaziar as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
“Estão entrando em prerrogativas do Executivo. Para mudar o regime de governo, tem que ter plebiscito! Isso é uma espécie de parlamentarismo orçamentário. Fizeram um cronograma de execução de emendas,
senhores! Ontem aprovaram a urgência de um projeto de lei de ensino médio que é contra a gente. E hoje, aqui, essa barbárie”, se exasperou.
Lindbergh prosseguiu: “Pautar desoneração [da folha] desse jeito? É provocação com o governo, é querer impor uma derrota ao governo, uma humilhação. (…) Acho que nós que somos governo, que somos Lula, é melhor ter uma relação séria com sua base, recomeçar de alguma forma, do que aceitar essa farsa de todo dia”.
Além dos R$ 50 bilhões de emendas, o discurso em tom de desabafo de Lindbergh fez menção aos seguintes episódios:
1) há uma demanda de deputados do centrão e de outros partidos pela liberação robusta de emendas até julho do ano que vem, para que haja tempo de realizar obras e aumentar o cacife deles nas eleições municipais de outubro de 2024;
2) Lira nomeou como relator da nova reforma do ensino médio o deputado Mendonça Filho (União Brasil-PE), justamente o ministro que, no governo Michel Temer, implantou a reforma que o PT agora quer alterar;
3) a “barbárie” citada por Lindbergh se refere à sessão do Congresso em que diversos vetos de Lula foram derrubados, entre eles os relativos ao marco temporal das terras indígenas e ao arcabouço fiscal;
4) o veto à desoneração da folha de pagamentos também foi derrubado mesmo com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prometendo, segundo governistas, apresentar uma proposta alternativa.
Um dos petistas mais próximos a Lira, o deputado José Guimarães (CE), líder do governo na Câmara, convocou uma entrevista coletiva na sexta (15) para minimizar as derrotas e listar as vitórias do governo.
Em suma, ele afirmou que vários vetos foram derrubados com concordância do governo, em nome da aprovação de outros temas, em especial a MP (medida provisória) que altera as regras de benefícios concedidos por meio do ICMS, a medida com maior potencial de arrecadação dentre as defendidas na reta final de 2023 por Haddad.
De acordo com Guimarães, Haddad lhe disse que essa é a mais importante medida para a área econômica desde a aprovação da PEC da Transição, ainda em 2022, que deu uma folga orçamentária ao primeiro ano da gestão petista.
O ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais) também minimizou neste sábado as derrotas no Legislativo. “Não tem time campeão invicto no campeonato. Você pode empatar, perder, o que você não pode é perder a decisão e o mata-mata. O governo termina o ano ganhando todos os jogos decisivos no Congresso Nacional”, afirmou em evento em São Paulo.
Aliados de Lira dizem que, além de ele sofrer pressão de líderes de bancadas em relação ao não cumprimento de acordos pelo governo, as críticas têm que ser relativizadas porque muitas das vitórias e avanços do governo no Congresso em 2023 não seriam possíveis sem ele.
O centrão, em sua configuração atual, engloba PP, Republicanos e o PL de Bolsonaro. O grupo foi o sustentáculo legislativo do ex-presidente, com Lira à frente.
Lula derrotou Bolsonaro, mas, ao mesmo tempo, a esquerda conseguiu conquistar apenas cerca de 130 das 513 cadeiras da Câmara.
Apesar de aliado a Bolsonaro, Lira foi uma das primeiras autoridades a parabenizar publicamente Lula, reconhecer a sua vitória e dizer que era hora de “construir pontes”. A atitude ajudou a frear o ímpeto golpista que àquela altura rondava o bolsonarismo.
Em vez de comprar uma briga com alta chance de derrota, o petista então entabulou um acerto inicial com Lira e apoiou a sua reeleição ao comando da Câmara.
Ainda na transição, Lula distribuiu nove ministérios para obter o apoio de três partidos de centro e de direita que não pertencem ao centrão, o PSD, o MDB e a União Brasil. Em setembro, atraiu duas siglas do centrão, o PP de Lira e o Republicanos, com mais dois ministérios. Apesar disso, a aliança segue altamente instável.