‘Passei pela ‘cura gay’, tentei me matar e hoje busco justiça’
A advogada Milla Magalhães, 27, viveu uma adolescência de restrições — e a pior delas foi a de não poder ser quem era. Hoje, formada em direito, longe da igreja e vivendo em Salvador, Milla conseguiu reunir forças para denunciar os abusos que sofreu ao ser orientada a passar por “terapias de conversão sexual” — popularmente conhecida como “cura gay”.
A história foi contada em um vídeo publicado em seu Instagram na semana passada. A Universa, ela deu mais detalhes.
“O pastor me chamou para conversar”
“Tinha 13 anos quando o pastor me chamou para uma conversa. Não sei como ele sabia que eu era lésbica, acho que eles devem ficar em cima, muito de olho — e acho que eu ‘dava pinta’, por não ser uma criança muito feminina.
Sei que uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas é como pensam. Talvez o pastor tenha blefado, e eu caí. Fiquei muito nervosa quando ele começou a falar sobre homossexualidade comigo. A aproximação foi como se ele fosse um amigo mesmo, afirmando que também já tinha tido desejo homossexual, mas que não era mais assim. Lembro de ter chorado bastante. Toda essa história sobre ser ‘ex-gay’ era muito cotidiano na igreja.
Fiquei com bastante medo deles falarem com os meus pais. Achava que conseguia enganar muito bem todo mundo. Depois dessa conversa, as coisas voltaram a uma certa normalidade — na verdade, eu não poderia ser lésbica.
Não falava sobre isso com ninguém. Guardava como um segredo a sete chaves. Tinha medo da minha família saber, do pastor contar para outras pessoas. Até hoje não sei se falaram algo para a minha família naquela época.
Sempre senti muita culpa e, por isso, acho que nunca decidi nada conscientemente, decidiram por mim. Sentia que estava fora da curva e precisava compensar alguma coisa para os meus pais, para a minha família. Tinha que ser uma boa aluna, uma boa cristã.Estava inserida naquele contexto religioso e precisava me esforçar ao máximo para manter os meus pais satisfeitos, para que eles não se decepcionassem comigo. Era uma coisa de lavagem cerebral que faziam.
Comecei a negar a minha sexualidade. Eles são sutis para te levar para esse caminho. Qualquer palavra de apoio, um salmo mais bonito, controla o seu coração. A igreja sabe como aproveitar as vulnerabilidades das pessoas.
A partir dos meus 16 anos comecei a frequentar cursos que prometiam ‘a cura gay’. Eles mercantilizam isso, vendem uma suposta ‘cura’. Eram coisas que não estavam necessariamente ligadas à igreja, eram mais autônomas, mas eram as pessoas da igreja que me recomendavam. ‘Vai fazer esse curso, será bom para você’. Era uma atmosfera de repreender a homossexualidade o tempo todo. Eles falam sobre o ‘demônio da homossexualidade’, como se tivesse um demônio em você que que tem que ser expulso.
Um dos cursos que fiz, da Andréa Vargas, é praticamente a promessa de que você será curado. Eram aos fins de semana, com palestras, muitos testemunhos de ‘ex-gay’. Havia muita oração individual e, como sempre, reprendendo esse ‘demônio da homossexualidade’.
Passei por outros que falavam sobre fazer um jejum de 21 dias, como forma de me curar. O jejum é uma prática que eles dizem ser prevista na bíblia, e serve para o corpo ficar fraco mesmo, e assim mais “vulnerável ao agir de Deus”. Na hora, não me sentia mal com esses cursos, mas quando eu chegava em casa e me deparava com quem eu realmente era, com os meus instintos, eu sofria. Sentia muita culpa, chorava, queria dormir. Tive um episódio de depressão medicamentosa horrível porque tomava remédios fortes para dormir, para ficar apagada.
A igreja dá um jeito de você virar a sua vida só para aquilo ali. Eu até era convidada para eventos e aniversários, mas todo mundo da igreja abominou que eu frequentasse o que eles chamam do ‘mundo’. Ouvir música do ‘mundo’, ir em festas do ‘mundo’, ter amizade com pessoas ‘do mundo’. Existe essa atmosfera também.
Em 2017, um amigo meu se matou. A mãe dele também era de uma igreja cristã e passávamos pelo mesmo processo de ‘cura gay’. Ele não resistiu. Aquilo foi tão agressivo que a minha mente apagou detalhes. E, anos depois, eu vivi minha primeira tentativa de suicídio.
Aconteceu depois de seis meses de formada. Ainda não tinha saído da igreja, mas vivia um ócio terrível. Não tinha emprego fixo ainda e fiz uma viagem para Salvador. Baixei um aplicativo de relacionamento e conheci uma menina. Saí com ela e, depois, tive um surto de culpa por ter ficado com uma mulher pela primeira vez, por ter me perdido.
Até então, não tinha ficado com outras meninas. Tudo o que eu vivia era por dentro, internamente. Era uma realidade muito distante para mim essa de estar ao lado de outra mulher.
Nesse dia, acordei no hospital. Fui encontrada no mar. O meu pai veio me buscar com o pastor no carro. Fui inundada de preocupação, maquiada de amor, cuidado e carinho. Fiquei muito mal e depois comecei a fazer terapia, com alguém que realmente tinha uma formação em psicologia. Até então, só tinha feito terapia de conversão sexual.
Fazia com um psicólogo que era cristão e a terapia era de uma psicologia cristã. Foi muito pesado porque ainda tinha isso da ‘cura gay’, da reversão sexual. Não aguentei. No fim daquele ano voltei a me comunicar com a menina que eu tinha saído e meus pais descobriram. Naquela mesma noite, arrumei minhas malas porque eu estava muito cansada de me esconder, de viver uma mentira. No dia seguinte, vim para Salvador. Rompi com tudo de uma forma muito bruta.
No ano passado, passei por uma segunda tentativa de suicídio. Muita gente não entende, falam que eu já estava vivendo a vida a minha maneira, como se estivessem cobrando que, por eu ter saído da igreja, automaticamente tudo ficou perfeito. Foi pior ainda, porque eu não sabia o que fazer. Tinha ideias de amores abusivos, tóxicos. Qualquer migalha de amor era amor, já que antes eu não podia ter nada.
Depois disso, fiquei internada em uma clínica. O psiquiatra me diagnosticou com transtorno pós-traumático. Tenho problemas de ansiedade e depressão tamanho o absurdo da situação. Antes, olhava para a minha vida como uma coisa na qual eu era culpada, mas hoje vi que fui vítima de algo que é maior que eu. Ainda estou elaborando as minhas questões, é algo difícil de lidar.
Estou realmente traumatizada com a palavra religião. Hoje, tenho mais consciência que existe algo maior que nós, mas ainda não consegui me vulnerabilizar ao ponto de me abrir para uma religião, seja qual for. Ainda tenho muita raiva, muito ressentimento.
Nunca tive intenção de buscar denunciar essas coisas antes, até porque achava que eu era a errada, mas agora estou mais disposta. Só vou me sentir preenchida quando sentir que o mínimo de justiça está sendo feita, como a abertura de um inquérito para que me ouçam ou a criminalização da ‘cura gay’. Tenho muito a dizer. Estou no caminho e não vou parar.
Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil… – Veja mais em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2023/10/25/relato-de-cura-gay.htm?cmpid=copiaecola