‘Pastora do Diabo’: livro fala em bastidores ‘satânicos’ do caso Flordelis
Pastora, cantora, deputada federal cassada e em prisão preventiva sob acusação de ter mandado matar o marido, Anderson do Carmo, em 2019, Flordelis dos Santos de Souza, 61, contou em dezenas de entrevistas, ao longo de quase 30 anos, que adotou 37 crianças após uma chacina na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 12 de setembro de 1994.
Segundo o escritor e jornalista Ullisses Campbell, que lançará em agosto o livro “Flordelis: A Pastora do Diabo”, essa é a maior mentira contada por ela. Depois de ir a fundo em arquivos da polícia e de jornais no Rio de Janeiro, descobriu que não houve registro de chacina no dia 12 de setembro de 1994. Encontrou apenas a notícia de uma tentativa de assassinato contra um sobrevivente da chacina da Candelária, que ocorreu em 1993, também no Rio.
Flordelis orgulhava-se por ser mãe de 55 filhos, entre biológicos, adotados e socioafetivos. Narrou essa história em um livro autobiográfico e no filme sobre sua vida, em que interpreta a si mesma. “Nunca chegou às 50 mesmas crianças, havia uma rotatividade. Ela encontrava mães altamente debilitadas, nas ruas, levava a criança, dizendo que era missão, mas era para completar a meta de 50 e capitalizar em cima disso. E algumas iam embora. Ela inventava que achou crianças”, afirma o autor.
“Tenho depoimento de quatro mães dizendo que ela roubou filhos delas”, diz Campbell, que com a obra fecha uma trilogia —as anteriores foram sobre Suzane von Richthofen e Elize Matsunaga.
Para escrever o livro, o jornalista entrevistou os três irmãos e a mãe de Flordelis, alguns de seus filhos e o atual namorado, o produtor musical Allan Soares, 25, entre outras pessoas próximas à pastora. Também assistiu a depoimentos de testemunhas em vídeo e se debruçou sobre os preceitos satânicos que afirma terem sido seguidos pela pastora e por Anderson, o que incluiria rituais com os filhos envolvendo sexo, sangue e esperma.
A defesa de Flordelis foi procurada por Universa, que conversou com o advogado dela, Rodrigo Faucz. Ele afirma que todas as acusações são falsas. Diz que uma das filhas biológicas da cliente, Simone, já admitiu ter sido a mandante do crime, e não a mãe.
Afirma, ainda, que a história que ela conta sobre as adoções foi colocada em xeque para “desconstruir” a imagem dela. Sobre as denúncias de rituais envolvendo abusos sexuais, diz ser uma “bobagem” e afirma serem “situações inverídicas, inventadas, seja em versões da acusação ou de pessoas que são detratores da Flordelis”. “Não existe isso, e o fato de se dar voz a isso só reforça uma situação que o MP [Ministério Público], hoje, já não sustenta mais. Uma parte pequena dos filhos ficaram contra ela por motivos que vamos expor no júri”, diz o advogado, um dos três brasileiros habilitados a atuarem no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda, e coordenador da primeira pós-graduação em tribunal do júri do Brasil.
O julgamento de Flordelis está marcado para o dia 6 de junho. Em 13 de abril, quatro pessoas foram condenadas: o filho biológico da ex-deputada, Adriano dos Santos Rodrigues; o filho afetivo Carlos Ubiraci Francisco da Silva; o ex-policial militar Marcos Siqueira Costa e sua esposa, Andrea Santos Maia. Entre os crimes está o de associação criminosa. Em novembro passado, Flávio dos Santos Rodrigues, também filho biológico da pastora, foi condenado como autor dos disparos que mataram Anderson.
“Casa era uma congregação diabólica”
O título do livro traz a contradição de Flordelis ao colocá-la como a pastora, uma mulher religiosa, que agia em nome de Deus e fundou seu próprio ministério, mas ao mesmo tempo dizer que era “do Diabo”. Segundo Campbell, a pesquisa do livro sustenta que ela era bem-intencionada no início do seu trabalho social, quando começou a ajudar crianças, retirando-as das ruas e as livrando do tráfico. Nessa época, não passavam de 14. Mas isso mudou ao conhecer Anderson do Carmo, em 1991.
“Ele começou namorando a Simone, filha biológica da Flordelis, mas passou a transar com filha e mãe. Era um homem muito visionário e viu o potencial da Flordelis, percebeu que adotar muitos filhos seria um caminho para investir no papel da mulher que pratica assistencialismo, adoção. Ele mostra onde ela poderia chegar, e ela se corrompe. Vende a alma ao diabo, literalmente.”
Os dois se casaram em 1994. A partir de então, ela já tem o plano de se tornar a “mãe de 50 filhos”, slogan que usava ao contar sua história. “Seremos os pais do Brasil”, dizia Anderson. Ela conseguiu os holofotes por suas ações sociais, se tornou um fenômeno gospel, fundou um ministério (que funciona como um segmento religioso, à semelhança de uma igreja) e foi a mulher mais votada do Rio de Janeiro para o cargo de deputada federal em 2018.
Os agradecimentos por tantos feitos eram sempre direcionados a Deus. Mas, dentro de casa, a louvação era para o demônio, diz Campbell, mostrando o livro que afirma que o casal seguia. Na capa preta lê-se o título em dourado: “São Cipriano, o Bruxo” (ed. Pallas), referindo-se ao personagem de uma lenda que se conta ter sido um bruxo e, depois, convertido ao catolicismo e foi escrita entre os séculos 17 e 19. A obra traz instruções para feitiços, magias e invocações.
“A casa era uma seita, uma congregação diabólica. Ela seguia ritos desse livro. Havia um ritual de purificação em que ela tinha que transar com filhos, se banhar com o esperma deles, sempre no cunho macabro sexual”, afirma. Segundo depoimentos à Justiça, o que acontecia eram estupros. “Ela dizia que tinha que haver troca de energia entre as pessoas, e a energia mais pura era do sexo, era nessa teoria maluca que havia abusos com os filhos.”
O advogado Rodrigo Faucz afirma que Flordelis não participava de abusos sexuais cometidos contra os filhos, que seriam praticados apenas por Anderson. “Anderson estuprava crianças” Morto aos 42 anos com 30 tiros, Anderson, afirma Campbell, era “o demônio dentro da casa”.
Cometia abusos contra a esposa, de quem controlava todas as ações e subtraía parte do faturamento dela como artista, e contra os filhos —principalmente as filhas que, segundo relatos, eram estupradas, com força e violência, por ele. “Entre as vítimas há inclusive uma criança de 9 anos”, afirma o autor. Pelas práticas abusivas recorrentes é que o plano para matá-lo, segundo denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro, começou a surgir, envolvendo Flordelis e alguns dos filhos. Ela é acusada de ter sido a mandante e, para o autor do livro, isso se deu porque ela queria se ver livre das amarras do marido. “Quando ela se transforma na personalidade que se tornou, as rédeas ainda eram dele, ele comandava tudo. Ela queria acabar com isso, soltar da mão dele. É quando resolve matá-lo.”
“O livro mostra como as pessoas usam a religião para fazer o mal”, diz o autor. “Usam o nome de Deus para praticar crimes, inclusive sexuais, arregimentam fieis, agem como se tivessem uma procuração de Deus —os cultos dela eram assim. Se falassem que não queriam fazer uma coisa, ela dizia que era porque o Diabo não queria.”
Em prisão preventiva desde agosto de 2021, considerada pelo advogado Rodrigo Faucz como “indevida” já que sua cliente não apresenta risco para o processo, Flordelis segue pregando na cadeia. No presídio Talavera Bruce, no Complexo Penitenciário de Bangu, faz cultos, autografa bíblias e está sob a proteção de uma líder da prisão, que teria sido curada de um mal estar por meio de orações feitas pela pastora. “Reconhecem a importância dela, a relevância como pessoa boa, religiosa e que quer o bem dos outros”, afirma Faucz. Da família, recebe visitas apenas da mãe, Carmosina, de 89 anos, e de uma prima, Laudicéia, 70, que é considerada irmã porque Carmosina a pegou para criar quando era criança.
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