O risco da terceira guerra

A Terceira Guerra Mundial deixou de ser um mero delírio apocalíptico para se tornar uma possibilidade cada vez mais real. Que não seja agora, pode ser em breve.

Desde que o presidente russo Vladimir Putin, depois da invasão da Ucrânia, falou que “quem interferir levará a consequências nunca experimentadas na história” e, três dias depois, colocou suas forças dissuasivas nucleares em estado de alerta, os dedos das potências chegaram mais perto dos botões das bombas.

O palco está armado para acontecer algo terrível. Na quarta-feira, 16, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky foi mais longe ao dizer que o pior está em andamento. “Talvez a Terceira Guerra já tenha começado. Nós vimos isso há 80 anos, quando a Segunda começou. Ninguém seria capaz de prever quando o conflito ganharia proporções mundiais e como iria acabar”, afirmou. As emoções claramente se acirram e grandes líderes trocam ofensas.

O presidente americano Joe Biden chamou Putin de “criminoso de guerra” e o Kremlin reagiu dizendo que a fala do inimigo é “inaceitável e imperdoável”. Nervos à flor da pele e capacidade destrutiva se somam ao esgotamento da diplomacia e levam o mundo para um buraco cada vez mais fundo. Para os que não acreditam numa disputa militar mundial, resta a evidência de que a Guerra Fria se reinstalou para ficar, com sanções e banimentos, e desta vez parte do Oriente, com grande poder de fogo, deve se unir em torno da Rússia.

CARESTIA Alta de preços e falta de alimentos afetam a população da Ucrânia: economia em frangalhos (Crédito:Alexander Ermochenko )

Na segunda-feira, 14, o secretário-geral da ONU, António Guterres, veio a público declarar que estava preocupado porque a guerra na Ucrânia podia descambar para um embate global, reforçando o temor geral da humanidade. “A perspectiva do conflito nuclear, antes impensável, está agora no campo das possibilidades”, disse.

O assunto paira na mente de todos e indica cautela. “A Rússia detém armas nucleares e é muito importante que nós evitemos um terceiro conflito internacional”, afirmou Charles Michel, presidente do Conselho Europeu. A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, confirmando que o assunto está em pauta, manteve o tom superior do governo americano e disse que a guerra mundial não vai acontecer porque os Estados Unidos não querem. “Não temos interesse em uma Terceira Guerra”, declarou. Passados vinte dias da invasão da Ucrânia, sem que arrefeçam os bombardeios, EUA e União Europeia apertam as sanções e a crise humanitária se agiganta. Na quarta-feira, 16, a Rússia propôs um cessar-fogo, desde que a Ucrânia aceite o status de país neutro e desista de se tornar membro da OTAN, que, por seu lado, trata de reforçar suas forças e redefinir a postura militar para a nova realidade no Leste Europeu. Enquanto isso, milhares de refugiados deixam o epicentro da guerra, cidades destruídas e saqueadas, onde não há mais água, alimentos, remédios e o frio é intenso. Mais um cenário de horror pode ser visto com o teatro bombardeado de Mariupol, que resistia com centenas de abrigados.

Ainda na semana passada, Zelensky havia chamado a ameaça nuclear de “blefe” de Putin. “Uma coisa é ser um assassino. Outra é cometer suicídio”, disse ao jornal alemão Die Zeit. Na quarta-feira, 16, depois de desacreditar de vez na filiação da Ucrânia à OTAN, apelou ao Congresso dos EUA por mais armamento, evocando os ataques a Pearl Harbor na Segunda Guerra e o ataque terrorista às Torres Gêmeas em 2001. Em resposta, Biden anunciou US$ 800 milhões (R$ 4 bilhões) em apoio à Ucrânia. O americano irá à cúpula extraordinária da OTAN no dia 24, em Bruxelas, e participará de reunião da União Europeia.

“Talvez a Terceira Guerra já tenha começado. Nós vimos isso há 80 anos, quando a Segunda começou” Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia (Crédito:Drew Angerer)

Tensão continua

Depois da abertura dos corredores humanitários, os últimos avanços nas negociações para colocar fim à guerra afunilaram em um plano de paz que inclui cessar-fogo e retirada de tropas russas se os ucranianos aceitarem um status de neutralidade para seu país, como é o caso de Suécia e Áustria; limites para suas forças armadas, que só poderiam atuar em seu território, protegendo a população, e desistência de se filiar à OTAN, sem abrigar tropas de fora, bases estrangeiras e armamentos em troca de proteção de EUA e aliados.

O debate em torno de 15 pontos continua, com os ucranianos hesitando em aceitar ou acreditar nas propostas dos oponentes. Não abrem mão da retirada das tropas russas de regiões ao longo do Mar Negro e de Azov, além do entorno da capital Kiev. Os russos, porém, não pretendem deixar essas áreas tão cedo. A Ucrânia pode decidir ceder em alguns itens, a Rússia em outros, mas as diferenças tendem a prevalecer sobre os avanços. Mesmo que haja um acordo, ela não aliviará a tensão instalada, que é irrefreável.

O que poderia levar a uma Terceira Guerra? Dos fatores apontados por analistas, o principal deles diz respeito ao fechamento do espaço aéreo, insistentemente solicitado por Zelensky, segundo Roberto Menezes, do Instituto de Relações Internacionais da UNB. A resposta tem sido negativa, por parte da OTAN. Abater aviões russos que sobrevoassem a Ucrânia significaria intervir no conflito entre dois países que não fazem parte da aliança.

Militarmente, a razão passaria a Putin que, por sua vez, poderia acionar armas nucleares. Outro fator de risco seria os russos acertarem alvos em países membros da OTAN, porque não haveria alternativa a uma reação. Ficaram bem perto disso, como lembra Luciana Mello, professora de RI do IBMR-RJ, no bombardeiro do IPSC (centro de treinamento militar com voluntários e mercenários e porta de entrada de armamentos) em Yavoriv, a 25 quilômetros da fronteira com a Polônia. “Não dá para afastar a possibilidade de confronto nuclear. Avaliações de especialistas em política não previram os movimentos de Putin, enquanto o pessoal de campo dava a invasão como iminente. Nem as sanções econômicas levam a um recuo por parte dele”, diz.

TEMOR O secretário-geral da ONU, António Guterres, diz que o conflito nuclear entrou no campo das possibilidades (Crédito:Houssam Shbaro )

Mais uma porta para a terceira guerra pode ser aberta se o conflito entrar pelo território russo, “o que ninguém ainda está imaginando”, nas palavras de Juliano Cortinhas, especialista em RI e professor-visitante da Universidade da Virginia, nos EUA. Ele leva ainda a questão do risco de uma Terceira Guerra para médio e longo prazos, que também poderia ocorrer com o isolamento total da Rússia e sanções durando muito tempo. “Vivemos em um mundo de interdependência, onde canais não são fechados — o gás russo continua abastecendo os alemães. Haverá risco enorme se isolarem completamente a Rússia. Foi esse caráter punitivo que, depois da Primeira Guerra, levou a Alemanha à Segunda. É um exemplo de paz mal construída, porque esse processo tem de ser inclusivo”, explica.

Com relação a armas táticas, que poderiam ser usadas dentro da Ucrânia, acredita-se que são cerca de 2 mil em posse dos russos. Podem ser levadas por lançadores em terra ou por mísseis, ou ainda disparadas por aviões e torpedos, no caso de um confronto submarino.

Mas o prolongamento da guerra também aparece como possibilidade, no entender de Luciana Mello, com os russos se utilizando de armas nucleares “em doses homeopáticas devastadoras”.

A OTAN se mantém em prontidão com 40 mil soldados concentrados na parte oriental da Europa. Caças americanos foram levados à Polônia e à Alemanha. E, além de carregamentos de armas, milhões de euros para compras de equipamentos foram disponibilizados para os ucranianos por parte de americanos e europeus. A questão, das mais complexas, é como entrar com esse armamento na Ucrânia.

VILÃO Putin foi chamado de criminoso de guerra por Joe Biden: russos consideram ofensa imperdoável (Crédito:Mikhail Klimentyev)

Busca por saídas

Menezes, da UNB, diz que historicamente a Rússia nunca se valeu de armas nucleares, respeitando acordos internacionais, como o Tratado de Não Proliferação, levado à ONU por americanos e soviéticos ainda em 1968. Com a dissolução da URSS no fim de 1991, o arsenal foi todo para a Rússia, com ogivas saindo de Cazaquistão, Ucrânia (onde houve desarmamentos feitos pelos britânicos).

Da parte russa, nunca houve transferência de tecnologia nem ataques utilizando esse tipo de armas, lembra Menezes, e ainda foi assinado o START (Tratado de Redução de Armas Estratégicas), que é renovado a cada dez anos, para monitoramento e verificação dos dois lados. Os EUA de Donald Trump se retiraram do acordo em 2019, quando a renovação teria de ser feita em 2021, o que a Rússia segue cobrando.

De toda forma, a capacidade de destruição dessas armas não fica apenas na quantidade, observa Menezes. Ricardo Lima, físico e consultor na área de energia, vê risco em um “desequilibrado” no comando de 6 mil ogivas nucleares “que fariam Hiroshima e Nagasaki parecerem brincadeira de criança, porque seu poder de destruição é dez vezes maior, impensável”. Para ele, a força do dinheiro é uma das motivações para brecar a possibilidade de uma terceira guerra puxada por Putin — que também poderia contar com armas químicas e biológicas, que russos e ucranianos vêm se acusando mutuamente de utilizar e já documentadas no Vietnã, por iniciativa americana. “Uma guerra nuclear acaba com um dos pilares da Rússia, que são os negócios dos oligarcas. Tenho esperança que os sócios segurem a mão dele”, diz.

EQUÍVOCO A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, diz que a
3ª Guerra não vai ocorrer porque os EUA não querem (Crédito:Patrick Semansky)

E também é preciso ver até onde a economia mundial aguenta essas sanções que procuram tirar Putin do eixo. Um longo tempo com sanções é ruim para todo mundo, diz Cortinhas. O que a União Europeia parece ter bem em mente, com populações já sentindo a alta do custo de vida. Menezes observa que “uma coisa é dar a ordem; outra, é se será cumprida”, com relação às armas nucleares. Para ele, o que se conhece como “deep state”, a “governança” do país por trás de presidentes, freia ordens arriscadas, que se diluem em uma cadeia de comandos. Mesmo que Putin atinja o próprio limite explosivo, ele será contido.

“São vários os níveis de segurança e não tenho dúvidas de que os russos estão falando direto com o Pentágono, como falam e se monitoram há 30 anos”, diz. Não é uma decisão trivial, lembra, e não tem nada a ver com filmes onde presidentes apertam um botão vermelho. Com voluntários ou mercenários dos dois lados, Cortinhas não acredita em erro de cálculo por parte de Putin, que surpreendeu até o aliado Xi Jinping quando a invasão parecia improvável. “Vejo passos lentos da Rússia, mas Putin quer estabilizar posições a longo prazo”, afirma. E a China permanece com o comportamento esperado de sua diplomacia, de observar, negociar, aguardar que a guerra termine para ver como pode tirar o máximo de ganho possível. Está em posição estratégica e tenta ser o fiel da balança, por enquanto declaradamente ao lado dos russos.

NEGOCIAÇÃO Em reunião na Itália, missões diplomáticas da China e dos Estados Unidos tentam alinhar posições (Crédito:Divulgação)

O arsenal nuclear
Apenas nove países do mundo contam com esse tipo de armamento. A Rússia tem mais ogivas declaradas do que os Estados Unidos

Perto de 90% das 12.853 ogivas nucleares do planeta está sob controle de Rússia e EUA. São 5.977 com os russos e 5.550
com os americanos, de acordo com dados coletados em fevereiro de 2022 pelo Bulletin of Atomic Scientists, a partir de duas fontes: o Stockholm Institute Peace Research e o US Departament of State. Se aos EUA se somarem França e Reino Unido (que também têm arsenal nuclear e estão na OTAN), são 6.065, que ultrapassam o total da Rússia.

São nove os países do mundo que contam com esse tipo de armamento. Depois de Rússia e EUA, a quantidade cai. Terceira colocada, a China tem 350, seguida de França (290), Reino Unido (225), Paquistão (165), Índia (156), Israel (90) e Coréia do Norte (50). No total, os países do Oriente, junto com a Rússia, contam com 6.691 ogivas nucleares, enquanto os do Ocidente, incluindo Israel, somam 6.155.

Esses números são quase os mesmos que os coletados em 2021 pela Arms Control Association (organização americana que se diz apartidária). Para eles, a soma está em torno dos 13.080 porque a Rússia teria 6.257 e a Coreia do Norte, entre 40 e 50. Desse total, 9.600 estariam em uso militar e as outras, sendo desarmadas. A mesma associação aponta que os EUA mantêm parte de suas armas nucleares abrigadas na Europa: Turquia (meio caminho entre Ocidente e Oriente), Itália, Alemanha, Holanda e Bélgica.

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