Sem eventos públicos, cidades terão festas privadas de carnaval
Levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) divulgado na sexta-feira, 18, com 2.193 prefeituras de todas as regiões brasileiras aponta que 24,5% das que responderam ao questionário permitirão eventos privados no carnaval, embora tenham suspendido as celebrações públicas. Entre as cidades brasileiras com esta postura, estão Rio e São Paulo. Além disso, 46,1% dos municípios afirmaram ter cancelado qualquer tipo de comemoração – a exemplo de Recife – e 25,1% estavam com indefinições para a data até 17 de fevereiro.
Embora parte dos Estados e municípios tenha cancelado o ponto facultativo dos servidores públicos, os quatro dias de carnaval serão de centenas de festas e shows em capitais, como Rio, São Paulo e Salvador, no interior e em cidades turísticas do País, com portes e valores variados (que ultrapassam os R$ 700). A situação tem chamado a atenção em meio ao cancelamento dos festejos públicos, de carnaval de rua e escolas de samba.
Na última semana, vídeos de um evento privado carnavalesco no Memorial da América Latina, na capital paulista, com a cantora Anitta, viralizaram na internet e atraíram críticas pela aglomeração e liberação, enquanto os desfiles públicos estão suspensos. O show foi parte de um festival com programação de cinco dias e autorizado a receber até 12 mil pessoas. Entre os críticos, há quem atribua a situação a um possível elitismo do carnaval e que diga que apenas o “carnaval dos ricos” está autorizado, enquanto a organização tem ressaltado respeitar todas as exigências sanitárias.
Após a repercussão das imagens, o governo paulista fez um alerta sobre o carnaval em coletiva de imprensa na quarta-feira, 16. “Há uma preocupação do comitê científico (do governo) em relação a esse período do carnaval, embora majoritariamente nenhum município do Estado esteja promovendo encontros de carnaval, há organizações privadas e pessoas desejosas de fazer festas domésticas. E essa não é uma boa iniciativa neste período”, declarou o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).
Diferentemente de outros períodos da pandemia, o Estado de São Paulo não impõe nenhuma restrição de público ou ocupação a festas e shows, independentemente do porte. Além disso, após ter anunciado a suspensão do ponto facultativo no carnaval no fim de janeiro, Doria voltou atrás menos de uma semana depois. Na capital paulista, assim como no Rio, o desfile das escolas de samba foi transferido para abril.
Coordenador executivo do comitê científico do governo paulista, João Gabbardo, argumentou que a menor exposição da população ao vírus nesta época poderá permitir novas flexibilizações nos protocolos sanitários futuramente, como o fim do uso obrigatório de máscaras ao ar livre. “É fundamental que todos, a população e aqueles que organizam eventos, seja da iniciativa privada ou não, que segure um pouco mais essa situação.”
Além das festas, o carnaval deve gerar um fluxo de turistas para as praias. Em parte da rede hoteleira, a expectativa é de lotação alta nos destinos mais procurados. Em Santos, Guarujá, Bertioga e Praia Grande, por exemplo, o Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares da Baixada Santista e Vale do Ribeira (Sinhores) prevê 84% de ocupação no período. Já a Associação das Agências de Viagens de Minas Gerais (Abav-MG) apontou que estão esgotadas as vagas em aéreos e hotéis em destinos tradicionalmente procurados pelos mineiros, como no Nordeste e na região dos Lagos, do Rio, e também no entorno de Belo Horizonte, como a Serra do Cipó.
Os governos também têm se preocupado com eventos clandestinos. No Rio, ao menos dois blocos foram às ruas no último fim de semana. Cerca de cem pessoas participaram do bloco “Não adianta ficar Putin”, que desfilou pelas ruas do centro da cidade no último sábado, a despeito de o carnaval de rua estar proibido pela prefeitura. Os foliões foram convocados por meio de grupos privados de mensagem.
A Secretaria de Ordem Pública (Seop) foi avisada do evento irregular e enviou equipes da Guarda Municipal para pôr um fim ao bloco. Já eram 11h da manhã e o bloco tinha começado a se reunir às 7h, em frente ao Museu do Amanhã, na zona portuária. O temor é que o problema se repita ao longo desta semana e, sobretudo, na próxima, com o feriado mantido.
Em janeiro, a Prefeitura transferiu o desfile das Escolas de Samba para abril e suspendeu o carnaval de rua deste ano em razão do novo aumento do número de casos de covid-19 com a disseminação da variante ômicron. A suspensão foi feita com a anuência de pelo menos 450 dirigentes de blocos – de um total de 506 inscritos para o carnaval deste ano.
Entretanto, o prefeito Eduardo Paes não suspendeu o feriado nem os eventos fechados. Parte dos blocos que costumam tomar as ruas da cidade nesta época do ano já anunciou a realização de bailes carnavalescos em clubes, hotéis e casas de espetáculos. Outra parte, ao que parece, pode tentar desfilar de forma clandestina, a exemplo do que já fez o “Não adianta ficar Putin”. Na prática, o carioca terá um carnaval em duas etapas: a dos blocos, na semana que vem, e o do Sambódromo, em abril.
Segundo informou a Secretaria Municipal de Saúde, os eventos fechados estão liberados somente mediante a apresentação do passaporte vacinal de todos os participantes. Mas, esclareceu, a cobrança do documento na entrada dos eventos privados é de responsabilidade dos organizadores dos bailes.
O Carnaval acontece entre 26 de fevereiro e 02 de março. Alguns dos principais blocos do Rio já divulgaram as datas de seus eventos. É o caso de Cordão do Bola Preta, Céu na Terra, Sovaco de Cristo, Fogo e Paixão, Sargento Pimenta, entre muitos outros, que estão organizando festas privadas.
“O Instituto Municipal de Vigilância Sanitária (Ivisa) fará, ao longo do feriado do carnaval, fiscalizações nos estabelecimentos comerciais, nas quais, um dos itens a serem conferidos é se o responsável está fazendo a devida cobrança do passaporte vacinal para o acesso do público, como estabelece decreto municipal”, esclareceu a secretaria, em nota. “Em caso de descumprimento, o estabelecimento será autuado.” A secretaria esclareceu ainda que as fiscalizações são realizadas de acordo com um cronograma montado pela própria Ivisa ou em resposta a denúncias da população que podem ser feitas pela central 1746.
A Seop, por sua vez, estará mais focada no ordenamento da orla, dos pontos turísticos e de outros locais de grande fluxo de pessoas durante os feriados. A secretaria vai monitorar “por meio do setor de inteligência, a realização de eventos irregulares para que não haja transtornos na cidade e que a Guarda Municipal atuará na desmobilização dos eventos”.
Evento clandestino também ocorreu no início do mês em Salvador. Na capital baiana, a prefeitura anunciou que terá uma fiscalização nas ruas para evitar grandes aglomerações, porém liberou eventos com até 1,5 mil pessoas.
Em Belo Horizonte, por sua vez, a postura da prefeitura tem causado insatisfação por parte dos produtores. Uma festa realizada por uma agremiação de rua foi suspensa no dia 13 e dois blocos tiveram a apresentação suspensa após um espaço cultural ser interditado.
Enquanto os grupos alegam uma “perseguição” da prefeitura, o secretário de Administração de Belo Horizonte, André Reis, diz que a suspensão ocorreu “simplesmente porque não havia licença”. Já o presidente da Liga Independente dos Blocos de Santa Tereza e do Volta, Belchior, Kerison Lopes, discorda: “Não era um encontro de blocos, mas apresentação, não havia necessidade de licenciamento”, alega Lopes.
Segundo ele, depois da ação de sábado “criou-se um clima de terror” no setor. “Por uma questão de sobrevivência, os blocos estão apostando nos eventos privados. Mas, dos 23 grupos, sete ou oito apenas estão conseguindo fazer shows em boates ou clubes com até 500 pessoas”, lamenta o carnavalesco.
O secretário da Administração disse ao Estadão que reuniões ainda serão feitas para avaliar o quadro da pandemia, mas que a tendência é manter a liberação para esses encontros particulares. “Apenas se houver grande número de solicitações, pode haver alguma restrição, o que até o momento não ocorreu”, afirmou.
As condições para a realização de festas particulares, segundo a prefeitura, são comprovante de segunda dose da vacina contra a covid-19 ou resultado negativo do tipo RT-PCR realizado 48 horas antes. O comércio, apesar do pedido do prefeito Alexandre Kalil, não vai funcionar, pois, segundo os lojistas, acordo com o sindicato de trabalhadores determinou que eles não sejam convocados.
‘Sanitariamente, neste momento, não deveria haver festas’
Especialistas ouvidos pelo Estadão apontaram que as festas ainda são consideradas difusoras potenciais do vírus da covid-19. A proximidade do carnaval tem gerado preocupação, especialmente pelos tradicionais dias seguidos de festa, com aglomeração e deslocamentos para diferentes cidades e Estados.
Nesta segunda-feira, 21, a Federação Médica Brasileira (FMB) emitiu uma nota em que demonstra “preocupação com as festas de carnaval e aglomerações, tendo em vista o aumento de casos de Covid-19 e complicações em pacientes por outras doenças respiratórias”. O comunicado cita que “inúmeros eventos particulares estão mantidos” e, por isso, “reforça o alerta para que os gestores públicos sigam empenhados na vacinação e reforcem a orientação à sociedade sobre aglomerações”.
Renato Kfouri, um dos diretores da Sociedade Brasileira de Imunizações, destaca que “ainda com uma taxa de transmissão alta. São 800 mortes por dia (em média), 24 mil por mês, é muita gente ainda morrendo”, embora a perspectiva seja de declínio nas próximas semanas. “Sanitariamente, neste momento, não deveria ter festas.”
Ele destaca que o comportamento do vírus é imprevisível para a realização de planejamentos com meses de antecedência. Isto é, no fim de 2021, parecia possível a realização de festividades de carnaval, porém a Ômicron se espalhou e impulsionou o aumento de internações. “Sempre que tem uma maior circulação, maior taxa de transmissão, essas medidas de distanciamento precisam ser incentivadas e fortalecidas.”
O médico pondera, contudo, que o aumento da transmissibilidade depende de outros fatores. “Mas é equivocado muitas vezes o conceito de que foi que carnaval que fez onda ‘x’ ‘aparecer. As festas, o réveillon, impulsionam, são agravantes importantes, mas não são causadores. O que motivam as ondas são o surgimento de variantes e o encontro de suscetíveis não vacinados ou variante com escape”, comenta.
Para Raquel Stucchi, professora de Infectologia na Unicamp, a decisão de suspender o carnaval de rua e o desfile das escolas de samba foi acertada, porém considera que deveria haver restrições aos eventos privados. “Da mesma forma que o poder público não permitiu a realização de aglomerações sob o seu comando, também deve limitar e ter uma fiscalização rígida, não permitindo que festas particulares aconteçam”, comenta. “Todas as medidas que visem diminuir o risco, como limitar a capacidade para no máximo de 50% de ocupação, exigir passaporte vacinal e teste, suspender o ponto facultativo do carnaval, seriam muito bem-vindas.”
Também explica que as festas de carnaval são mais propícias para um avanço da covid-19 porque sempre trazem muitas pessoas em um único ambiente, fisicamente próximas, cantando, falando alto e sem máscaras. “É a receita perfeita para ter um aumento da transmissão.”
Ela comenta que o avanço ainda insuficiente da aplicação da dose de reforço e a necessidade de começar a aplicar a quarta dose em idosos deixa parte da população ainda vulnerável ao vírus. “Ainda convivemos com o risco de nova explosão de casos, o que significaria uma nova explosão de pacientes com necessidade de internação e aumento no número de óbitos.”
Historicamente atacado, o carnaval vive mais um momento de ataques. Para o pesquisador Milton Cunha, do Observatório do Carnaval do Museu Nacional/UFRJ, a liberação de grandes eventos e festas privadas enquanto os desfiles das escolas de samba estão suspensos é uma postura elitista. “Entendo quando a autoridade bloqueia tudo. Liberar uns e não liberar outros mostra dois pesos, duas medidas”, disse ao Estadão.
“Você, artista popular, não vamos cantar a sua música, mas o bloco da cantora ‘tal’ está preservado e poderá ir à arena com milhares de pessoas, são os que podem pagar os R$ 100 de entrada, mais as bebidas. Que janela é essa que fecha para a exibição do artista popular, de comunidade, de escola de samba? É muito sintomático você ver que a branquitude pode e a negritude não pode”, comparou Cunha, que estudou o carnaval no mestrado, doutorado e pós-doutorado e popularmente é conhecido por ser comentarista de desfiles na televisão.
“Qual seria o contágio seletivo do carnaval da Sapucaí que não acontece na arquibancada na Fórmula 1, no show gospel? Qual critério científico para poder aglomerar e cantar para Jesus e você não poder cantar e dançar pra sua escola de samba? Que vírus é esse que reage de diferentes formas humanos para quem canta gospel e samba? É conversa para boi dormir”, questionou.
Para ele, não há sentido em proibir os desfiles do sambódromo, enquanto outros eventos com grande público estão autorizados. “(Em aglomeração) Carnaval é igual (a) uma festa rave, um show de rodeio em Barretos, um evento gospel com milhares gritando ‘aleluia’”, compara. “A grita (reclamação) ecoa menos (quando vem dos envolvidos com carnaval).”
Cunha considera que as frequentes associações do carnaval de 2020 ao espalhamento da covid-19 são reforçadas pelo conservadorismo, historicamente visto contra artistas populares, oprimido pelo poder público, a polícia, as elites e algumas religiões. “Prove que as mortes vieram do sambódromo em 2020”, desafia. Os primeiros casos da doença no País foram de pessoas que contraíram a doença do exterior ou de pessoas que vieram de fora. “O samba apanha desde que ele nasceu, é coisa de preto, de pobre, de comunidade.”
‘Vai ser uma outra coisa, fora do contexto comum’, diz Cunha sobre carnaval em abril
Perguntado pelo Estadão sobre a mudança no desfiles do Rio e de São Paulo para o feriadão de Tiradentes, Cunha avalia que o evento terá uma atmosfera distinta de outros anos. Será mais um grande espetáculo, uma grande apresentação, mas sem estar dentro de um contexto festivo nacional, com outro simbolismo.
“Na quinta de carnaval, quando o prefeito entrega a chave da cidade pro rei momo, o Rio entra em transe, o ar da cidade muda, é uma energia doida, um torpor carnavalesco que não vai existir em abril”, compara. “Os desfiles das escolas de samba vão ser um produto cultural que em nada vai estar circunscrito nesse torpor. Vai ser uma outra coisa, fora do contexto comum.”
Entre os pontos discutidos desde o anúncio, está o de desfilantes e trabalhadores do setor que precisarão optar por uma das duas cidades, pela incompatibilidade de ir aos desfiles nas duas capitais (geralmente, os grupos especiais desfilam em dias distintos). Isso em um contexto de dois anos de dificuldades financeiras no setor. Além disso, Cunha questiona como será a frequência nos setores mais populares nos desfiles do segundo dia, especialmente nos da madrugada e da manhã de segunda-feira, que será dia útil.
Ele ainda comenta sobre a proximidade da nova data com a Alvorada de São Jorge, tradicional celebração que atrai milhares de pessoas ao antigo Campo de Santana, a cerca de um quilômetro do sambódromo carioca, na região central do Rio. “Vai ser uma miscelânea de São Jorge com escola de samba, vai ser interessante”, comenta. “Esse símbolo religioso (no carnaval, geralmente) fica na quadra. Dessa vez, ali, o São Jorge vai estar olhando os carros alegóricos.”
Para o pesquisador, “a longa espera” para o carnaval subsequente ao de 2020 também tem mudado os barracões. São quase dois anos com o mesmo enredo e um processo de produção com um ritmo que variou, sem contar a “penúria” financeira que os trabalhadores do setor enfrentaram e a insegurança sobre a realização de fato na nova data. “Estamos vivendo em tempos sub judice. Aguardando, esperando. Fica todo mundo aguardando, se olhando.”
“É como se já tivesse desfilado os sambas, mas não se desfilou. São enredos mais longevos. Tudo ficou muito longo”, aponta. “Do lado artístico, é estranhíssimo conviver 24 meses com a mesma coisa. A gente está careca de saber o enredo. É uma página que tem que ser virada. A gente está preso a uma coisa que não anda.”
Estadão