Corrupção, crime e drama humano no documentário sobre a morte de Celso Daniel

Poucas vezes um crime foi tão investigado quanto o assassinato de Celso Daniel, prefeito petista de Santo André, em janeiro de 2002. Geraldo Alckmin, então governador de São Paulo, destacou para a apuração os melhores quadros da Polícia Civil.

Luiz Inácio Lula da Silva, que era candidato ao Planalto, foi com a cúpula do PT ao presidente da República, Fernando Henrique, para pedir que a Polícia Federal supervisionasse a investigação. Eles não confiavam na idoneidade dos “policiais tucanos”. Mais tarde, o Ministério Público de Santo André, que desembaraçava esquemas de propina na cidade, entrou no caso de forma retumbante. Cabeças diferentes chegaram a conclusões diferentes, e o resultado é o maior mistério da crônica política e policial brasileira. Não por falta de investigação, mas por excesso dela.

A série documental O Caso Celso Daniel, da produtora Escarlate, que acaba de entrar em cartaz no Globoplay, busca um fio da meada nesse labirinto de pistas falsas, provas verdadeiras, acasos inexplicáveis, mal-entendidos, polêmicas e – antes mesmo que o termo se popularizasse – “fake news”.

A série não pretende criar uma teoria nova para o caso, o que é uma virtude. “Nosso objetivo foi clarear, abrir camadas, trazer informação checada para o público, preencher lacunas”, diz Joana Henning, da Escarlate, produtora da série e uma das idealizadoras do projeto. “Nosso foco foi refazer o caminho das perguntas, e acho que encontramos algumas respostas.”

As três perguntas centrais do caso são: quem matou Celso Daniel? Havia corrupção na prefeitura de Santo André? E: há alguma relação entre a corrupção e o assassinato? As duas primeiras encontraram uma resposta satisfatória, e a terceira é um mistério até hoje.

No dia 18 de janeiro, Celso Daniel e Sérgio Gomes da Silva, seu assessor e amigo, jantaram no restaurante Rubayat, em São Paulo. No caminho de volta a Santo André, foram abordados por bandidos armados, que sequestraram o prefeito. Sérgio Gomes conseguiu escapar. No dia 20 de janeiro, o corpo de Celso Daniel foi encontrado numa estrada de terra em Juquitiba, município da Grande São Paulo. Ele fora assassinado com oito tiros.

A resposta à pergunta “quem matou” foi dada pela polícia de São Paulo. As investigações revelaram uma quadrilha de sete integrantes, chefiados por Ivan Rodrigues da Silva, apelidado de “Monstro”.

Os suspeitos foram interrogados, confessaram o crime e, com poucas variações, contaram a mesma história. Saíram de casa com o objetivo de roubar um comerciante que fazia negócios com dinheiro vivo, Cleiton Menezes. Cleiton, que nunca havia dado entrevistas, fala pela primeira vez na série. Como perderam o carro de Menezes de vista, os bandidos decidiram, como plano B, sequestrar alguém que passasse num veículo importado. O Mitsubishi preto que transportava Celso e Sérgio chamou a atenção deles. Quando souberam que se tratava de um prefeito, ficaram assustados com a possível repercussão e, no desespero, resolveram se livrar da vítima.

Corrupção na prefeitura

A resposta à segunda pergunta também é positiva. Sim, havia corrupção na prefeitura de Santo André – um caso raro de caixa dois que deixou prova material. Pouco depois do crime, a empresária do setor de transportes Rosângela Gabrilli – entrevistada na série – contou ao Ministério Público que a prefeitura de Santo André cobrava uma “caixinha”. Ela chegou a apresentar aos procuradores um fax com os valores que cada viação deveria entregar mensalmente.

Em geral se paga propina em dinheiro vivo, e em Santo André não era diferente. Em pelo menos uma ocasião, por causa de um feriado, o dinheiro chegou à conta de Sérgio Gomes por transferência bancária. Os procuradores de Santo André conseguiram o extrato – e os valores correspondiam aos que haviam apareciam no fax de Gabrilli.

Reprodutor de vídeo de: YouTube (Política de PrivacidadeTermos)

Caixa dois

Um dos pontos altos do documentário é a participação do petista Gilberto Carvalho. Discreto, ele não costumava dar entrevistas sobre o caso quando o PT estava no governo. O discurso oficial petista sempre negou as acusações de Rosângela Gabrilli – de que era Sérgio quem cobrava as propinas pessoalmente – e de Bruno Daniel, irmão de Celso. Bruno sustenta que Gilberto, dois dias depois do crime, contou a ele sobre a existência de caixa dois em Santo André, e teria acrescentado que ele próprio, Gilberto, chegou a levar em seu carro o dinheiro da propina para o então presidente do PT, José Dirceu. Gilberto confirma a conversa, não nega o caixa dois, mas não endossa a parte que envolve José Dirceu.

Rara entrevista

A terceira pergunta: dado que a quadrilha foi identificada e a corrupção comprovada, haveria relação entre as duas coisas? No início de 2003, o Ministério Público levantou a tese de que haveria um mandante para o crime, e este seria Sérgio Gomes da Silva. Segundo essa teoria, Sérgio contratara a quadrilha de “Monstro”, porque Celso Daniel queria acabar com o caixa dois em Santo André, o que prejudicaria seus negócios.

A tese se baseava no depoimento de Aílton Alves Feitosa, bandido que havia fugido da prisão na véspera do sequestro do prefeito. Em uma rara entrevista que é outro dos trunfos do documentário, Feitosa, da cadeia, repete essa versão diante das câmeras.

Em 17 de janeiro de 2002, Feitosa participou de uma das fugas mais cinematográficas da crônica policial brasileira. Um helicóptero sequestrado por cúmplices pousou no pátio do presídio Parada Neto, em Guarulhos, e decolou levando Feitosa e outro detento, Dionísio Aquino Severo – este último, um bandido famoso e midiático. Dionísio foi recapturado três meses depois e, na cadeia, disse que tinha coisas a revelar sobre a morte de Celso Daniel. Não teve tempo: acabou assassinado dentro do presídio. Para os procuradores, o assassinato não foi por acaso. A fuga de Dionísio e Feitosa teria sido engendrada como parte do plano de matar o prefeito.

Celso Daniel durante entrevista, em 1997 © Itamar Miranda/Estadão – 28.05.1997 Celso Daniel durante entrevista, em 1997

A tese do Ministério Público tem alguns problemas, apontados na série por Marcelo Godoy, repórter do Estadão que se destacou na cobertura do caso com reportagens informadas e factuais. Um deles é que a teoria se assenta quase que somente no depoimento de Feitosa. Sérgio Gomes acabou preso no final de 2003. Ficou sete meses na cadeia e passou a evitar aparições públicas. Negou até a morte – em setembro de 2016 – que tivesse sido o mandante do crime contra aquele que considerava seu melhor amigo. Sua morte extinguiu a investigação, pois não há outro suspeito de ser mandante do crime.

Trama costurada

A equipe de reportagem do documentário, chefiada pela jornalista Gisele Vitória – que está com Joana Henning desde o começo do projeto -, entrevistou mais de 50 pessoas. Algumas pediram anonimato, outras – como o delegado Armando de Oliveira, um dos líderes da investigação policial – preferiram não dar entrevistas, mas colaboraram com subsídios para a pesquisa.

Além da trama bem amarrada de crime e corrupção, destaque da direção de Marcos Jorge, a série retrata a emoção dos que foram afetados pelo assassinato bárbaro. São especialmente tocantes os depoimentos de Ivone de Santana e Miriam Belchior, respectivamente viúva e ex-mulher de Celso Daniel. Trata-se de um enredo político e policial mas, acima de tudo, um drama humano – e uma das virtudes da série é a sensibilidade para captá-lo e retratá-lo.

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