Réus da Boate Kiss têm penas definidas: maior é de 22 anos e 6 meses
Após 10 dias de sessões no Foro Central de Porto Alegre, jurados decidiram que todos os quatro réus processados pela tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), devem ser condenados pelas 242 mortes e pelos ferimentos em mais de 600 outras vítimas.
Em reunião na sala secreta, os jurados que ouviram relatos e argumentos de testemunhas, da acusação e das defesas nos últimos dias responderam a perguntas do juiz Orlando Faccini Neto, como se absolvem ou condenam cada acusado e se a conduta foi intencional ou não.
“A culpabilidade dos réus é elevada, mesmo se tratando de dolo eventual. Apesar de eventual, este dolo foi intenso e isso repercutirá na pena”, disse o magistrado ao ler a sentença na tarde desta sexta-feira (10/12).
Os quatro réus foram julgados no Rio Grande do Sul por 242 homicídios consumados e 636 tentativas.
São eles Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, 38 anos, sócio da boate, que foi condenado a 22 anos e seis meses de prisão; Mauro Lodeiro Hoffmann, 56 anos, também sócio da Boate Kiss; condenado a 19 anos e seis meses; Marcelo de Jesus dos Santos, 41 anos, integrante da banda Gurizada Fandangueira; e Luciano Augusto Bonilha Leão, 44 anos, produtor musical da banda; ambos condenados a 18 anos de reclusão.
O juiz determinou ainda que a pena comece a ser cumprida imediatamente, mas os réus tinham conseguido um habeas corpus preventivo e ainda não serão presos. Do resultado, cabe recurso tanto ao Ministério Público quanto às defesas.
Tragédia que matou 242 pessoas e feriu mais de 600
Casa noturna tradicional de Santa Maria, cidade de quase 300 mil habitantes no interior do Rio Grande do Sul, a Boate Kiss recebeu centenas de jovens em 27 de janeiro de 2013. Estavam previstos dois shows ao vivo. O primeiro foi de uma banda de rock e aconteceu normalmente. Depois, foi a vez da Gurizada Fandangueira. A casa tinha capacidade oficial para 690 pessoas e estava superlotada: tinha entre 800 e mil pessoas.
O guitarrista da banda, Rodrigo Lemos, relatou desde o início que o fogo começou depois que um sinalizador foi aceso. Ele disse que os colegas de banda logo tentaram apagar o incêndio, mas que o extintor não teria funcionado. Um dos integrantes da banda, o gaiteiro Danilo Jaques, morreu no local.
Naquela trágica noite, as faíscas do sinalizador atingiram o teto revestido de uma espuma que servia como isolamento acústico. Em pouco tempo, o fogo se espalhou pela pista de dança e logo tomou todo o interior da boate. De acordo com os bombeiros, a fumaça altamente tóxica e de cheiro forte provocou pânico. Aí começou a tragédia.
Ainda sem saberem do que se tratava, seguranças tentaram impedir a saída antes do pagamento.
Nesta sexta, último dia de julgamento, a promotora Lúcia Helena Callegari mostrou aos jurados um documento no qual o segurança André de Lima, que não prestou depoimento porque morreu este ano de Covid-19, diz que o sócio da Kiss Elissandro Spohr, o Kiko, fez com que ele “segurasse um pouco a porta” quando o público tentava deixar. Trata-se do depoimento do segurança a um processo na Justiça Federal em 2015.
“Me dá uma sensação de dolo [culpa por ato intencional] direto. Ele se postou na frente da porta. Isso é uma conduta de gravidade extrema, é um egoísmo extremo. É aquela coisa: o dinheiro vale mais do que tudo”, discursou a promotora.
Houve empurra-empurra enquanto os clientes tentavam deixar a casa. Muitos que não conseguiram, desmaiaram intoxicados pela fumaça. Outros procuraram os banheiros para escapar ou buscar uma entrada de ar e acabaram morrendo. Segundo peritos, o sistema de ar condicionado ajudou a espalhar a fumaça. Além disso, um curto-circuito provocado pelo incêndio causou uma explosão — 242 pessoas morreram e mais de 600 ficaram feridas. Várias deram depoimentos emocionados ao longo desses 10 dias de julgamento.
Momentos marcantes
Os depoimentos dos sobreviventes foram os momentos mais intensos emocionalmente desse julgamento. Já no primeiro dia, a vítima Kellen Giovana Leite Ferreira, de 28 anos, contou como teve parte de uma perna amputada devido aos ferimentos. Emocionada, Kellen relatou que caiu ao tentar escapar das chamas dentro da boate e que sua sandália ficou presa no tornozelo, cortando a circulação sanguínea.
“A última vez que eu corri foi para tentar me salvar da morte“, lembrou. Ela estava acompanhada de sete amigos, dos quais três morreram, teve 18% do corpo queimado e ficou 78 dias internada no Hospital das Clínicas de Porto Alegre.
“Muita gente morreu sem saber o que estava acontecendo“, contou outra sobrevivente, Cristiane dos Santos Clavé, de 34 anos, que conseguiu sair. Seu irmão foi buscá-la e ajudou a quebrar as paredes de madeira do local para tirar a fumaça tóxica da boate.
“Quando meu irmão chegou, eu disse pra ele que aquilo era um filme de terror. Meu irmão foi tirar as madeiras que revestiam a parede. Ele veio até a mim dizendo que ia entrar. Eu disse pra ele não entrar”, relatou ela.
O DJ Lucas Cauduro Peranzoni, que trabalhava na casa noturna na noite da tragédia, contou que viveu um enorme terror na ocasião.
“Eu desmaiei. Caí e fui muito pisoteado. Alguém me tirou de lá”, disse Lucas à promotora Lúcia Helena Callegari. Ele deu o relato aos prantos para explicar por que não ajudou outras pessoas que estavam em meio às chamas.
O engenheiro Emanuel Almeida Pastl, de 27 anos, disse na quinta-feira (2/12) que ficou com os olhos queimados devido ao incêndio. “Quando eu saí, eu já estava com os olhos queimados. Então, na minha visibilidade, eu estava vendo fumaça em tudo que é lugar. Eu não consigo dizer o quanto eu vi de fumaça na rua ou não”, contou.
Outro momento que chamou a atenção foi quando a advogada Tatiana Borsa, que defende o músico Marcelo de Jesus dos Santos, responsável por ter acendido o artefato pirotécnico na Boate Kiss, usou, na quinta-feira (9/12), uma carta que ela disse ter sido psicografada para tentar inocentar o vocalista da banda Gurizada Fandangueira.
“Procurem aceitar as determinações divinas. Eu também lamento tudo que ocorreu, mas só me resta me readaptar à realidade”, dizia a mensagem, que seria de uma das vítimas e, segundo Tatiana Borsa, foi recebida pelo centro espírita Irmã Valquíria, localizado em Uberaba (MG), em 13 de junho de 2013, seis meses após a tragédia.
Dunga ajudou a preparar refeições para familiares
O julgamento dos réus da tragédia na Boate Kiss causou comoção no país. Ao longo dos dias, anônimos e famosos se solidarizaram com os feridos e parentes de vítimas que acompanham os trabalho em Porto Alegre.
No dia 7 de dezembro, terçam o técnico Dunga, capitão da Seleção Brasileira no tetra campeonato, em 1994, esteve na tenda de acolhimento aos familiares das vítimas e ajudou a preparar refeições. O ex-atleta lidera uma instituição de voluntários que fornece alimentação para pessoas em situação de vulnerabilidade.
Dunga convocou uma oração com os presentes, e se emocionou. “Para nós, está sendo difícil. Acredito, para vocês, muito mais. Então, a gente vai rezar um ‘Pai nosso’ e que ele possa, o homem lá de cima, dar força para todos vocês superarem este momento e que acolha todos esses meninos que tinham uma vida imensa aqui na Terra”, disse.
Metrópoles