Em seguida, o Einstein apresentou a nova diretriz à Câmara Técnica da Central de Transplantes da Secretaria Estadual de Saúde. Finalmente, com outras instituições, foi criado um documento oficial que passou a nortear norteou as cirurgias de transplante de pulmão pós-Covid no estado de SP, em texto também encaminhado ao Sistema Nacional de Transplantes.
Veja, abaixo, quais são as principais exigências que habilitam um paciente a passar pelo procedimento:
- recuperação do pulmão considerada irreversível, em diagnóstico feito seis semanas após os primeiros sintomas de Covid;
- mínimo de seis semanas de dependência de ventilação mecânica ou ECMO (oxigenação do paciente feita por uma membrana fora do corpo);
- demais órgãos (como rim e coração) devem estar preservados e não apresentar disfunções;
- exame PCR negativo para Covid antes da cirurgia;
- força e possibilidade de reabilitação muscular;
- e o paciente lúcido e acordado para ser consultado sobre a cirurgia.
O caso divisor de águas
Com as novas regras, o Einstein avaliou mais de 30 pacientes para o transplante, e apenas quatro foram considerados aptos e passaram pela cirurgia.
O segundo a receber um novo pulmão foi o empresário Hipólito Correia Costa, de 61 anos. Transferido de Maceió para a capital paulista, ele foi internado em outubro e estava havia desafiadores 88 dias em ECMO.
O transplante, já sob o novo protocolo, foi um sucesso e é considerado um divisor de águas nos transplantes pós-Covid no país. Hipólito teve alta após 257 dias de internação, para continuar a recuperação em casa, com a família.
Transplante pós-Covid (e pós-parto)
Após a cirurgia, os pacientes têm um longo caminho de reabilitação, não só por causa adaptação ao novo órgão, mas também em razão do quadro grave e dos meses de luta contra as complicações da Covid.
“Para esses pacientes que estão muito tempo acamados, a recuperação, do ponto de vista muscular, é mais difícil até do que a recuperação pulmonar”, explica José Eduardo Afonso Júnior, médico do Einstein.
Especialmente desafiador foi o transplante de Ana Rayane dos Santos Medeiros, de 31 anos, moradora de Natal. Ela se infectou com Covid em junho, quando estava grávida. Depois da internação, o quadro se complicou, e o parto acabou sendo antecipado. Três dias depois, Ana Rayane foi intubada.
A equipe do Einstein teve de fazer toda a avaliação da viabilidade do transplante por telemedicina. Segundo o coordenador de transplantes do hospital, esse é um dos legados dos obstáculos impostos no caso de transplantes pós-Covid.
Em agosto deste ano, Ana Rayane foi transferida de Natal para São Paulo. Com os novos exames, uma surpresa: a situação imunológica dela seria incompatível com um transplante de pulmão habitual. Isso é o mesmo que dizer que, na prática, os anticorpos da paciente poderiam rejeitar o novo órgão.
“Ela recebeu muita transfusão de sangue, tinha acabado de ter filho. Então, estava com a imunidade totalmente sensibilizada. Para você ter ideia, de cada cem doadores que fossem compatíveis com ela, só um serviria do ponto de vista imunológico”, conta o médico Afonso Júnior.
A equipe decidiu então por um procedimento inédito no Brasil: uma plasmaferese momentos antes da cirurgia. Neste processo, os anticorpos são retirados do corpo, como se fosse uma diálise, só que específica para os anticorpos. Isso teria de ser feito já no centro cirúrgico para o transplante, nada dava para ser antes.
A equipe do banco de sangue do Einstein ficou de sobreaviso 24 horas por dia, pois a qualquer momento poderia aparecer um órgão de um doador. Em 31 de agosto, após a plasmaferese e 12 horas de operação, Ana Rayane recebeu, enfim, um novo pulmão.
“São pouquíssimos centros do mundo que conseguem fazer isso”, explicou o coordenador de transplantes do hospital. Depois de um período de dois meses de recuperação, Rayane teve alta médica nesta segunda-feira (1º).
Já o analista de sistemas Henrique Batista do Nascimento, que realizou o procedimento no Incor, teve alta em 20 de setembro. Agora, ele se recupera em casa, na Brasilândia, Zona Norte de São Paulo, ao lado da esposa e do filho de apenas um ano.
Debate sobre gravidade x ordem de chegada
Segundo a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, há 117 pessoas na fila de espera por um pulmão no estado – nenhuma por causa das complicações do coronavírus.
Segundo o médico Paulo Pêgo, diretor da Divisão de Cirurgia Torácica e do Programa de Transplante de Pulmão do Incor, a lista de espera de transplantes hoje é essencialmente cronológica. Ou seja, por ordem de entrada.
Até a chegada da Covid, a maior parte dos pacientes que recebiam um novo pulmão não estava com um quadro grave de saúde. “O doente de transplante de pulmão muitas vezes vem de casa. Ele está dependendo de oxigênio, mas está andando, comendo, com uma nutrição razoável”, disse Pego.
Quando os pacientes de Covid começam a ser avaliados para transplante, a média de espera da lista, que é de 1,5 ano, se torna um impasse. Eles provavelmente não sobreviveriam se tivessem de esperar.
No entanto, a gravidade do quadro de um paciente que precisa de um novo pulmão não é suficiente para que ele seja priorizado.
“Isso [a priorização] foi discutido muito a nível mundial. Hoje, nos Estados Unidos, se usa o ‘Lung Allocation Score’ (Pontuação de Alocação do Pulmão), que leva em consideração o risco de vida versus a chance de sobrevida. No Brasil, não temos isso ainda”, disse o diretor do Incor.
Quando os médicos decidem que algum paciente está apto para a cirurgia e a priorização, o caso é levado à Câmara Técnica da Secretaria Estadual de Saúde. Se não houver consenso, a decisão vai para a Câmara Nacional. Na deliberação, o médico do paciente não tem poder de voto, para não haver conflito de interesse.
“Isso não é matemático, isso não é fácil de discutir. É muito complexo”, diz Pego.
Médicos ressaltam que a priorização na lista de espera não é uma condição específica do paciente pós-Covid. Ela pode ser oferecida a qualquer paciente da lista de espera que tenha o quadro agravado e boas condições de recuperação.
Procedimentos via SUS
A maior parte dos transplantes de pulmão pós-Covid realizados no Brasil ocorreu através do SUS.
“Na prática, essas pessoas tiveram tratamentos que outras pessoas em países ricos não tiveram. Ou que, no Brasil, pelo sistema de saúde suplementar, não teriam”, avalia o médico Paula Pego, do Incor.
Os transplantes, assim como a terapia ECMO, não estão no rol da Agência Nacional de Saúde (ANS) e não são oferecidos pelos planos de saúde particulares.
Um transplante de pulmão custa, em média, de R$ 150 a 200 mil. Já a terapia ECMO pode sair – por dia – cerca de R$ 30 mil.
Dos quatro transplantes do Einstein, dois aconteceram por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), uma aliança entre seis hospitais de referência no Brasil e o Ministério da Saúde.
“Nosso programa é público, ele está aberto a pacientes de qualquer estado, de qualquer cidade do país”, afirma Afonso Júnior, do Einstein.
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