Brasil tem 162 cidades sem homicídios há pelo menos 10 anos

A violência é um problema endêmico no Brasil. São mais de 50 mil homicídios por ano, de acordo com o Atlas da Violência, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ao número superlativo somam-se ocorrências assustadoras retratadas diariamente pela mídia. A impressão é que mortes violentas acontecem em todo o país, sem exceção.

Mas não é bem assim. Há 162 cidades que não registraram assassinato nos últimos 10 anos. São municípios pequenos espalhados por 11 estados – o maior tem pouco menos de 10 mil habitantes –, que acabam formando um arquipélago de paz em meio a um oceano turbulento. Juntas, essas ilhas de tranquilidade somam 480 mil pessoas. O número é ínfimo perto dos 212,6 milhões habitantes estimados no país, mas permite imaginar que a violência mais brutal não é, necessariamente, um fato absolutamente impossível de ser evitado – ou, ao menos, amenizado.

Há um grupo ainda mais seleto, dos municípios que não computam homicídio desde 2001. São 58 em oito estados sem mortes violentas há 20 anos. Nesse caso, o maior deles tem população de 5,6 mil pessoas. Ao todo, são 154 mil homens e mulheres vivendo nesses locais.

Para chegar ao número, o (M)Dados, núcleo de análise de grande volume de informações do Metrópoles, levantou, com base no Datasus, por cidade brasileira, todos os homicídios que ocorreram desde 2001. Isso foi feito segundo a metodologia do Atlas da Violência, que utiliza os registros de saúde, e não os policiais, que são mais subnotificados. É importante ressaltar também que os índices de 2020 ainda são considerados preliminares pelo Ministério da Saúde.

O mapa a seguir mostra onde estão as cidades sem homicídios há 10 anos e as sem assassinatos há duas décadas. Em amarelo, as que não tiveram esse tipo de crime desde 2011. Em azul-claro, as que não registraram casos assim desde 2001. A lista de municípios pode ser consultada no fim da reportagem.

Dois “pontos azuis” do mapa: Nova Aurora (GO), sem homicídios há uma década, e Águas de São Pedro (SP), cujo último assassinato foi em 1994. A cidade no Centro-Oeste fica próxima de Catalão (GO) e tem 2,2 mil habitantes. O município paulista situa-se a 190 km da capital do estado, um pouco depois de Piracicaba (SP).

Ambos retratam bem a realidade desses municípios – e também eventuais problemas nas estatísticas oficiais. O sociólogo mineiro e membro do Fórum Nacional de Segurança Pública Luis Flavio Sapori explica que, em cidades menores, o nível de controle social por parte da comunidade é mais forte, o que acaba inibindo comportamentos violentos.

“O tamanho da população é uma variável decisiva. À medida que a vida comunitária nas pequenas cidades é mais intensa, tende a ser menor a manifestação de uma violência mais intensa. Funciona como um anteparo para comportamentos antissociais de alguns indivíduos”, explicou.

“Não quer dizer que não tenha, mas ela é menos intensa e com características distintas, como conflitos passionais ou de vizinhança”, acrescentou. Esse componente atua com força em um dos três fatores que geram violência no Brasil, o da impunidade, apontou. Os outros dois são a desigualdade social e a disseminação do tráfico de drogas. Cidades pequenas têm também um mercado consumidor menor para drogas.

Mestre em Policiamento pela University College de Londres e tenente-coronel da Polícia Militar do Mato Grosso, Franklin Epiphanio faz uma análise na mesma linha. Ele explica que os municípios menos povoados também “apresentam menores fatores de risco, como desigualdade de renda e vulnerabilidade socioeconômica. São cidades com menor dinamismo econômico”.

Assim, a economia mais estagnada desses lugares acaba contribuindo para uma maior segurança. “Áreas que apresentam prosperidade econômica se tornam novos polos de investimento e atraem repentinamente muitas pessoas, tornando-se cidades socialmente desorganizadas, o que cria oportunidades de crime”, pontuou Epiphanio.

Um oásis de paz a duas horas da cidade que mais mata

Entre 2001 e 2020, São Paulo (SP) foi a cidade com a maior quantidade de homicídios registrados. Foram 43,5 mil no período – o que representa mais de 2 mil assassinatos por ano.

A vida parece o completo oposto em uma cidadezinha a menos de 200 km da capital paulista, percorridos em pouco mais duas horas. Trata-se de Águas de São Pedro, que tem a menor população do estado.

Apenas dois homicídios foram registrados em toda a história da cidade, em 1994 – o assassinato duplo de uma comerciante e de sua neta de 1 ano. A tranquilidade do lugar é destacada pelas pessoas como um dos principais fatores que os levaram a estabelecer moradia no local.

Apenas uma cidade goiana não registrou homicídios desde 2011

Nova Aurora (GO) está longe de ser a cidade mais famosa de Goiás. O município entre Catalão (GO) e Caldas Novas (GO), situado próximo à divisa com Minas Gerais, tem apenas 2,2 mil habitantes. E ganha destaque quando o assunto é a (ausência de) violência. Nenhum homicídio foi registrado pelo Ministério da Saúde desde 2001.

A estatística oficial é assinalada por médicos, que, ao preencherem o certificado de óbito, apontam a causa da morte – que é o critério utilizado para definir homicídios. De acordo com o levantamento feito pela reportagem, nenhum assassinato foi registrado em Nova Aurora pelo menos desde 2001. A população da cidade, porém, conta uma outra história, mas que não altera o cenário de tranquilidade do local. Todos se lembram de um caso ocorrido há 10 anos.

No início de 2011, um morador da cidade foi atropelado e degolado diante de diversas pessoas. Nas estatísticas oficias da cidade, no entanto, há apenas dois falecimentos registrados em fevereiro daquele ano, um por senilidade e outro por câncer na bexiga. Há um terceiro caso de um habitante de Nova Aurora que morreu no mesmo período, mas em outro município, cuja causa lançada no sistema é senilidade. A reportagem não teve retorno de como essa notificação foi computada nos bancos de dados do Ministério da Saúde.

O caso ilustra bem as discrepâncias eventuais que podem existir entre os bancos de dados e a situação concreta nas cidades. Apesar da tentativa de retratar da forma mais fidedigna possível a realidade, há sempre a possibilidade de divergências entre o que aconteceu e o que foi registrado. As causas para isso são amplas – vão de erro humano a omissões intencionais – e estão quase sempre relacionadas ao fato de que esses números acabam sendo preenchidos por pessoas.

 

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