‘Eu tô sendo de vítima de etnocídio e racismo’, diz professora afastada de escola por ‘insistir’ no ensino indígena
“Enquanto houver uma Mura nesse rio Madeira para gritar, lutar e resistir, vai ter resistência Mura”, diz a professora indígena, Márcia Mura, de 47 anos, que relatou ao g1 ter sido vítima de etnocídio, racismo e perseguição política em uma escola da comunidade Nazaré, localizada na zona ribeirinha de Porto Velho.
Após 24 anos atuando como professora na rede estadual, a doutora em História Social está há quase dois meses sem lecionar, desde que foi devolvida da Escola Francisco Desmorest Passos.
O relatório enviado à Secretaria Estadual de Educação (Seduc) indica que um dos motivos para a devolução seria a “insistência” da professora em ensinar conteúdos sobre a cultura local e indígena.
“Eles fizeram praticamente um dossiê me criminalizando”, conta.
O caso foi denunciado pela Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas (FPMDDPI), composta por 210 deputados e 27 senadores, na quarta-feira (13). O Sindicato dos Trabalhadores em Educação no Estado de Rondônia (Sintero) também acompanha o caso.
“Eu vou lutar para que o Estado se responsabilize pelo que eu tô passando porque isso é etnocídio”, diz.
Reconstrução da memória indígena
Márcia atua como professora estatutária em Rondônia desde 1997 e se afastou por um tempo para cursar o doutorado em História Social. Na tese da formação, a professora analisou como comunidades ribeirinhas localizadas em torno do Rio Madeira mantinham um modo de ser indígena, mesmo após o processo de descolonização.
“Eu decidi voltar para a comunidade onde vive a minha família”, relata.
Além do laço familiar, um objetivo de Márcia era levar para a sala de aula reflexões sobre a origem da comunidade, e fazer a reconstrução da memória indígena educando os alunos sobre a história do rio Madeira como território ancestral Mura.
“No primeiro momento quando eu cheguei me apresentando como Mura, com meus adereços, o meu risquinho no olho que é a minha marca indígena, para muitos gerou um certo choque”, relembra.
Segundo Márcia, foi difícil defender a inserção de pautas indígenas nos conteúdos escolares e falar sobre o preconceito gerado por uma “cultura de apagamento da História”. A situação se intensificou quando a direção da escola passou por mudanças.
Afastamento
Além de indicar que Márcia “insistia em lecionar conteúdos indígenas”, o relatório apresenta uma sequência de situações que aconteceram ao longo dos anos classificados como “conflitos interpessoais” e “dificuldades de hierarquia”.
Uma delas foi o momento em que Márcia sugeriu que o nome da Feira Gastronômica Cultural que era realizada na escola fosse alterado para “Feira de Encontros e Saberes” considerando que o termo “gastronômico” remete à colonização. A decisão foi tomada em conjunto pelos professores.
Outra situação apontada foi quando a escola trocou a imagem de uma indígena Inca que tinha na parede da escola por uma paisagem. Márcia diz que quando viu o que havia acontecido começou a chorar.
“Aquilo para mim foi muito impactante. É como se fosse uma faca enfiada no meu coração”, conta.
O relato da direção da escola alega que a pintura estava desgastada e por isso foi substituída. Aponta também a reação da professora, ao dizer que o ato configura como etnocídio, como uma questão de conflito e dificuldade de hierarquia.
Alguns dias após o episódio, no dia 25 de agosto, Márcia foi chamada na escola e recebeu a informação de que não fazia mais parte do corpo docente.
“Foi dolorido porque foram cinco anos jogados no lixo. Todo trabalho, toda dedicação, trabalhando até doente, na maioria das vezes, até durante a pandemia eu trabalhei doente. E aí eu sou tirada assim da escola de forma abrupta e arbitrária”, lamenta.
Segundo a professora, a Seduc ofereceu que ela fosse remanejada para outra escola da zona urbana, condição que ela recusou. Márcia informou também que protocolou uma resposta ao relatório de devolução no Setor Regional de Educação, mas até o momento não obteve resposta.
“Eu tô sendo de vítima de etnocídio, de racismo, de perseguição política e eu não vou aceitar ser lotada em nenhuma escola na cidade sendo que eu moro lá em Nazaré e a gente tem projeto de fortalecimento cultural lá”, se posiciona.
O g1 entrou em contato com a Seduc para saber o motivo do afastamento da professora e se algum outro profissional foi designado para ocupar a vaga que ela exercia, mas até a publicação da reportagem, não obteve resposta.
Rio Madeira como ancestral Mura
De acordo com a professora Márcia, há documentos que comprovam que o povo indígena Mura ocupou as margens do rio Madeira pelo menos desde os anos 1700, e são peças fundamentais na construção da história da região.
“Para barrar a entrada dos colonizadores na Amazônia via rio Madeira, os Mura guerrearam 100 anos contra os colonizadores, de arco e flecha, de todas as estratégias de guerra Mura, e os colonizadores só conseguiram avançar na Amazônia via rio Madeira depois que eles conseguiram desarticular essa resistência Mura à base de muito genocídio, muitas mortes”, diz.
Depois da guerra, os Mura teriam se espalhado pelos arredores da região, principalmente na região da Amazônia.
G1