Simone Biles: por que desistir às vezes pode fazer bem à saúde, segundo especialistas
“Não somos apenas atletas. Somos pessoas, afinal de contas, e às vezes é preciso dar um passo atrás”, disse a norte-americana Simone Biles na terça-feira (27/7) ao deixar a arena da Olimpíada de Tóquio, depois de desistir da final por equipes da ginástica artística.
Na quarta-feira (28/7), Biles também desistiu de disputar a final individual geral, na quinta-feira. Ela ainda não confirmou se participará das finais por aparelhos para as quais se classificou: salto e barras no domingo (1/8), solo na segunda-feira (2/8) e trave na terça (3/8).
Apesar de nem todos terem a visibilidade de Biles ou viverem a pressão a que atletas são submetidos na competição mais importante do mundo, o gesto da atleta pode servir como lição e reflexão para todos nós, dizem especialistas em saúde mental ouvidos pela BBC News Brasil.
“Hoje, se fala mais da saúde mental nos esportes, na música, na educação, e o fato de tocar nisso desmistifica o assunto”, afirma Lívia Castelo Branco, psiquiatra da clínica Holiste.
“Há artistas que escolhem se afastar das redes sociais ou que decidiram nem entrar nas Olimpíadas. Quando se trata de um problema físico, as pessoas conseguem falar de forma mais natural — por exemplo, que houve uma ruptura do ligamento do joelho, por isso o atleta está afastado. Já a saúde mental, por mais que estejamos falando mais nela, é mais difícil de mensurar e abordar”, completa.
“Algumas pessoas vão encarar a desistência como falta de vontade ou covardia, mas na verdade é um ato de coragem muito grande expor a dificuldade, a fraqueza, a saúde mental ao público.”
O peso do mundo nas costas
Vale destacar que uma decisão dessas, de abandonar uma competição tão importante, ganha uma repercussão ainda maior quando uma personalidade do esporte mundial está envolvida. Aos 24 anos, Biles já é considerada a maior ginasta de todos os tempos.
Esse reconhecimento se deve às quatro medalhas de ouro conquistadas na Rio 2016 e aos cinco títulos mundiais em 2013, 2014, 2015, 2018 e 2019, feito inédito na história da modalidade.
Antes dos Jogos de Tóquio, a americana já era apontada como a grande estrela do evento e carregava nas costas a certeza (quase a obrigação) de levar os Estados Unidos para muitos pódios.
A psicóloga Valeska Bassan, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), destaca a “coragem” de Biles ao reconhecer e expor seus limites — e sugere que a decisão pode ter sido motivada por fatores relacionados ao estresse, mas também por autoconhecimento.
“Precisamos aprender que podemos desistir. A gente se programa, se prepara, tem um foco, mas em algum momento esse foco pode ser diferente”, destaca a psicóloga.
“É se perguntar: por que preciso passar por tudo isso? E, principalmente, para quem?”, aponta Bassan, destacando as pressões externas às quais Biles, e todos nós, estamos submetidos.
“No dia-a-dia, vemos muitas situações assim relacionadas ao trabalho. Por exemplo, uma pessoa que cursou uma faculdade ou exerce uma profissão para cumprir a expectativa da família. Ou nos relacionamentos, já que foi imposto socialmente que casar é pra sempre.”
“Por tentar atender às expectativas dos outros, a pessoa acha que desistir é um fracasso, porque estaria decepcionando mais pessoas.”
A própria Simone Biles apontou a pressão que vive. “Acho que a saúde mental é mais importante nos esportes nesse momento. Temos que proteger nossas mentes e nossos corpos e não apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos.”
A visão de quem já competiu
No mundo dos esportes, cada vez mais profissionalizado e competitivo, os atletas precisam estar com o corpo e a mente afiados para serem bem-sucedidos naquilo que fazem.
E isso envolve, inclusive, conhecer os próprios limites físicos e psicológicos e saber a hora de parar ou desistir.
A jogadora de hóquei sobre a grama Sam Quek, que ganhou ouro em 2016 com o time do Reino Unido, disse estar frustrada com a forma como o caso de Biles foi retratado na mídia e nas redes sociais.
“Eu vi manchetes que destacam como ela era fraca e não estava com a mente forte para lidar com a pressão”, analisou para a BBC.
“Ela disse que não estava com a cabeça boa para ter o desempenho esperado e que poderia causar danos a si mesma. Todo atleta sabe que, se entrar na competição mais ou menos, o risco de se machucar é grande, ainda mais quando falamos de uma modalidade como a ginástica artística”, avaliou Quek.
“[Com sua decisão] Biles criou uma base para atletas e pessoas do mundo todo se sentirem melhor quando algo não parece estar certo. Ela teve a bravura e a coragem de desistir.”
“Para mim, isso é ser uma verdadeira campeã”, completou.
“Como atletas, especialmente quando falamos de Simone Biles, a atenção e a validação estão ligadas a uma necessidade de se transformar num super-humano. Eu sempre a considerei uma espécie de Hércules feminina [em alusão ao herói da mitologia grega] e ela logicamente sente toda essa pressão”, conta Wilson, que ganhou bronze em 2016.
“A decisão de Biles pode significar uma mudança massiva na ginástica artística, com uma maior atenção sobre a saúde mental.”
O saltador britânico Chris Mears, ouro em 2016, avalia como é difícil lidar com toda a expectativa gerada após tantos anos de sucesso.
“Depois que ganhei o ouro no Rio de Janeiro me senti tão incrível. Parecia que meus sonhos mais malucos haviam sido realizados. Na sequência, desabei e não soube como processar aquilo”, declarou à BBC.
“Ninguém te ensina a ser um campeão olímpico e como lidar com isso. Eu entrei em depressão profunda, e o que me ajudou foi a terapia.”
Atenção aos sinais
Simone Biles desistiu de seguir na competição na terça-feira depois de marcar a pontuação mais baixa no salto olímpico. “Depois da apresentação que fiz, simplesmente não queria continuar”, disse ela.
“Eu não confio mais tanto em mim mesma. Talvez seja o fato de estar ficando mais velha. “Eu não queria ir lá, fazer algo estúpido e me machucar. Sinto que muitos atletas se manifestando realmente me ajudou.”
Para a psiquiatra Lívia Castelo Branco, o que Biles manifestou não parece ser uma decisão impulsiva, mas sim alguma questão de saúde mental que vinha escalando. Algo que todos nós, atletas ou não, podemos observar com sinais — e, com sorte, buscarmos ajuda em um ambiente que seja acolhedor, como uma equipe técnica que não apenas cobre, mas escute.
No trabalho, as pessoas podem perceber que estão desgastadas emocionalmente, por exemplo, se há frequentes faltas, queda de produtividade, dificuldade de atenção e um sentimento de que os objetivos profissionais (individuais e coletivos) não são cumpridos.
Valeska Bassan menciona também alterações no sono, na alimentação, pensamentos repetitivos, a sensação de incapacidade ou estímulo para fazer atividades conhecidas, o próprio sofrimento e, por último, o burnout (aquela sensação de completo esgotamento físico e mental que impede a realização de qualquer atividade).
Ignorar todos esses incômodos não só deixa de resolver, como pode prejudicar nossas atividades profissionais, sociais, entre outras.
“A nossa saúde física e mental está interligada. Eu brinco que o corpo é o porta-voz da psique: quando não estamos dando conta ou não damos atenção à saúde mental, o corpo dá um jeito de parar e avisar”, explica a psicóloga.
Os sintomas citados pelas especialistas não configuram necessariamente uma patologia, como a depressão ou ansiedade — mas podem ser um indício importante de que algo não vai bem e, por isso, a assistência profissional de um psicólogo ou um psiquiatra é recomendada.
Lívia Castelo Branco diz que, na maioria dos casos, o acompanhamento psicológico é suficiente, mas, em alguns, a intervenção com medicamentos — sob orientação médica — pode ser necessária.
Pelo cotidiano de pressões a que são submetidos, a psiquiatra diz que é esperado que atletas de alto desempenho tenham acompanhamento psicológico a longo prazo.
O exemplo de Biles, portanto, reforça a ideia de que determinação e disciplina são ingredientes fundamentais para o sucesso, mas às vezes é preciso se conhecer e, caso seja necessário, dar um passo para trás pelo bem da saúde do corpo e da mente.
Bassan reconhece que a realidade de muitas pessoas não permite, por exemplo, largar um emprego estressante ou mesmo acessar ajuda profissional. Mesmo nesses casos, a reflexão é importante.
“Se a gente pensar no trabalho, é mais difícil desistir sem ter respaldo (financeiro). Mas tem algumas situações que valem a reflexão: por exemplo, tenho esse trabalho que me traz renda, mas compromete meu bem-estar. Será que dentro das minhas possibilidades tenho como ajustar minhas condições financeiras para ter maior prazer em um novo trabalho?”
“A resiliência tem limite.”
A psicóloga diz que buscar atendimento profissional é sempre o mais adequado, mas pode aliviar o sofrimento também a conversa com pessoas queridas, praticar exercícios e se engajar em atividades que deem prazer.
“Se perceber, se observar e se respeitar também já é um grande passo”, completa Bassan.