Rotina de dor e desesperança: um em cada 7 brasileiros tem fome

Há brasileiros com fome. São milhões de pessoas que, com a crise social que vem a reboque da pandemia, viram mirrar uma renda que já não garantia segurança alimentar. São moradores de favelas, população em situação de rua e habitantes de zonas rurais, que mal conseguem comprar um botijão de gás com os auxílios financeiros governamentais (quando chegam) e, para comer, dependem da caridade incerta de ativistas e religiosos. São brasileiros famintos que choram de impotência quando seus filhos vão dormir sem se alimentar.

Sustentando os números que indicam o crescimento do fantasma da fome estão rostos como o de Luiz Roberto Côrrea Silva, de 26 anos. Ele vive com a esposa, Antonia Maria, 20, e uma filha de outro relacionamento, Isabela, de 8, na favela Olaria, zona sul de São Paulo, a maior metrópole do país.
Diante do cenário de desespero que vive, ele contou que a opção da família tem sido deixar a filha dormir o máximo possível, para acordar e já almoçar. Quanto ao casal, o caminho é ignorar a barriga roncando e acompanhar a menina na refeição. “Se a Isabela acordar muito cedo, ela vai ficar com fome. É café da manhã ou almoço. Não tem como ser os dois”, relata Luiz. “Vez ou outra, pode acontecer de ter só almoço. Aí a gente inventa alguma coisa para beliscar à tarde, dorme cedo e agradece a Deus esperando o alimento do dia de amanhã.”

A falta de recursos e a fome angustiam esse jovem brasileiro. “O que eu penso é muito pesado pra falar.” Ele chora, respira fundo, e desabafa: “Eu me sinto um inútil, um lixo. Eu não consigo dar pra minha família o que ela precisa. Por mais que eu acorde cedo, corra atrás”.

Com a cesta básica que ganha do Instituto Superação, projeto que atua na comunidade, mais os R$ 150 de auxílio emergencial do governo, somado aos bicos de auxiliar de pedreiro feitos por Luiz, que podem ou não ocorrer, a família tem lutado para manter ao menos duas refeições diárias.

Mais da metade dos brasileiros (59,3%) não se alimentam em quantidade e qualidade ideais, desde o início da pandemia. São 125,6 milhões de pessoas que têm comido o que podem, não o que querem. Os dados, revelados na última semana, são resultado de um levantamento realizado pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, sediado na Universidade Livre de Berlim, com a participação de pesquisadores brasileiros.

A mesma pesquisa indica que, dos 125,6 milhões, pelo menos 31 milhões, ou 15% dos brasileiros, vivem situação de insegurança alimentar grave – o nome acadêmico da fome.

Esse contingente de pessoas sem comer tem crescido, em comparação com levantamentos recentes. Segundo a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), eram 36,7% dos brasileiros que enfrentavam algum grau de insegurança alimentar, entre 2017 e 2018.

É uma diferença de 23 pontos percentuais em relação ao resultado da pesquisa realizada em 2021 pelo grupo Alimento para Justiça. Naquela época, consoante informações do IBGE, eram 10,7 milhões de brasileiros vivendo na insegurança alimentar grave. Três anos depois, o número chega aos 31 milhões de pessoas com fome no país.

“Fraqueza por falta de comida a gente tem sempre”

Rejane de Souza Rodrigues, de 50 anos, é outro rosto nas estatísticas. Ela mora há cerca de 9 anos na invasão do Parque Santa Rita, na periferia de Goiânia. Mãe de 12 filhos, trabalhava com reciclagem antes da pandemia, mas, com o avanço da Covid-19, por recomendação médica, parou de sair à procura dos materiais que vendia, pois sofre com a hipertensão e o colesterol alto.

A sobrevivência, há mais de um ano, vem dos bicos feitos pelos filhos. No momento, porém, ninguém da casa está trabalhando, e alimentação vem exclusivamente de doações.

A chefe da família numerosa mora em um lote com três barracos de tábua – o de dona Rejane, com oito pessoas, e os de outros dois filhos, que já são casados, também já têm filhos e as esposas estão grávidas – e apenas um banheiro. Ao todo, são 18 pessoas em situação de penúria.

Além de comida, falta água. Segundo dona Rejane, em vários momentos, o jeito é esperar a fome passar e acalmar. “É doído demais da conta, os meninos dão birra no chão, pedem coisas, eu fico ‘desimpaciente’, mas eu não tenho de onde tirar, tem é que esperar acalmar. Antes da pandemia, a gente tinha como sair e se virar, pegar o carrinho, procurar um reciclado, mas agora ficou tudo mais difícil. Lá em casa, graças a Deus, ninguém pegou Covid, mas fraqueza por falta de comida a gente tem sempre”, diz.

Com lágrimas nos olhos, a matriarca relata que a comida já faltou algumas vezes no prato, e que, em determinado momento, passou três dias sem ter alimentos, mas foi socorrida por dona Marilda, a líder comunitária da região.

“Todo dia a gente come o almoço na dona Marilda, mas na janta tem que dar um jeito né? Aí faz um arroz, põe um feijão no fogo. Quando ela ganha uma verdura, ela divide com ‘nóis’. De manhã, é só o café. Quando a dona Marilda tem pão, ela dá pra gente, e aí temos a refeição da manhã, mas às vezes não tem nem o café. Carne mesmo é só quando a dona Marilda tem. Ela dá cesta, mas lá em casa, que tem muita gente, a cesta dura só uma semana.”

No dia da visita ao Parque Santa Rita, dona Marilda vivia o luto da perda do irmão no dia anterior e, por isso, não fez o seu tradicional almoço diário, que alimenta cerca de 160 famílias da região.

A mulher, de 64 anos, acorda às 4h para fazer o almoço. A refeição é a única garantia do dia para várias famílias que vivem no local. A comida é feita de segunda a sexta-feira. De acordo com ela, o trabalho realizado é de “assistência social sem diploma”.

Fome no quintal do poder

Na capital federal, a fome também aflige principalmente os moradores da periferia, mas, mesmo no coração da cidade, há situações dramáticas. Em um acampamento de catadores a menos de 1km da Praça dos Três Poderes, no caminho entre a residência oficial e o escritório do presidente Jair Bolsonaro, cerca de 80 pessoas vivem rotina em que falta tudo, desde um teto até comida. São pessoas que dividem suas preocupações entre o direito à moradia e a falta de acesso às necessidades mais básicas.

Moradora do DF há 28 anos, onde chegou com apenas 5, a catadora Rita de Cássia da Silva Santos conta não lembrar a última vez que pôde tomar banho de chuveiro. Dormindo em uma barraca de lona e cuidando de um irmão cadeirante, ela passa os dias esperando a boa vontade de voluntários que doam comida, livros e brinquedos para as crianças, roupa e água. “Eu recebo R$ 130 do Bolsa Família, mas compro um botijão de gás e não sobra pra comida. Se não tem doação, não tem comida”, relata.

Inscrita no programa habitacional do governo candango, Cássia diz que está habilitada e entregou a documentação, mas nunca recebeu uma previsão de quando será contemplada.

Em alguns casos, como o de Francisco Erismar, 56, a situação de extrema pobreza persiste há décadas. Ele relata que nem o bico de catador consegue fazer, pois sofreu um derrame, há quatro anos, que o deixou com sequelas, mesmo após os dois meses de hospitalização. Com muita dificuldade, ele tenta enrolar um cigarro em um papel de caderno enquanto ferve um caldo de feijão, bem ralo, na fogueira improvisada.

“São 38 anos dentro do cerrado vivendo essa situação. Sem casa, sem banheiro, sem comer direito. É difícil ter esperança de alguma coisa, né? Eu fico aqui com meu cigarro, com meu feijão.”

Líder dos ocupantes do local, também vive a catadora Ivânia Souza, 37. Casada e mãe de três filhos com 16, 12 e 9 anos, ela viu a pouca renda despencar na pandemia, como os barracos dos vizinhos. Semana passada teve de vender o carro, único bem da família. “Sorte nossa são as pessoas, as ONGs, as igrejas de todos os tipos. Se não fosse a boa vontade, muita gente passaria fome”, acredita ela, que chegou a viver a sensação de não ter absolutamente nada para comer.

“Um dia, o dinheiro do material que meu marido juntou não deu pra cobrir a quantia que ele tinha pegado emprestada com uma pessoa, e ele não conseguiu trazer o pão e o refrigerante que costuma trazer quando vende. E os meninos pediram quando ele chegou”, conta ela, sem segurar a emoção. “De noite, meu esposo estava chorando na cama, primeira vez que o vi chorando em 17 anos de casados. Era porque os filhos pediram, e ele não tinha”, lembra ela, que foi socorrida por uma vizinha na manhã seguinte. “E eu sou muito grata por isso que ela fez, porque nesse dia não tinha mais nada em casa.”

Outro lado

A Secretaria DF Legal informou, na última semana, que a retirada dos invasores da área do CCBB está embasada na suspensão de uma liminar que proibia as remoções de ocupações como essa. A Secretaria de Desenvolvimento Social do DF afirmou que 27 famílias da região do CCBB são acompanhadas pelo Cras Brasília. Segundo divulgou o governo, essas pessoas receberam o Bolsa Família.

“Sozinha é difícil demais”

O Brasil tem 16 milhões de pessoas vivendo em favelas, segundo a Central Única das Favelas (Cufa), que tem promovido um dos maiores programas nacionais de assistência alimentar. Mais da metade dessa população, 9 milhões, diz ter perdido renda durante a pandemia.

Conforme pesquisa divulgada pela Cufa em fevereiro, nove em cada 10 moradores dessas comunidades receberam alguma doação no último ano, e oito em cada 10 não teriam tido condições de se alimentar direito ou comprar produtos de limpeza sem essa ajuda.

Umas delas é a carioca Adriana Pires da Silva, de 41 anos, moradora de Costa Barros, bairro do Rio de Janeiro (RJ). O local concentra diversas comunidades que abrigam famílias que perderam seus rendimentos nos últimos meses.

No caso de Adriana, o desemprego chegou há quatro anos; há seis, ela teve um filho assassinado numa ação da Polícia Militar. A situação de pobreza se agravou ainda mais em 2020 – para ela e para sua outra filha, ainda criança.

“Era uma vida razoavelmente tranquila, tinha uma rotina. Nunca tive uma condição financeira boa, e por isso a gente já ficava em casa. Não dá pra passear com criança sem dinheiro e ver que ela quer as coisas o tempo todo e não posso dar. Ela não entende”, diz a mulher. “Se eu adoecer, não vou ter quem me ajude e ainda posso deixá-la [a filha] doente.”

Para Adriana, é doloroso saber que, em casa, come-se o que dá e não o que se quer. “A última compra de alimentos que fiz foi com o cartão alimentação da minha filha, dado pela escola pela falta de merenda. Mas R$ 50 não dá. Compro o mais barato. Salsicha, ovo, pão e manteiga”, conta.

Sem renda e abandonada pelo ex-marido, Adriana se deparou com a crise depois do momento mais difícil que enfrentou até hoje: “Não faltou comida. Não como o que quero, compro o que o dinheiro dá no mercado. O pão ainda não faltou. Mas ainda tem a morte do meu filho, morto por quem deveria protegê-lo. Por isso eu digo que é um milagre eu estar viva. Não consigo confiar mais nas pessoas. É difícil acreditar de novo. Para sobreviver sozinha, é difícil demais”, desabafa.

Adriana segue “na luta”, com as alternativas com as quais pode contar. “Até o fim do ano passado, ainda tinha o auxílio emergencial. Desde janeiro que estou vivendo apenas com R$ 150 da pensão da minha filha. O Bolsa Família estava suspenso por causa do meu CPF, que estava irregular. Vou voltar a receber os R$ 130 a partir do dia 22 de abril. E desde janeiro comecei de novo a pedir emprego. Agora eu também consegui me cadastrar no novo auxílio emergencial, que vai me dar mais R$ 150. E conto com a ajuda de redes de apoio, de ONGs como o Rio de Paz, por exemplo, de quem recebo cestas básicas. Vizinhos me ajudam também. Agora é esperar as promessas de emprego que recebi.”

O futuro, para Adriana, é muito incerto, mas ela mantém a esperança – que tantos outros, na mesma situação, têm perdido.

“Pretendo que minha filha tenha um futuro melhor. Quero que ela seja independente, que tenha um marido porque quer e não pra depender dele para sobreviver. Não sei, mas já acho que é exceção as mulheres serem felizes com alguém”, atesta. “Vivi um sentimento de desesperança, de decepção com a humanidade. O carro onde meu filho estava foi fuzilado e nem quem fez isso merece uma morte dessas. Mas, pela minha filha, tenho esperança. Queria me mudar daqui, criar minha filha em outro lugar, com mais conforto”, conclui.

O cobertor curto do novo auxílio emergencial

Menor e menos abrangente do que o do ano passado, quando foram repassados R$ 295 bilhões no total, o novo auxílio emergencial tem R$ 44 bilhões para distribuir a cerca de 40 milhões de famílias. Como mostram as pesquisas, o repasse tem sido insuficiente para barrar o avanço da fome no país.

Procurado, o Ministério da Cidadania informou que o governo tem feito esforços contra a pobreza.

“O governo federal tem trabalhado sistematicamente para fortalecer os programas sociais e estabelecer uma rede de proteção para a população mais vulnerável. Somente em 2020, foram investidos mais de R$ 365 bilhões em políticas socioassistenciais que vão da primeira infância à terceira idade, executadas pelo Ministério da Cidadania. Iniciativas como o Programa Bolsa Família (PBF), o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Auxílio Emergencial reduziram em 80% a extrema pobreza no Brasil”, defendeu a pasta, em nota.

“No ano passado, foram apoiadas diretamente pelo Auxílio Emergencial 68,2 milhões de famílias, o que significa um total de 118,7 milhões de pessoas beneficiadas, 56,1% da população brasileira. Trata-se do maior benefício já criado no Brasil, o equivalente a mais de 10 anos de investimento no Bolsa Família”, menciona, ainda, a nota oficial.

Metrópoles

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *