Na capital federal, a fome também aflige principalmente os moradores da periferia, mas, mesmo no coração da cidade, há situações dramáticas. Em um acampamento de catadores a menos de 1km da Praça dos Três Poderes, no caminho entre a residência oficial e o escritório do presidente Jair Bolsonaro, cerca de 80 pessoas vivem rotina em que falta tudo, desde um teto até comida. São pessoas que dividem suas preocupações entre o direito à moradia e a falta de acesso às necessidades mais básicas.
Moradora do DF há 28 anos, onde chegou com apenas 5, a catadora Rita de Cássia da Silva Santos conta não lembrar a última vez que pôde tomar banho de chuveiro. Dormindo em uma barraca de lona e cuidando de um irmão cadeirante, ela passa os dias esperando a boa vontade de voluntários que doam comida, livros e brinquedos para as crianças, roupa e água. “Eu recebo R$ 130 do Bolsa Família, mas compro um botijão de gás e não sobra pra comida. Se não tem doação, não tem comida”, relata.
Inscrita no programa habitacional do governo candango, Cássia diz que está habilitada e entregou a documentação, mas nunca recebeu uma previsão de quando será contemplada.
Em alguns casos, como o de Francisco Erismar, 56, a situação de extrema pobreza persiste há décadas. Ele relata que nem o bico de catador consegue fazer, pois sofreu um derrame, há quatro anos, que o deixou com sequelas, mesmo após os dois meses de hospitalização. Com muita dificuldade, ele tenta enrolar um cigarro em um papel de caderno enquanto ferve um caldo de feijão, bem ralo, na fogueira improvisada.
“São 38 anos dentro do cerrado vivendo essa situação. Sem casa, sem banheiro, sem comer direito. É difícil ter esperança de alguma coisa, né? Eu fico aqui com meu cigarro, com meu feijão.”
Líder dos ocupantes do local, também vive a catadora Ivânia Souza, 37. Casada e mãe de três filhos com 16, 12 e 9 anos, ela viu a pouca renda despencar na pandemia, como os barracos dos vizinhos. Semana passada teve de vender o carro, único bem da família. “Sorte nossa são as pessoas, as ONGs, as igrejas de todos os tipos. Se não fosse a boa vontade, muita gente passaria fome”, acredita ela, que chegou a viver a sensação de não ter absolutamente nada para comer.
“Um dia, o dinheiro do material que meu marido juntou não deu pra cobrir a quantia que ele tinha pegado emprestada com uma pessoa, e ele não conseguiu trazer o pão e o refrigerante que costuma trazer quando vende. E os meninos pediram quando ele chegou”, conta ela, sem segurar a emoção. “De noite, meu esposo estava chorando na cama, primeira vez que o vi chorando em 17 anos de casados. Era porque os filhos pediram, e ele não tinha”, lembra ela, que foi socorrida por uma vizinha na manhã seguinte. “E eu sou muito grata por isso que ela fez, porque nesse dia não tinha mais nada em casa.”
Outro lado
A Secretaria DF Legal informou, na última semana, que a retirada dos invasores da área do CCBB está embasada na suspensão de uma liminar que proibia as remoções de ocupações como essa. A Secretaria de Desenvolvimento Social do DF afirmou que 27 famílias da região do CCBB são acompanhadas pelo Cras Brasília. Segundo divulgou o governo, essas pessoas receberam o Bolsa Família.
“Sozinha é difícil demais”
O Brasil tem 16 milhões de pessoas vivendo em favelas, segundo a Central Única das Favelas (Cufa), que tem promovido um dos maiores programas nacionais de assistência alimentar. Mais da metade dessa população, 9 milhões, diz ter perdido renda durante a pandemia.
Conforme pesquisa divulgada pela Cufa em fevereiro, nove em cada 10 moradores dessas comunidades receberam alguma doação no último ano, e oito em cada 10 não teriam tido condições de se alimentar direito ou comprar produtos de limpeza sem essa ajuda.
Umas delas é a carioca Adriana Pires da Silva, de 41 anos, moradora de Costa Barros, bairro do Rio de Janeiro (RJ). O local concentra diversas comunidades que abrigam famílias que perderam seus rendimentos nos últimos meses.
No caso de Adriana, o desemprego chegou há quatro anos; há seis, ela teve um filho assassinado numa ação da Polícia Militar. A situação de pobreza se agravou ainda mais em 2020 – para ela e para sua outra filha, ainda criança.
“Era uma vida razoavelmente tranquila, tinha uma rotina. Nunca tive uma condição financeira boa, e por isso a gente já ficava em casa. Não dá pra passear com criança sem dinheiro e ver que ela quer as coisas o tempo todo e não posso dar. Ela não entende”, diz a mulher. “Se eu adoecer, não vou ter quem me ajude e ainda posso deixá-la [a filha] doente.”
Para Adriana, é doloroso saber que, em casa, come-se o que dá e não o que se quer. “A última compra de alimentos que fiz foi com o cartão alimentação da minha filha, dado pela escola pela falta de merenda. Mas R$ 50 não dá. Compro o mais barato. Salsicha, ovo, pão e manteiga”, conta.
Sem renda e abandonada pelo ex-marido, Adriana se deparou com a crise depois do momento mais difícil que enfrentou até hoje: “Não faltou comida. Não como o que quero, compro o que o dinheiro dá no mercado. O pão ainda não faltou. Mas ainda tem a morte do meu filho, morto por quem deveria protegê-lo. Por isso eu digo que é um milagre eu estar viva. Não consigo confiar mais nas pessoas. É difícil acreditar de novo. Para sobreviver sozinha, é difícil demais”, desabafa.
Adriana segue “na luta”, com as alternativas com as quais pode contar. “Até o fim do ano passado, ainda tinha o auxílio emergencial. Desde janeiro que estou vivendo apenas com R$ 150 da pensão da minha filha. O Bolsa Família estava suspenso por causa do meu CPF, que estava irregular. Vou voltar a receber os R$ 130 a partir do dia 22 de abril. E desde janeiro comecei de novo a pedir emprego. Agora eu também consegui me cadastrar no novo auxílio emergencial, que vai me dar mais R$ 150. E conto com a ajuda de redes de apoio, de ONGs como o Rio de Paz, por exemplo, de quem recebo cestas básicas. Vizinhos me ajudam também. Agora é esperar as promessas de emprego que recebi.”
O futuro, para Adriana, é muito incerto, mas ela mantém a esperança – que tantos outros, na mesma situação, têm perdido.
“Pretendo que minha filha tenha um futuro melhor. Quero que ela seja independente, que tenha um marido porque quer e não pra depender dele para sobreviver. Não sei, mas já acho que é exceção as mulheres serem felizes com alguém”, atesta. “Vivi um sentimento de desesperança, de decepção com a humanidade. O carro onde meu filho estava foi fuzilado e nem quem fez isso merece uma morte dessas. Mas, pela minha filha, tenho esperança. Queria me mudar daqui, criar minha filha em outro lugar, com mais conforto”, conclui.
O cobertor curto do novo auxílio emergencial
Menor e menos abrangente do que o do ano passado, quando foram repassados R$ 295 bilhões no total, o novo auxílio emergencial tem R$ 44 bilhões para distribuir a cerca de 40 milhões de famílias. Como mostram as pesquisas, o repasse tem sido insuficiente para barrar o avanço da fome no país.
Procurado, o Ministério da Cidadania informou que o governo tem feito esforços contra a pobreza.
“O governo federal tem trabalhado sistematicamente para fortalecer os programas sociais e estabelecer uma rede de proteção para a população mais vulnerável. Somente em 2020, foram investidos mais de R$ 365 bilhões em políticas socioassistenciais que vão da primeira infância à terceira idade, executadas pelo Ministério da Cidadania. Iniciativas como o Programa Bolsa Família (PBF), o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Auxílio Emergencial reduziram em 80% a extrema pobreza no Brasil”, defendeu a pasta, em nota.
“No ano passado, foram apoiadas diretamente pelo Auxílio Emergencial 68,2 milhões de famílias, o que significa um total de 118,7 milhões de pessoas beneficiadas, 56,1% da população brasileira. Trata-se do maior benefício já criado no Brasil, o equivalente a mais de 10 anos de investimento no Bolsa Família”, menciona, ainda, a nota oficial.