Coronavírus traz à tona praga de previsões “do fim dos tempos”
No verão de 2008, uma médium idosa que afirmou ter começado a receber premonições aos 5 anos publicou um livro que continha uma previsão ameaçadora.
“Por volta de 2020, uma doença grave do tipo pneumonia se espalhará por todo o mundo, atacando os pulmões e os brônquios e resistindo a todos os tratamentos conhecidos”, escreveu no livro. “Quase mais desconcertante do que a própria doença será o fato de que ela desaparecerá tão rapidamente quanto chegou, atacará novamente dez anos depois e depois desaparecerá completamente.”
A previsão sumiu da memória pública e a autora do livro, Sylvia Browne, morreu em 2013. Mas a pandemia de coronavírus trouxe nova atenção ao livro de Browne, “End of Days: Predictions and Prophecies About the End of the World” (“Fim dos Dias: Previsões e profecias sobre o fim do mundo”, em tradução livre). Recentemente, o livro chegou ao segundo lugar no ranking de não-ficção da Amazon e cópias físicas agora estão sendo vendidas por centenas de dólares.
Autoridades governamentais e de saúde pública divulgaram todo tipo de diretrizes para ajudar as pessoas a se protegerem contra a disseminação do Covid-19. Mas há outro contágio que os especialistas parecem incapazes de parar: a praga dos profetas avisando que o coronavírus é um sinal de que estamos no “fim dos tempos”.
As pandemias têm o poder de fazer as pessoas em pânico esvaziarem tanto suas mentes quanto as prateleiras dos supermercados. Inúmeros avisos do dia do juízo final, como a previsão de Browne, estão se espalhando on-line, misturando o medo de coronavírus com tudo, de paranoia política a um “governo de um mundo único controlado pela ONU”, de incêndios na Austrália a enxames de gafanhotos na África.
O que move esses profetas do Juízo Final
Muitos incluem leituras imprecisas do Livro do Apocalipse. Esses profetas da pandemia costumam termina suas previsões com assinaturas do tipo: “SE VOCÊ NÃO TEM UMA BÍBLIA, COMPRE UMA!”
Talvez não seja de admirar que algumas pessoas estejam estocando armas e munição.
No entanto, alguns estudiosos que ganham vida com religião e profecias dizem que é hora desses profetas e médiuns de redes sociais serem encerrados em uma quarentena imposta. Profetas do apocalipse estão prejudicando a saúde espiritual e psicológica das pessoas, segundo eles.
Eles também estão reivindicando o conhecimento que nem mesmo as figuras mais reverenciadas da religião se atreveram a assumir. Sempre que Ulrich Lehner, teólogo católico da Universidade de Notre Dame, em Indiana, nos EUA, se depara com um pregador de rede social avisando que a COVID-19 significa que o fim do mundo está próximo, ele se sente tentado a tuitar de volta esta resposta: “Mateus 24:36.”
Essa é a passagem quando Jesus diz sobre o fim do mundo: “Quanto ao dia e à hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão somente o Pai.”
Lehner arremata: “O próprio Jesus disse que você não sabe a hora, mas alguns autodenominados profetas de hoje parecem conhecer mais do que os anjos ao redor do trono de Deus.” Ele acha que alguns profetas do juízo final estão sendo movidos por outro pecado: o orgulho.
“Talvez também exista um certo orgulho, uma autoconfiança inchada de que ‘eu tenho uma visão especial’, nesses caras que criam pânico em massa”, diz Lehner, autor de “God is Not Nice: Rejecting Pop Culture Theology and Discovering the God Worth Living For” (“Deus não é legal: Rejeitando a teologia da cultura pop e descobrindo o Deus pelo qual vale a pena viver”, em tradução livre). “Se isso não é diabólico, eu não sei o que é”, afirma.
Mas uma pessoa que ligou o COVID-19 às escrituras bíblicas diz que não estava tentando espalhar o medo. Elisha Jone, diretor de jovens de uma igreja no sudeste do Texas, tuitou a captura de tela de um post no Facebook que citava Crônicas 2, 7:13-15, trecho da Bíblia em que Deus diz a Salomão: “Se eu fechar o céu para que não chova ou mandar os gafanhotos devorarem o país ou sobre o meu povo enviar uma praga, curarei a terra se as pessoas se desviarem de seus maus caminhos.”
Alguém escreveu uma legenda acima da passagem bíblica que dizia: “Incêndios na Austrália – a chuva foi contida. África – praga de gafanhotos. Pandemia mundial – COVID-19.”
Jones disse à CNN que estava tentando avisar as pessoas de que “Jesus disse que essas coisas aconteceriam” e que a Terra está passando por “dores do parto antes da segunda vinda de Jesus”.
“Eu acredito totalmente que isso poderia ser um sinal direto de algo que Deus disse que aconteceria, ou até mesmo um aviso do que está por vir”, diz Jones sobre o COVID-19 e outros eventos mundiais.
A longa história de previsões ruins do dia do juízo final
Qualquer que seja o motivo, as previsões do dia do juízo final não têm um bom histórico.
Vocês se lembram do bug do milênio, ou Y2K? Que tal o recente “Apocalipse Maia”?
Algumas pessoas apontaram o fim do calendário Maia, em 21 de dezembro de 2012, para concluir que também significava o fim do mundo. Eles avisaram sobre ondas gigantes e que a Terra colidiria com outro planeta. As vendas de kits de sobrevivência dispararam e houve relatos de que um homem na China construiu a arca de Noé moderna .
Mas tais previsões ruins não são um fenômeno moderno.
Historiadores dizem que muitos cristãos na Europa do século 17 previram que o mundo terminaria em 1666 porque os números “666” representavam a marca da besta mencionada no livro do Apocalipse da Bíblia. Quando o Grande Incêndio de Londres, que durou quatro dias, começou naquele ano, muitos o viram como um cumprimento da profecia.
Browne, autora e médium, foi constantemente criticada pela imprecisão de suas profecias quando estava viva. Existem inúmeros relatos de que ela fez alegações equivocadas sobre crimes que aumentaram o sofrimento das famílias das vítimas. Ela até previu que morreria de velhice aos 88 anos – morreu aos 77 anos. Até a previsão mais famosa de Browne, sobre uma misteriosa doença respiratória em 2020, parece diferente sob uma luz crítica.
O site de verificação de fatos Snopes lembra que “reivindicar vagas impressões sobre eventos prováveis não é uma previsão”, ao examinar a profecia de Browne. O portal classificou essa previsão como não verdadeira ou falsa, mas como uma “mistura” contendo elementos significativos de verdade e falsidade. “Não está claro se a ‘previsão’ de Browne foi mais um palpite de sorte, considerando que o livro foi escrito após o surto de SARS”, disse Snopes.
Muitos repetem mitos sobre o Apocalipse
Se houvesse um prêmio para a fonte mais incompreendida de más previsões, ele iria para o Livro do Apocalipse. Nenhuma imagem ou linguagem de outro livro penetrou tanto na cultura popular quanto esse trecho da Bíblia. Mesmo as pessoas que nunca leram a Bíblia estão familiarizadas com suas referências: Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, o Dragão Vermelho, 666 e as Sete Pragas do Apocalipse.
A revelação está repleta de imagens tão contagiosas que um teólogo que estudou o Apocalipse o chama de livro “multimídia”, cujas imagens populares operam como uma doença infecciosa.
“Elas se separam do texto maior e circulam como pequenos vírus em nossa cultura, ligando-se a outras coisas, e é aí que eles realmente decolam e se espalham”, diz Timothy Beal, autor de “The Book of Revelation: A Biography” (O Livro do Apocalipse: Uma biografia”, em tradução livre).
Beal diz que muitas pessoas que citam o Apocalipse entendem errado o significado e o simbolismo. “Quase nenhuma das pessoas que falam sobre o Apocalipse realmente se sentou e leu o livro”, nota. “Muitos acreditam que o ‘Arrebatamento’, que é quando se acredita que Jesus retorna no fim dos tempos e todos os cristãos, mortos e vivos, se levantam para encontrá-lo, está em Apocalipse. Não é verdade”, diz Beal.
Não há menção explícita do Arrebatamento no Apocalipse. Há referências ao conceito nas escrituras como Coríntios 1, 15:52, que diz: “… Porque a trombeta soará, e os mortos serão ressuscitados imperecíveis, e nós seremos mudados”. Mas Beal diz que a teoria do Arrebatamento teve início na obra do século 19 de um teólogo chamado John Nelson Darby.
E o anticristo? Isso não está no Apocalipse?
Não, garante Beal.
O escritor do primeiro livro de João no Novo Testamento adverte sobre os “anticristos” genéricos que negam que Jesus é o Messias. Mas não há figura como o personagem central do filme “A Profecia”, um filho astuto de Satanás com o número 666 estampado em seu corpo.
Então, o que dizer de 666 – não está no Apocalipse?
Sim, mas não se refere a Satanás. Em vez disso, os teólogos dizem que o número faz referência a outra encarnação do mal para os primeiros cristãos: Nero, o imperador romano.
Jones, o diretor de jovens da igreja do Texas, citou Apocalipse 15: 1-3, que adverte sobre “sete anjos com sete pragas”.
“Não acho que publicar coisas dessa natureza seja espalhar o medo”, afirma Jones. “Minha crença é que Deus está chegando em breve e haverá coisas que foram escritas que acontecerão, coisas que podem parecer um pouco assustadoras, mas acho que reafirmam o que Deus disse que aconteceria”.
Por que invocar cenários do dia do juízo final pode ser prejudicial
Invocar passagens bíblicas do “fim dos tempos” pode realmente reforçar a fé de algumas pessoas, dando sentido a eventos que parecem cruéis e arbitrários. Mas as pessoas que evocam as imagens terríveis do Apocalipse em conexão com o COVID-19 podem fazer mais do que errar as escrituras. Eles podem prejudicar a saúde psicológica de outras pessoas, diz Beal.
“Uma aluna minha estava lendo o Apocalipse sentada à beira-mar, adormeceu e acordou no meio de uma tempestade. Ela teve um ataque de pânico absoluto porque se sentia como se estivesse na Bíblia”, diz Beal, professor de religião da Case Western Reserve University, em Ohio.
Beal lembra que as previsões do juízo final da Bíblia também podem levar a outro perigo: não fazer nada. Ele acredita que as pessoas que são invadidas pelo pânico por algo como o Covid-19 podem ignorar outros problemas crônicos que ameaçam a sobrevivência da humanidade, como as mudanças climáticas.
“Isso pode levar a um chamado à inação”, afirma Beal sobre más interpretações do Apocalipse. “Ou seja, as pessoas dizem que tudo isso está acontecendo por causa do plano de Deus e vai piorar antes que melhore, então não há nada que possamos fazer sobre isso porque é a vontade de Deus”.
No entanto, isso provavelmente não impedirá as pessoas de invocar o Apocalipse quando ocorrer uma pandemia. Durante séculos, o Apocalipse tem sido o livro preferido dos profetas do fim do mundo, alertando sobre a propagação de “pragas do fim dos tempos” e padrões climáticos bizarros.
Um estudioso questionou se o Livro do Apocalipse previu o coronavírus em uma coluna recente do Christian Post, concluindo: “o tremor final será muito mais intenso do que isso”.
Muitos estudiosos da Bíblia, no entanto, dizem que o Livro de Apocalipse não trata especificamente do fim do mundo. Antes, era sobre o fim do mundo de seu autor, um judeu devoto e seguidor de Jesus, que lutava para entender como o império romano invadiu Jerusalém em 70 d.C. e incendiou seu grande templo depois de anular uma revolta judaica.
A destruição do templo de Jerusalém era incompreensível para alguns seguidores de Jesus dos primeiros tempos. Eles esperavam que Jesus voltasse “com poder” e conquistasse Roma antes de inaugurar a nova era. Mas Roma havia conquistado a terra natal de Jesus.
De acordo com Lehner, o teólogo da Universidade de Notre Dame, o Livro de Apocalipse buscava lembrar aos cristãos primitivos que Deus e a justiça acabariam por prevalecer.
“O Livro do Apocalipse não é um livro sobre previsões, mas de consolação”, explica Lehner.
Consolação é o que as pessoas devem espalhar nas mídias sociais agora – não as previsões do dia do juízo final, diz ele. Lehner diz que nos últimos dias ele viu lindas orações e até mensagens engraçadas nas redes sociais que elevaram seu espírito. Ele pede às pessoas que consolem aqueles que podem estar isolados.
Fazer isso pode não ser tão emocionante quanto compartilhar previsões de destruição. Mas antes que você decida entrar em contato com seu Nostradamus interior, compartilhe uma palavra gentil em vez de uma previsão do dia do juízo final.
Você se sentirá melhor no final – e muitos de nós também precisaremos de toda a ajuda possível nos dias difíceis que virão.
CNN