Homens acusam Tião de Lima, assistente de João de Deus, de abuso sexual na Casa Dom Inácio de Loyola
“Ele me fez abrir a calça, subir na maca e colocou um lençol sobre meu corpo. Tirou meu pênis e começou a tentar me masturbar. E, enquanto isso, ele rezava. Rezava e dizia que ia me curar.” Dois anos depois de virem à tona as primeiras denúncias de assédio sexual que levaram João de Deus para a cadeia, uma nova onda de vítimas vem a público: homens afirmam ter sido abusados sexualmente pelo braço direito do líder místico, Sebastião de Lima, que, por quase quatro décadas, atuou ao lado de João na Casa de Dom Inácio de Loyola, onde era conhecido como Tiãozinho.
Quatro indivíduos ouvidos disseram ter sofrido assédio sexual dentro da Casa, o centro místico que João de Deus fundou em Abadiânia (GO) no fim da década de 1970 – e que chegou a sustentar 100 hotéis e pousadas com o fluxo de turistas que atraía para a cidade. Três ex-funcionários da Casa confirmam que os assédios aconteceram e que, durante as décadas de 1990, 2000 e 2010, foram comentados entre sussurros por quem trabalhava ao lado do líder místico.
Sebastião de Lima nega todos os relatos, e afirma que, tanto as acusações contra ele quanto as das mais de 300 mulheres que vieram a público falar sobre os assédios cometidos por João Teixeira de Faria, são “oportunismo”.
Os quatro ex-fiéis que relataram os abusos feitos pelo assistente direto de João de Deus não se conhecem, e são de regiões diferentes do Brasil. Apenas um deles aceitou ter seu nome publicado, e outro consentiu que seu relato em áudio fosse usado nesta reportagem, que consumiu cinco meses de investigação.
Três dos homens que descreveram os abusos são soropositivos, e procuraram João de Deus na esperança de se livrar do vírus HIV. Assim como acontece no relato de Marcus, sua sorologia era usada como pretexto para chegar aos seus órgãos sexuais.
É o caso do agente de viagem Felipe Dias, que foi a Abadiânia quatro vezes, entre 1994 e 2000. Na última visita, ele afirma ter sido assediado por Tiãozinho, assim que saiu de uma “cirurgia” espiritual com João de Deus.
“Eu esperei na fila por mais de uma hora. Daí, o ‘Seu’ João colocou a mão sobre o meu rosto e disse que eu estava operado. Saí da sala da Entidade [onde João Teixeira recebia o público, sentado em um trono], rezei por uns minutos e depois fui para o pátio. Foi lá que o Tiãozinho se aproximou. Me pegou pelo braço, me levou para a sala dele e disse: ‘Vou te ajudar com o prosseguimento do seu tratamento’. Dentro da sala, ele chegou perto de mim e, enquanto falava sobre o tratamento, pegou na minha virilha e pediu para ver. Para ver o que tinha lá dentro. Ele então colocou a mão dentro da calça. Eu me afastei, perguntei o que aquilo tinha a ver com o tratamento. Ele disse que eu precisava daquilo.”
Dias afirma que, no momento do assédio relatado, ficou confuso, e quase permitiu que o homem o tocasse contra sua vontade. “Ele era a pessoa que tinha acesso ao ‘Seu’ João. Ele tinha a chave para o paraíso”, diz. Felipe nunca mais voltou a Abadiânia.
Outros dois homens ouvidos pedem que seus nomes sejam preservados, relatam experiências parecidas, acontecidas na década de 2000. Ambos afirmam que Tiãozinho os levou para o escritório dele, que ele passou a mão em suas virilhas e tentou beijá-los, dizendo que aquilo era tratamento. “Ele disse que não era viadagem, que era tratamento. Porque ele não era viado, era casado e tinha filhos.”
Um ex-funcionário, que trabalhou na Casa por 10 anos e optou por não se identificar, afirma que também passou por uma tentativa de assédio sexual: “O Tiãozinho tentou comigo, mas não conseguiu o que queria”.
O rumor de assédio não é assunto inédito para quem viveu a realidade da Casa Dom Inácio de Loyola nos anos 1990, 2000 e 2010. Tesoureiro da Casa na década de 2000, Clodoaldo Turcato diz: “Na época em que estive na Casa, próximo ao médium João, eu ouvi de pessoas próximas e pacientes sobre a homossexualidade de Tiãozinho. Como eu nunca tive menor diferença quanto à opção sexual das pessoas, nunca me aprofundei. O que me incomodou foi saber, por outros, que Tiãozinho assediava homens no banheiro, principalmente, e na sala dele. Nunca tive maiores detalhes de como isso ocorria, apenas ouvi falar.”
Outro lado
Sebastião de Lima, o Tiãozinho, nega todas as acusações de assédio. Em uma conversa de uma hora em sua casa, em Anápolis (GO), e depois por e-mail enviado por seu advogado, Jorge Barbosa Lobato, ele classifica os relatos de “alegações vazias, sem nenhum respaldo fático, e indignas de credibilidade”.
“O Sr. Sebastião, nos 40 anos em que esteve junto à Casa de Dom Inácio, sempre atuou como vendedor de chaveiros e terços, jamais tendo atuado como empregado da Casa, participando de rituais de cura, ou recebendo entidades, logo, cai por terra tal alegação, pois o Sr. Sebastião nunca se propôs a operar curas ou sequer participou de rituais ou cirurgias mediúnicas.”
A definição que Sebastião faz do seu trabalho em 40 anos ao lado de João de Deus contradiz centenas de entrevistas com funcionários e fiéis da Casa que foram necessárias para escrever o livro A Casa – A História da Seita de João de Deus, publicado em abril deste ano pela editora Todavia.
O papel de Tião como braço direito de João de Deus foi documentado em reportagem da revista Galileu de 2009 e consta até nas biografias autorizadas do líder místico. No livro João de Deus – O Médium de Cura Brasileiro que Transformou a Vida de Milhões, escrito por outra assistente de João Teixeira que ganhou poder nos últimos 20 anos, há uma planta baixa da Casa de Dom Inácio, e nela consta um cômodo “Escritório de Sebastião”, ao lado da cozinha da sopa, o que coincide com as descrições feitas pelas vítimas.
Em outras biografias autorizadas, que João encomendou a fiéis, Tiãozinho é citado como assistente pessoal de João de Deus e secretário da Casa de Dom Inácio de Loyola.
No texto enviado por seu advogado, Sebastião afirma que a Secretaria era um ambiente aberto ao público e de acesso irrestrito. “De modo que jamais poderia acontecer de o Sr. Sebastião, ou qualquer outra pessoa, ficar sozinho com alguém naquele ambiente”, escreveu o advogado de Sebastião. “Existia determinação da diretoria da casa no sentido de que as portas da Secretaria deveriam sempre permanecer abertas.”
Sebastião também afirma, por meio de seu advogado, que o fato de a maioria das vítimas ter optado pelo anonimato pode encobrir um ataque pessoal contra ele. “Outro ponto que dificulta a manifestação é o fato da ausência de nomes, o que dificulta a defesa do acusado da conduta, pois tal acusação pode haver partido até mesmo de um desafeto, de alguém que de certa forma não queira o bem do ora acusado.”
Quanto à acusação de ter masturbado um fiel que estava deitado em uma maca na Enfermaria, ele escreve: “O ambiente da Enfermaria, da mesma forma que a Secretaria, era aberto ao público, e possuía cerca de oito macas, e que, quando tal ambiente estava em uso, as oito macas eram usadas de modo simultâneo, ou seja, ninguém ficava sozinho na sala, em ambiente privado, como alega a suposta vítima”.
A vítima não afirma ter ficado sozinha com Tião no momento do assédio, e sim ter sido masturbado embaixo de um lençol enquanto o funcionário da Casa de Dom Inácio estava de costas para o resto do salão.
Sebastião também nega que tenha tentado tocar em homens no banheiro do centro místico. “O ambiente do banheiro é público, e com capacidade para aproximadamente 10 pessoas por vez, e tendo em vista o grande número de visitantes, sempre estava lotado”, diz o texto enviado por seu advogado.
Sebastião e seu advogado também questionam o motivo desses relatos virem à tona anos depois dos fatos neles narrados. “Caso tais condutas tivessem de fato ocorrido, por que não foram à época objeto de reclamação ou denúncia junto à diretoria da Casa de Dom Inácio? Por que à época as vítimas não denunciaram as condutas do suposto autor à Casa de Dom Inácio ou às autoridades públicas? Por que só agora resolveram apresentar tal acusação?”
Não há boletins de ocorrência ou processos
Uma busca por boletins de ocorrência e processos contra Sebastião de Lima mostra que, em Goiás e no Distrito Federal, não foi feita nenhuma denúncia de crime sexual contra o assistente de João de Deus.
Os homens que se dizem vítimas de crime sexual explicam que há uma série de fatores que os levaram a se manter calados até 2020, e eles vão da vergonha ao medo. Marcus afirma que só percebeu que havia sido vítima de assédio sexual quando começou a ler na imprensa os relatos das mais de 300 mulheres que denunciaram João Teixeira de Faria por crimes sexuais. “Aconteceu com elas, e também aconteceu comigo. Tem um enredo que é criado, e você está ali numa situação de vulnerabilidade. Eles é que comandam, eles é que são os especialistas, então a gente confia.”
Nenhum dos homens entrevistados prestou queixa à polícia dos crimes sexuais que narram. E talvez não o façam. “Eu não tinha a intenção de fazer denúncia, por causa da privacidade. Minha família não sabe da minha sorologia. Me vem à cabeça eu indo lá fazer a denúncia, e penso que pode mexer comigo, emocionalmente. Eu não sei se isso causou algum trauma em mim, mas eu tenho medo de que isso possa causar [um trauma]”, diz Marcus.
“É um crime que já passou. Talvez já tenha até prescrito, mas acho importante falar dele para mostrar que aquele lugar acobertava muita coisa, não só o mais grave, que eram os estupros. É importante para evitar que aconteça de novo”, diz Felipe.
Marcus voltou para Abadiânia no Réveillon de 2016, dois anos depois do assédio que relata. “Foi um retiro espiritual, eu não estava mais procurando uma cura.” Tiãozinho não estava mais em Abadiânia. Já havia rompido com João de Deus e deixado a cidade sem explicação.
Segundo pessoas que trabalhavam na Casa no meio da década de 2010, o desentendimento entre Tião e João de Deus passou pelo rumor dos assédios que o assistente cometeria no banheiro da Casa mas também por acusações de desvio de dinheiro. “Ninguém imaginava que o Tiãozinho iria embora. Ninguém”, diz Julia Pasquali, professora aposentada da Universidade de Brasília e uma das frequentadoras mais antigas da Casa de Dom Inácio de Loyola, que visita desde o começo dos anos 1980.
“A partir dele eu entendia tudo o que estava acontecendo. Ele que organizava quem ia entrar, os privilégios que cada um teria e tal. Eu o conheci simples, como todos éramos simples, e nele eu via de fato como a vaidade tomou a Casa.” Quando deu essa entrevista, em meados de 2019, Julia não sabia das acusações de crime de natureza sexual contra Tiãozinho, e analisou seu rompimento com a Casa sem citar os relatos de abuso.
Às vésperas do Natal de 2020, a Casa de Dom Inácio de Loyola segue funcionando em Abadiânia. “Enquanto não houver nada de problema jurídico, nós vamos continuar renovando a permissão deles”, disse em fevereiro o prefeito reeleito de Abadiânia, José Diniz (PP).
* Nome falso a pedido da vítima
Metrópoles