20 anos depois, PM é condenado por assassinar jovem e queimar corpo
A vida de Giovani de Oliveira foi mais curta que a espera pelo julgamento de seu assassino. O jovem tinha 18 anos quando morreu e teve o corpo queimado, em 2000, em Santa Isabel, na Grande São Paulo. Mas só agora, duas décadas mais tarde, um policial militar foi condenado em primeira instância pelo homicídio.
Giovani foi visto com vida pela última vez entrando em uma viatura da Polícia Militar em frente a uma padaria no dia 27 de agosto de 2000, em Arujá, vizinha a Santa Isabel. O júri, que condenou o sargento Moisés Ângelo Marinho a 24 anos de prisão por homicídio qualificado, ocorreu no dia 26 de novembro de 2020, em Guarulhos. As qualificadoras levaram em conta uma possível emboscada na padaria e o fato do corpo ter sido encontrado carbonizado – o autor do crime foi preso, e cabe recurso da decisão.
Os familiares de Giovani, que tiveram de lidar com a demora da Justiça, foram lembrados na decisão da juíza Renata Vergara Emmerich de Souza, da Vara do Júri de Guarulhos:
“Não se poderia também deixar de considerar as consequências do crime para os familiares da vítima, que foram condenados, de forma sumária e definitiva, a conviver não só com a dor da perda de seu filho, de seu sobrinho, de seu neto; mas com a tragédia de ter ele sido tão brutalmente assassinado”, diz a sentença.
“Esta realidade, de fato, assola qualquer família, algo que jamais se esquece ou se supera. Esta marca, com certeza, os familiares de Giovani carregarão por toda vida, não havendo nada que amenize ou amaine esta dor tão imensa.”
O êxito da sentença, mesmo que tardio, ocorreu principalmente porque a família assumiu a investigação e nunca desistiu do julgamento, segundo a Defensoria Pública. E, de acordo com familiares de Giovani, também porque as denúncias recentes contra policiais – hoje registradas por aparelhos de celular e câmeras de rua – contribuíram para jogar um holofote no tema da violência policial.
De janeiro a maio de 2020, como mostrou o G1, o número de pessoas mortas por policiais militares dentro e fora de serviço no estado de São Paulo foi o maior de toda a série histórica iniciada em 2001: 442 vítimas. O total deste ano ultrapassou o número de mortos por PMs no mesmo período de 2003, com 409 mortes em decorrência de intervenção policial.
“A minha opinião, com tudo o que aconteceu, é que eu fui sempre atrás de justiça, sempre atrás de Justiça. E a Justiça foi feita, a gente está muito feliz com isso. A gente não estava vivendo, porque estava há 20 anos esperando por isso aí, para fazer justiça. E agora, sim, agora eu sei que a justiça foi feita, e eu estou mais sossegado. É importante noticiar, porque todo mundo vai saber que um caso assim não pode ficar impune”, afirma o familiar que não quis ser identificado.
Ele e a Defensoria Pública acreditam que Giovani foi morto por engano. “Confundiram ele com outra pessoa”, conta. “Estão matando muitos jovens. Eles estão acabando com a juventude e ninguém faz nada. Ninguém está fazendo nada para parar isso aí. Então, noticiando, eles vão ver que tem família que se dói pelos entes queridos.”
Temendo represálias, nenhum outro familiar quis ser identificado nesta reportagem.
Procurados, os advogados que representaram o policial no julgamento disseram ter entrado com um pedido de habeas corpus para que ele fosse solto do presídio Romão Gomes. O pedido, no entanto, foi negado. Ainda segundo os advogados, a família de Moisés Ângelo Marinho trocou de representante em 9 de dezembro.
O G1 tentou ligar para os novos advogados, mas não havia obtido retorno até a última atualização desta reportagem.
“Heroísmo” da família
O defensor público Fábio Sorge disse que atuou como assistente de acusação no processo, contou que os familiares de Giovani foram fundamentais para que o caso um dia chegasse ao Tribunal do Júri.
“Esse fato só chegou a ser julgado pelo empenho dos familiares do Giovani. Que foram atrás de testemunhas, que não deixaram o processo morrer, que bateram em todas as portas. Eles enfrentaram um superdescaso das autoridades que investigaram isso, que não se interessaram, que não buscaram resolver. O processo teve toda sorte de travamento, principalmente na fase de investigação”, diz o defensor público.
Ele afirma que houve “descaso com a família” durante a apuração dos fatos e que o Estado deveria ter mais estrutura para que não fosse necessário um “heroísmo” familiar para que um caso como esse fosse levado ao tribunal.
“Na verdade, ficamos muito tristes com esse tipo de situação. Essa família merecia uma apuração que esclarecesse a situação e que permitisse que os culpados fossem punidos. O Estado falhou imensamente na apuração desse fato. Demorou muito, a família sofreu com uma série de descasos. E só graças a todo o empenho deles é que teve essa decisão”, afirma.
“O estado precisa ser minimamente estruturado para garantir a apuração sem que a gente tenha que exigir heroísmo de qualquer família. O Estado [deve agir] para apurar, para verificar quem foi e quem não foi. Tem que haver uma apuração. Lamento muito pelo descaso com essa família, eles ficaram superabalados com o descaso que foi essa apuração.”
Caso
A primeira notícia que a família de Giovani recebeu no dia de sua morte foi a de que ele havia sido preso. O jovem já era formado no ensino médio e havia se mudado para Arujá pouco tempo antes. Tinha o sonho de abrir um negócio num terreno que o pai tinha na cidade.
“Ele foi abordado por policiais, e, aí, noticiaram para o pai dele que ele teria sido preso. Giovani foi abordado, e não se sabia onde foi parar. A família procurou o distrito policial, procurou hospitais, batalhão de polícia para ver aonde esse menino tinha sido levado, onde ele estaria. Não acharam”, disse Sorge.
Outro parente de Giovani conta como a família abraçou a investigação diante de tantas recusas de testemunhas para depor.
“Em Santa Isabel, muitas pessoas diziam que foi o sargento Ângelo que pegou Giovani e colocou na viatura. Ele morava a dois quarteirões da padaria onde o jovem foi visto pela última vez. Várias testemunhas foram ouvidas, mas poucas quiseram se arriscar em ir depor, temendo uma retaliação. Elas diziam que ele era um ‘justiceiro’ da região”, afirma.
Uma das pessoas que chegaram a depor disse que tinha certeza de ter visto Giovani na viatura de Ângelo. Segundo um familiar do jovem, essa testemunha apareceu morta uma semana depois.
Apesar de ameaçado, o familiar disse que não teve medo de assumir a investigação “com as próprias mãos”.
“Como já tinham perdido um dedo, tudo bem perder uma mão. Tivemos ameaça, sim. Eu e meu irmão fomos à rádio em frente à delegacia. O caso estava fazia anos parado, e queríamos que desse um avanço no processo. Que a mídia falasse. Quando chegamos lá, um rapaz de bicicleta disse: ‘Vão embora daqui, vocês vão arrumar problema aqui’.”
Com as pistas de testemunhas que não depuseram oficialmente, mas ajudaram no quebra-cabeça do caso, os familiares chegaram a um bar.
“Fomos para a cidade [Santa Isabel] e começamos a procurar. Todo mundo falava a mesma coisa dele. Tudo mato, cidade pequena. Paramos em um bar, chamado Sassá Mutema. Estava uma chuva terrível. Tinha dois senhores lá tomando uma pinga. Paramos para tomar um lanche”, lembra o parente de Giovani.
“Perguntamos se o senhor conhecia o assassino. Ele falou que conhecia. Perguntamos se ele sabia, se estava acostumado a fazer isso. O homem disse que sim. O senhor, que devia ter 68 anos, falou que corríamos risco. Hoje, ele nem está mais vivo. Daí, ele nos contou que o sargento sabia que estávamos à procura dele, que viu o reboliço todo, as buscas por Giovani, a presença da imprensa, e acho que foi aí que ele pensou em queimar o corpo”, conta.
“Depois, o senhor do bar contou que viu o [carro] Santana vinho do policial com pneus. Como tem uma lombada em frente ao bar, ele viu os pneus na parte de trás. Eu liguei um ponto ao outro e pensei que seriam usados para queimar o corpo.”
Os familiares seguiram pela estrada indicada pelo dono do bar e subiram um morro. “Era um lugar assim, aberto, com mato de 1,5 m de altura. Era enorme. Todo mundo saiu andando para procurar uma agulha no palheiro. O meu irmão gritou: ‘Corre aqui, corre aqui!’. Subimos lá e vimos a carteira dele [de Giovani] aberta, a foto da mãe dele, e uma conta de luz. Vimos os ossos dele, o pneu queimado para queimar o menino. Ali, foi o fim. Acabou com nossa família. Destruiu todo mundo”, diz, emocionado, o parente do jovem.
O resultado do exame de DNA que comprovou que o corpo encontrado era o de Giovani de Oliveira só saiu oito meses depois do ocorrido.
O familiar diz que, por perceber muito “corporativismo na investigação”, guardou uma falange do dedo de Giovanni, caso precisasse de uma parte do corpo do jovem. O objetivo era, depois de o caso ser encerrado, levá-la a Aparecida do Norte. Ele quer cumprir a promessa ainda neste ano.
A dor maior que ele carrega é de imaginar o sofrimento de Giovanni poucos minutos antes de morrer.
“Não foi brincadeira o que ele [o assassino] fez. Fico imaginando o que o menino passou. Do caminho da padaria até esse local. Lá é um local ermo, não tem casa nenhuma. Ele [Giovani] estava sabendo que já ia para abatedouro. Quando ele abriu a traseira do carro, mandou o menino descer. Imagina o que ele passou. Sem a gente para ajudar”, diz, chorando.
“Meu menino era um moleque que fazia amizade com todo mundo. Penso que o assassino pegou o menino enganado, que ele ia matar outra pessoa. Giovani era especial, nasceu com a perna para dentro, andava com muita dificuldade.”
De acordo com a Defensoria Pública, após as investigações da família, o processo ainda passou anos na delegacia de Santa Isabel, antes de seguir para o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP)
“Essa investigação dormiu na delegacia de Santa Isabel. E ‘dormiu’ é a palavra – ficou por lá vários anos, sem que o delegado de Santa Isabel refizesse aqueles reconhecimentos, levasse aquelas testemunhas para que elas pudessem apontar quem eram os policiais responsáveis por levar o Giovani da padaria […]. O processo, já em 2004, 2005, foi para o DHPP [Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa]. E ficou também anos – anos – no DHPP”, conta o defensor.
A Defensoria Pública entrou no caso em 2011 e as audiências começaram em 2014.
“Então, essa família ficou esperando mais cinco anos. Essa família veio procurar pela Defensoria Pública, nós entramos no caso em 2011. Só depois disso que houve a denúncia, sendo que esses reconhecimentos foram depois. As audiências desse processo foram ocorrer lá em 2014, e somente agora, em 2020, é que aconteceu o julgamento de um dos suspeitos “, relata o defensor.
Para um dos familiares de Giovani, o fato de um policial ser o investigado representou uma dificuldade adicional ao longo processo.
“As autoridades têm privilégio. Ele [o policial] teve muito privilégio. Ele só foi preso graças à justiça divina e à defensoria”, diz o familiar. “Condenar esse policial foi minha missão de vida. Se eu partir… Mas minha missão eu cumpri, graças a Deus. Missão cumprida.”
G1