Da toga ao cadafalso: o duro caminho de quem troca a Justiça pela política
Casos concretos têm dado força ao discurso de políticos que buscam dificultar o ingresso nos poderes Legislativo e Executivo de candidatos que se notabilizaram no mundo jurídico, como juízes e promotores. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, defendem que se crie por lei uma quarentena de desincompatibilização que poderia chegar a oito anos – movimento que membros do Judiciário veem como perseguição.
O afastamento do governador fluminense e ex-juiz federal Wilson Witzel (PSC) do cargo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no fim de agosto – e referendado pelo processo de impeachment que avançou na Assembleia Legislativa do RJ na última quarta-feira (23/9) por 69 votos a 0 –, porém, engrossa uma lista de homens a mulheres da Justiça que se enrolaram na política.
A mulher nessa lista é a senadora cassada Selma Arruda (Podemos-MT), cuja atuação como juíza lhe rendeu fama e a alcunha “Moro de saias”. Ela acabou perdendo o mandato no fim de 2019, condenada por corrupção na campanha.
O “Moro de calças” não tentou entrar na política via eleição nem foi acusado de corrupção, apesar de constar como investigado no procedimento iniciado após suas denúncias contra o ex-chefe Jair Bolsonaro, mas é também um caso de jurista famoso que se desencontrou na política em pouco tempo.
Pior ocorreu com o mato-grossense e ex-procurador da República Pedro Taques (PSDB), eleito governador empunhando a bandeira do combate à corrupção após atuação em casos marcantes: ele é acusado de ter montado um esquema de desvios de dinheiro público ainda na campanha eleitoral de 2014. Enrolado com a Justiça, o ex-procurador virou ex-político ao chegar entre os últimos colocados na tentativa de reeleição, e hoje responde a processos.
Recuando mais alguns anos, até 2012, encontra-se a cassação do então senador Demóstenes Torres (que era do DEM-GO), que também fez carreira como procurador, mas do Ministério Público de Goiás, e se elegeu em 2003 com discurso firme. Acusado de negociações pouco republicanas com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, terminou cassado.
Não são todos…
O cientista político e advogado Nauê Bernardo Pinheiro de Azevedo, professor na União Pioneira de Integração Social (Upis) em Brasília, avalia que juristas que “atravessam a rua” para a políticas enfrentam alguns problemas em comum, como a dificuldade de delegar poder, de dialogar e de reunir uma base de aliados, mas afirma que há personagens que superam essas dificuldades.
“O ex-deputado federal Luiz Flávio Gomes [PSB-SP, morto em abril deste ano por leucemia] teve uma atuação destacada no Legislativo. Pode-se citar ainda o governador do Maranhão, Flávio Dino [PCdoB, ex-juiz federal e ex-deputado], que não se envolveu com problemas judiciais, mas o que os dois têm em comum é que conseguiram superar essa resistência a fazer a política”, analisa o pesquisador.
O professor explica ainda que a política cria barreiras para se proteger de outsiders. “A política é construção, é preciso ganhar casca, conhecer as instituições, ter aliados estratégicos, ter em quem possa confiar. E a pessoa do mundo jurídico chega com outra mentalidade, muitas vezes, acostumada a ter poder na caneta e com dificuldade de delegar, de compartilhar a tomada de decisão. Isso leva ao isolamento, que é algo péssimo para um político.”
O doutor em Ciência pela Universidade de Brasília Paulo Alexandre Batista de Castro, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), explica em conversa com a reportagem que as instituições e poderes têm naturezas diferentes. São características do Judiciário, por exemplo, a busca pela imparcialidade e a aversão ao diálogo, à negociação – que são características marcantes da política. “O deputado, prefeito ou governador não pode ser imparcial, pois ele se compromissa com o eleitor em causas específicas”, avalia ele.
O debate da quarentena
Para o jurista, a existência de uma quarentena entre a saída do cargo e a entrada na política seria uma oportunidade para a ex-autoridade se familiarizar com a nova arena e um ganho para o Poder Judiciário. “A politização é um fator que afeta negativamente a imagem que as pessoas têm do Judiciário, e uma quarentena seria importante para que não se comprometa a credibilidade do sistema de Justiça”, analisa.
O professor Nauê Azevedo concorda com os argumentos pró-quarentena, mas acredita ser excessivo o prazo de 8 anos citado por Rodrigo Maia, que quer votar projetos de lei instituindo o período sabático. “Uma quarentena não pode ser igual à pena mais alta de inelegibilidade”, avalia. “Que se debata na Parlamento qual o melhor tempo, mas com certeza seria positivo”, afirma ele, que se incomoda com a figura do juiz “pop star”.
“O jurista famoso é um contrassenso, não deveria ser comum como se tornou. Não que se proíba que ele seja aclamado, mas um juiz precisa ter sossego para decidir as questões conforme a lei e suas convicções, o que fica mais difícil quando ele se relaciona com a opinião pública”, conclui.