Por que os japoneses com covid-19 se sentem obrigado a pedir desculpas
Os japoneses costumam pedir desculpas por muitas coisas. Até mesmo por estarem doentes.
Se o paciente for alguém famoso, o pedido de perdão é quase uma obrigação moral e se transforma em um evento midiático, como tem ocorrido no atual cenário de pandemia do coronavírus.
Segundo o professor do Departamento de Estudos Internacionais da Universidade Tokai, Daisuke Onuki, no Japão é praxe as pessoas famosas infectadas se desculparem, pois subentende-se que elas estariam provocando uma espécie de transtorno ou incômodo (meiwaku, em japonês).
“É muito importante seguir essa regra para sobreviver em nosso país. Não podemos causar meiwaku, expondo as outras pessoas a situações inconvenientes ou provocando ansiedade nelas.”
Foi exatamente por isso que o ator Junichi Ishida, de 66 anos, acabou sendo alvo dos defensores da “vergonha moral”. Em meados de abril ele esteve na ilha japonesa de Okinawa e lá sentiu um mal-estar. De volta a Tóquio e com suspeita de pneumonia, acabou sendo hospitalizado após receber o diagnóstico de covid-19.
Ishida escreveu uma carta com pedido público de desculpas pelo transtorno que afirma ter causado por se infectar, mas nem por isso os fãs deixaram de criticá-lo nas redes sociais.
As pessoas passaram a cobrar um roteiro detalhado da viagem dele a Okinawa e o chamaram de irresponsável por ter saído da capital quando havia orientação do governo para o isolamento social voluntário.
Pressão social
O Japão tinha até a terça-feira (26), 16.581 casos de infecção confirmados e 830 mortes. Desde o início da pandemia, o país não impôs medidas restritivas como o lockdown.
O estado de emergência decretado em abril pelo governo central não impôs uma quarentena obrigatória, mas permitiu às autoridades provinciais recomendar aos moradores que limitassem seus deslocamentos e estimular empresas a fecharem temporariamente.
As orientações de isolamento social continuam em todo país, mesmo após o estado de emergência de ter sido suspenso em 39 Províncias. A emergência prossegue em outras 8 regiões, como Tóquio e Osaka, apesar da queda sucessiva do número de casos confirmados na capital japonesa, com média diária abaixo de 30.
No Japão, o que fez as pessoas permanecerem socialmente distantes umas das outras não foi a força policial, nem as punições em forma de multas ou prisão, diz o professor Onuki. “Foi a pressão social que manteve as pessoas em casa.”
Ao priorizar o trabalho como âncora de um telejornal e ignorar alguns sintomas leves associados à covid-19, Yuta Tomikawa, 43, acabou se tornando mais uma figura pública a pedir desculpas pela infecção.
Assim que saiu a confirmação do teste com o resultado positivo, a TV Asahi anunciou medidas para evitar a propagação do coronavírus e, em seus telejornais, comunicou a infecção de seu principal âncora. Dois dias depois, voltou a tocar no tema com a leitura da nota de desculpas enviada pelo apresentador.
No entanto, as críticas ao profissional continuaram, e se tornaram mais intensas quando houve a confirmação de mais dois casos na emissora onde ele trabalha.
Assim como o professor Onuki, o pesquisador do Departamento de Psicologia da Universidade Meiji Gakuin, Sosuke Miyamoto, enfatiza o papel fundamental do conceito de meiwaku na cultura japonesa.
“Por meio de sua ação, uma pessoa pode causar aborrecimento a outro indivíduo, levando-o a sofrer algum tipo de desvantagem ou a se sentir desconfortável.”
Ele explica que mesmo não provocando qualquer dano direto a outra pessoa, é esperado um pedido de desculpas pelo simples fato de ter desencadeado um efeito psicológico de desconforto ou uma preocupação extra.
Para alguém não acostumado à cultura japonesa, é difícil entender que culpa teria uma pessoa por estar infectada pela covid-19. Miyamoto diz que figuras públicas quando ficam doentes atraem a atenção de um grupo maior de indivíduos, preocupados e ansiosos com o estado de saúde da celebridade.
No Brasil, o mais comum é agradecer pelo interesse e solidariedade, enquanto no Japão pede-se desculpas pelo incômodo com uma questão de saúde pessoal.
Quarentena para contatos
A covid-19 fez o peso da culpa ficar maior. Por ser uma doença altamente contagiosa, mais pessoas acabam sendo diretamente afetadas.
“A família, os colegas e todos os demais que tiveram contato no passado recente com o indivíduo infectado terão que entrar em quarentena”, lembra Onuki.
Zagueiro que defendeu a seleção japonesa na Copa da Rússia em 2018, Gotoku Sakai, de 29 anos, diz ter tomado todos os cuidados para evitar contágio, mas acabou testando positivo para a covid-19.
Sua preocupação era se não havia infectado o resto de time, o que não ocorreu.
O anúncio foi feito em final de março na página oficial do Vissel Kobe, seu atual clube. O comunicado incluiu o pedido de desculpas do jogador Sakai pela preocupação causada.
“Eu acredito que todos estão tomando as precauções necessárias durante este período. Eu também tenho um pensamento profissional e evitei aglomerações, lavei as mãos e fui cuidadoso nos meus atos. No entanto, os eventos ocorreram desta forma e eu me sinto chateado por isso.”
Discriminação de infectados
O professor Onuki afirma que seria um erro usar o pedido de desculpas de alguém infectado para justificar a sua culpabilização.
Porém, diz ele, o surto de coronavírus tem deixado as pessoas inquietas, inseguras e num nível de estresse que as leva a considerar o outro como ameaça, quando na verdade o inimigo é o vírus.
Em um dos episódios ocorridos na província de Fukushima, alunos e funcionários de uma escola foram ridicularizados depois que um professor testou positivo para o coronavírus.
Diante do crescente número de denúncias de casos semelhantes, o Ministério da Educação chegou a aconselhar as escolas a tomarem medidas para evitar a discriminação entre seus alunos e professores quando retomarem as aulas após a suspensão das atividades determinada pelo governo.
A preocupação com a disseminação do coronavírus estaria levando a um aumento da vigilância alheia com o uso da internet para vigiar e denunciar indivíduos e empresas que descumprem recomendações de isolamento social feitas pelo governo,
Em um país de dimensão territorial reduzida como o Japão, as pessoas aprendem cedo a não pensar apenas no próprio bem-estar.
“Desde a infância somos treinados a prestar atenção à maneira como os outros se sentem”, diz Onuki. Ele lembra que uma das virtudes mais valorizadas nos japoneses é a capacidade de adivinhar o que os outros desejam.
Mas uma avaliação errada pode gerar novos problemas. Pensando nos excessos e distorções, a Cruz Vermelha do Japão lançou em abril, vídeo de animação com o título “O que vem depois do vírus?” O material foi produzido pela equipe de psicologia clínica e medicina de desastres, e faz uma reflexão sobre o cenário atual.
Segundo o vídeo, um dos maiores perigos do surto é o medo alimentado por informações falsas e que infesta nossas mentes. Ele pode se transformar em desconfiança e nos tornar mais vulneráveis à doença. “Vamos ficar juntos e ser mais fortes e inteligentes do que o medo”, recomenda.
Várias formas de se desculpar
No Japão, desculpar-se é um ritual social levado ao extremo. Para casos leves, a forma mais simples é verbalizada e manifestada com uma leve inclinação do corpo.
Em situações graves, o pedido deve ser mais dramático e feito com as pessoas ajoelhadas em sinal de profundo lamento, num gesto conhecido como dogeza.
No caso de atraso do trem por questão de alguns segundos, por exemplo, o pedido de desculpas é anunciado pelos alto-falantes da estação.
Porém, se milhares de pessoas forem afetadas por uma paralisação mais prolongada e com causa grave, pode ocorrer uma coletiva de imprensa (shazai kaiken) com executivos lendo um pedido de perdão e em seguida curvando-se por minutos diante de jornalistas.
Essa cena ocorreu recentemente na Província de Aichi, mas por outro motivo. No início de maio, funcionários do governo acidentalmente publicaram na internet dados privados de 490 pacientes com coronavírus.
“Em meio à ocorrência de casos de discriminação sem fundamento contra pacientes e seus familiares, a Província que deveria protegê-los acabou publicando informações confidenciais. Peço minhas sinceras desculpas”, disse o diretor do departamento de saúde local. A página com os dados havia ficado visível por 45 minutos e tido 362 visualizações.
BBC News