‘Achei que isso nunca aconteceria comigo’: o que leva mães a matarem seus bebês

Com perfis variados de donas de casas e gestoras de negócios de sucesso, várias dezenas de mulheres são julgadas todos os anos na Rússia acusadas de matarem seus próprios filhos.

Esse não é um problema exclusivamente russo, é claro. Nos Estados Unidos, pesquisadores na área de Psicologia estimam que 1 em cada 4 mães tenha pensamentos ligados à morte de seus bebês.

Mas na Rússia, como em muitos outros países, tem prevalecido a cultura de que você precisa ser firme para sobreviver e que é melhor não falar sobre problemas de saúde mental – você deve apenas seguir em frente.

Essas histórias mostram que a depressão pós-parto com frequência não é diagnosticada ou não é tratada a tempo, e por vezes nem mesmo parentes próximos conseguem perceber ou entender o que está acontecendo até que, em alguns casos, seja tragicamente tarde demais.

Tabus

As jornalistas da BBC Rússia Olesya Gerasimenko e Svetlana Reiter conversaram com mulheres na Rússia para tentar descobrir por que mães matam seus bebês.

As investigações delas revelam que, para aumentar a chance de evitar a tragédia do infanticídio, precisamos desmantelar mitos sobre a maternidade e quebrar tabus para falar sobre as realidades da enorme tensão que atinge a maioria das mulheres.

Alyona

A economista Alyona e seu marido Pyotr estavam animados por estarem esperando um bebê.

Eles compraram roupas e um carrinho de bebê e Alyona foi para o curso de pré-natal. Mas ninguém mencionou os problemas psicológicos que uma nova mãe poderia ter.

Depois que o bebê nasceu, a nova mãe desenvolveu insônia e disse que não conseguia lidar com isso.

Como no passado havia passado por um episódio psicótico, um psiquiatra lhe deu alguns remédios, que ajudaram um pouco.

Um dia Pyotr chegou em casa e encontrou seu bebê de sete meses morto na banheira. Só mais tarde encontrou Alyona em um lago nos subúrbios de Moscou. Depois de afogar o bebê, ela bebeu uma garrafa de vodca, com a intenção de se afogar, e perdeu a consciência.

Agora ela está sendo julgada.

Atormentado, Pyotr vai a cada audiência do caso de Alyona e tenta confortá-la enquanto ela está sentada no banco dos réus.

Ele está convencido de que tudo isso poderia ter sido evitado se alguém tivesse mencionado a depressão pós-parto para Alyona.

“Ela não teve nenhuma má intenção. Teve um colapso psicológico”, diz ele. “Se ela tivesse sido atendida pelo médico certo, se eu a tivesse levado para o hospital quando ela me pediu, isso nunca teria acontecido.”

Criminologistas russos relatam que 80% das mulheres foram ao médico antes de matar seus bebês, com queixas de dores de cabeça, insônia ou menstruação irregular.

Quem são elas?

Na lei russa, o assassinato de uma criança por sua mãe é chamado de filicídio – um crime que é um tabu.

Em 2018, 33 casos desse tipo foram julgados na Rússia. E criminologistas estimam que há oito vezes mais ocorrências desse tipo que nunca chegam aos tribunais.

“Três ou quatro das 20 camas da ala das mulheres estão ocupadas todos os meses por mães que mataram seus filhos”, diz Margarita Kachaeva, psiquiatra forense e principal pesquisadora do Serbsky Institute of Psychiatry, em Moscou.

Uma contadora, uma professora, uma mulher desempregada, uma assistente social, uma garçonete, uma estudante de escola de design, a mãe de uma grande família, uma assistente de loja: as cerca de 30 mulheres cujas histórias foram examinadas pela BBC russa eram todas diferentes.

Apesar dos estereótipos, a verdade é que muitas mulheres que matam seus filhos têm maridos, lares, empregos e não têm vícios.

Os médicos sabem que, após o parto, doenças mentais latentes podem subitamente acelerar.

As mulheres podem ter uma condição crônica que não se manifesta na vida cotidiana, mas que pode ser despertada por qualquer um dos três eventos que sobrecarregam o organismo de uma mulher com maior intensidade – gravidez, ter um bebê ou menopausa.

‘Olha, parece que eu matei o bebê’

Anna, de 38 anos, é professora e seus filhos de 18 e 10 anos estavam ansiosos pelo nascimento da bebê que seus pais tanto queriam.

Depois, em 7 de julho de 2018, ela mesma telefonou para a ambulância. Estava com dores terríveis – que vinham desde antes do nascimento – e as sensações pioraram.

Anna sentiu que não conseguia aguentar a situação e um psicólogo aconselhou-a a relaxar.

Enquanto o marido ia trabalhar em Moscou, ela deixou as crianças com uma amiga dizendo que ia comprar uma cama. Em vez disso, ela foi visitar o túmulo de sua mãe.

No dia seguinte, ela saiu descalça com o bebê e não conseguiu explicar aos policiais que a pararam para onde ela estava indo.

A sogra de Anna a levou para casa e foi quando – como a corte está tentando confirmar – Anna teria tentado sufocar o bebê com um travesseiro.

Quando a ambulância chegou, no dia 7 de julho, Anna disse ao médico: “Olha, parece que eu matei o bebê”.

Os médicos conseguiram reanimar o bebê e Anna foi hospitalizada.

Ela foi diagnosticada com esquizofrenia crônica.

“Você tem que entender que não é uma insanidade total. Uma mulher que matou uma criança enquanto estava doente mentalmente pode ter vivido uma vida completamente normal antes do incidente”, explica a psiquiatra Kachaeva.

‘É melhor para ele. Eu sou uma mãe tão ruim’

Arina, de 21 anos, pulou de seu apartamento no 9º andar com o bebê dela nos braços.

O marido dela estava no serviço militar quando o bebê nasceu e a tratou de forma grosseira depois que, em seu retorno, a encontrou em um estado depressivo.

Ela morava com os pais havia um ano. Um dia antes de sua tentativa de suicídio e filicídio, ligou para a polícia dizendo que o marido estava afiando uma faca para matá-la.

Milagrosamente, mãe e bebê sobreviveram à queda e Arina foi levada para o hospital e, depois, foi detida pela polícia.

Psiquiatras deram o diagnóstico de esquizofrenia.

Mães com esquizofrenia e mães com depressão muitas vezes apresentam as mesmas razões para matar seus filhos.

“É melhor para ele. Eu sou uma mãe tão ruim.” “É um mundo tão terrível, é melhor para a criança não viver nele.”

“Após o crime, elas nunca conseguem ficar em paz e se matam na primeira, segunda ou terceira tentativa”, diz a psiquiatra Kachaeva.

Ela explica que, quando alguém da família consegue intervir, as mulheres são frequentemente levadas ao instituto em que trabalha.

Ao receberem o tratamento adequado, seis meses em geral são suficientes para a recuperação completa.

Na Rússia, os tribunais decidem o tipo de sentença que será dado às mães que mataram seus filhos.

Se os psicólogos forenses não concluírem que a mãe tem problemas graves de saúde mental, ela pode receber uma longa sentença de prisão.

A maioria dessas mulheres sofreu abusos quando criança.

Pesquisa feita por psiquiatras forenses russos mostra que 80% das mulheres que cometem infanticídio cresceram em famílias pobres e, delas, 85% tiveram conflitos em seus casamentos.

Relacionamentos difíceis com os pais podem estar na raiz da agressão a um bebê, que as mães infanticidas mascaram com amor excessivo.

“Ser vítima de violência doméstica é um fator muito significativo para esses tipos de crimes no futuro”, diz Kachaeva.

“A maioria dessas mulheres foi abusada quando criança – emocionalmente, sexualmente ou fisicamente”.

Muitos advogados se recusam a defender mulheres que mataram seus bebês.

‘Achei que isso nunca aconteceria comigo’

“Os administradores das prisões costumam manter em sigilo quem são os assassinos de bebês que cumprem penas entre seus prisioneiros”, diz Marina Kleshcheva, atriz condenada por um crime diferente.

“Eu me deparei com eles, é claro, mas a menos que alguém de sua cidade natal espalhe a notícia, ninguém sabe por que eles estão lá. Eles não têm nenhum amigo no presídio, ficam muito quietos e cuidam de si mesmos porque, se se envolverem em qualquer discussão, alguém pode acabar com eles.”

Yakov Kochetov, psicólogo clínico em Moscou, diz que as mulheres rejeitam seus próprios pensamentos assassinos e projetam sua raiva nos outros como um mecanismo de defesa.

“Se você tentar entender uma mulher e sentir compaixão por ela, você precisa conhecer os sentimentos que ela tem. E ninguém quer conhecer esses sentimentos.”

“Eu costumava condenar esses tipos de mães. Achei que isso nunca aconteceria comigo”, diz Tatiana, de 33 anos, especialista que trabalha com clientes corporativos em uma grande empresa de telecomunicações. “Vendas, viagens de negócios, amigos, e eu realmente queria um bebê. Senti que estávamos tão bem preparados quanto era possível, mas acabou sendo diferente.”

“O parto foi realmente difícil, e as parteiras foram duras. Depois comecei a ter ‘flashbacks’ do nascimento, sonhos vívidos e dolorosos, e eu acordava com o coração batendo forte. Depois tive mastite, engordei, tive úlceras, meu cabelo caindo… Tudo me fez sentir uma raiva crescente em relação ao meu bebê – como se ele tivesse roubado minha vida.”

Quando o bebê não dormia à noite ou chorava, Tatiana desmoronava. “Esse choro faz sua cabeça explodir e traz de volta todos os problemas da sua própria infância”, lembra Tatiana.

“Eu tinha essa ideia de que tinha que lidar com tudo. Eu estava histérica e sacudi o bebê com força quando o estava balançando para dormir. Ele ficou assustado e começou a chorar mais. Então, com todas as minhas forças, eu joguei ele cama e gritei: ‘Seria melhor se você estivesse morto!’, e algo ainda mais duro. E então eu estava super envergonhada e sentido culpa por não poder desfrutar da maternidade.”

Tatiana conta que seu marido disse que ela estava causando danos psicológicos à criança. Ele ignorou as queixas dela dizendo: “Você é uma mãe, não é? Por que os outros podem fazer isso e você não pode? Em primeiro lugar, por que você teve esse bebê?”

Um ano se passou e as coisas só pioraram. Considerando o suicídio, Tatiana procurou um psicólogo. “Eu pensei que uma mãe tão horrível e desprezível como eu deveria ser eliminada da Terra e que meu bebê merecia uma mãe melhor. Seria mais fácil eu me matar do que suportar a dor psicológica. Eu tinha muitas crises assim. O psicólogo respondeu imediatamente e me ajudou.”

Prevenção

Quando surge a questão da prevenção do filicídio, tendemos a falar sobre o incentivo ao uso de contraceptivos. Mas médicos russos e ocidentais também mencionam a importância de estar alerta para problemas psicológicos nas mães, particularmente a depressão pós-parto.

“Idealmente, antes do nascimento, você considerará todos os cenários possíveis, discutirá suas relações com sua própria mãe, como se sente em relação a si mesmo e a seu parceiro e pensará em como isso afetará seu estado após o nascimento”, diz a psicóloga Marina Bilobram. “Não deveria haver só cartazes de mães sorridentes com bebês angelicais, mas também explicações de como esse processo pode ser de outra forma.”

Margarita Kachaeva diz: “Temos em Moscou centros para mulheres em crise e eles estão abertos a vítimas de violência doméstica e a mulheres que sofrem de depressão. Mas esses centros estão meio vazios porque as mulheres têm medo de ir falar sobre seus problemas, de ter seus filhos levados para longe delas, e elas têm receio, pelo mesmo motivo, de ir ao psiquiatra local e têm medo de dizer a seus maridos e familiares por medo de serem mandadas calar a boca.”

Os nomes das pessoas citadas neste artigo foram alterados para proteger os direitos das crianças que foram afetadas.

Se você está deprimido e tem pensamentos suicidas, ligue para o Centro de Valorização da Vida (CVV) por meio do número 188. As ligações são gratuitas para todo o Brasil.

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