Prefeito abusa sexualmente de pacientes durante consultas há várias décadas

Os vídeos eram filmados em três locais diferentes onde José Hilson de Paiva realizava consultas ginecológicas. Em Uruburetama, ele gravou pacientes no consultório particular anexo à casa dele e em quartos da própria residência. Em Cruz, onde atuou como médico de 2007 a 2013, gravou mulheres sendo atendidas no Centro de Saúde Dr Edjanir Garcia da Silva.

O Sistema Verdes Mares teve acesso a 63 vídeos, feitos pelo próprio prefeito, de 23 mulheres. Desses, 46 mostram condutas médicas irregulares e abusos sexuais cometidos contra as pacientes. Cerca de 17 mulheres diferentes foram identificadas como vítimas do ginecologista, sendo 12 em Cruz e cinco em Uruburetama. O assunto teve repercussão nacional e foi tema de matéria especial do Fantástico neste domingo (13).

Nas gravações, que não serão publicadas pelo forte conteúdo explícito, é possível ver que o médico pede à maioria das pacientes para ficarem completamente nuas na consulta. A câmera sempre é posicionada de forma a deixar as mulheres o mais expostas possível, sem que elas percebam.

O suposto atendimento é semelhante na maior parte dos casos. Nos vídeos, José Hilson diagnostica as mulheres com secreções, inflamações, sangramentos e útero invertido. Como tratamento, ele realiza aplicações de gel em locais como vagina e ânus.

‘Testar a sensibilidade’

Em uma das filmagens, o médico introduz o dedo com gel na vagina da paciente enquanto faz movimentos sensuais com as mãos. Pede à mulher para fazer movimentos também e alega que, para tratá-la, precisa “testar a sensibilidade” dela. Ao virar a paciente de costas, abre a calça e encosta o órgão genital sem que ela perceba.

“Faça você mesmo, sacudindo bem”, pede à paciente, que fica claramente incomodada com a situação. Quando ela tenta se virar pra ver os detalhes do suposto tratamento, ele a manda ficar quieta. “Pode ficar bem retinha, senão atrapalha”, diz José Hilson.

Em outros casos, ele chega a colocar a boca no seio da paciente para sugá-lo com a desculpa de estar procurando por secreções. E também pede a outras para fazer sexo oral nele como parte do tratamento. “Vamos tentar fazer oral?”, pergunta em um dos vídeos. A paciente não entende e pergunta o porquê. “Só pra ‘mim’ ver a sensibilidade”, responde José Hilson.

Vítimas

Além das evidências de crime contra pelo menos 17 mulheres através dos vídeos, a reportagem ouviu sete pacientes em Uruburetama e Cruz que confirmam os abusos sofridos e teve acesso a cinco boletins de ocorrência que trazem novas vítimas de José Hilson.

Muitas percebiam que os procedimentos eram estranhos mas, por vergonha e falta de informação, não questionavam. “Eu lembro que eu ‘tava’ fazendo esse exame de Papanicolau de frente e ele disse assim, ‘agora se vire’, aí ele introduziu algo na minha vagina. Ficar de costas, de barriga pra baixo, nunca se fez exame assim.  Ele invadiu completamente a minha privacidade, a alma, tudo”, afirma uma das mulheres atendidas e filmadas por José Hilson. A reportagem vai preservar a identidade das vítimas.

Na gravação feita com a vítima, é possível perceber que, assim como faz com outras dezenas de mulheres atendidas, o médico aproveita que a paciente está de costas e esfrega o órgão sexual nela, além de insistir em movimentos sensuais com o dedo.

Ela conta que, na hora, se sentiu incomodada, mas não percebeu a gravidade do abuso. “Você não vai preparada pra lidar com uma situação dessa. A ficha vai caindo durante a semana, durante os meses, aí quando chego no outro ginecologista ele vai esclarecer. ‘Tava’ tudo errado”, denuncia.

Algumas mulheres só perceberam que tinham sido abusadas após assistir aos vídeos. “Ele mexia muito lá, né? Ele colocava as luvas, eu achava que ele colocava o dedo demais lá”, contou outra vítima se referindo ao contato manual excessivo do médico na região genital.

Mas, até então, ela não sabia que aquele não era um procedimento regular. “Ele disse que ‘tava’ fazendo exame, ‘tava’ olhando. Só que ele ‘tava’ com imoralidade”, constata. “Não sabia (da filmagem), se eu soubesse eu fazia um escândalo”, afirma a mulher.

“Quando eu tive acesso ao vídeo, aí eu vi ele de trás de mim, vi que não era normal. Mas, na hora, não tinha como eu perceber que ele ‘tava’ muito perto de mim, eu só sentia a mão dele”, explica outra vítima. Emocionada, ela comenta “só queria que ele pagasse, que ele não fizesse mais o que ele fez”.

Influência

Muitas mulheres, mesmo notando algo errado, preferiram não denunciar por medo de represálias. José Hilson tem grande força política. Já foi vice-prefeito de Uruburetama em 2012. A esposa dele, Maria das Graças de Paiva, também foi prefeita por dois mandatos, eleita em 1996 e 2000. Além disso, ele é considerado um médico de referência na região.

“Eu queria gritar, dizer pra todo mundo. Mas, ao mesmo tempo, era a minha voz. Só a minha voz no meio de muitas. Como seriam as provas que eu teria? Minha palavra contra um médico bem reconhecido e querido?”, questiona uma das vítimas, moradora de Cruz.

Outra paciente afirma que numa “cidade pequena, o médico é exaltado, é colocado lá em cima. As mulheres nenhuma têm coragem porque são pessoas humildes, pessoas que não têm vez, nem voz”. A maior parte das vítimas do médico são agricultoras, donas de casa e operárias.

No ano passado, quando alguns vídeos de José Hilson mantendo relações sexuais com uma paciente em uma unidade pública de saúde de Uruburetama vieram a público, cinco vítimas tiveram coragem de se manifestar e tentaram processar o médico por estupro. Como a maioria dos casos eram antigos, alguns de 1986, prescreveram, e apenas um se transformou em processo real que ainda está em investigação na Delegacia de Uruburetama.

Como os vídeos de 2018 mostravam relações que pareciam consentidas, o escândalo não resultou em nenhuma sanção prática contra o prefeito, que nem chegou a ser investigado pela Câmara de Vereadores de Uruburetama. Por outro lado, José Hilson entrou na Justiça contra as pacientes por calúnia. “De vítima eu passei pra réu”, conta uma das mulheres que, até agora, responde pelas denúncias que fez.

O depoimento mais recente que a reportagem apurou de abuso é de dezembro do ano passado e que deixa claro um rastro de 33 anos de impunidade. A paciente conta que foi procurar o médico porque estava com dor na coluna, já que ele também é clínico. Ele a atendeu no consultório particular, vizinho a casa dele, e aproveitou para oferecer a ela um exame ginecológico. Durante a consulta, “ele me pediu pra fazer (sexo) oral e eu neguei”.

Ela só contou o abuso ao marido, de quem recebeu apoio. “Não tenho como conversar com minha família sobre isso. Não tenho nem coragem. Tenho medo do pessoal não acreditar. E ficar me julgando”, explica a mulher. José Hilson permanece realizando atendimentos no consultório particular de Uruburetama até hoje.

Jogada da oposição

O prefeito José Hilson foi abordado quando saia da prefeitura na última quinta-feira (11) por nossas equipes de reportagem. Ele chegou a afirmar que tudo não passava de artimanha política. “Jogada da oposição querendo me derrubar”.

Também chegou a confirmar que mantinha relações sexuais com pacientes. “Eu nunca fiz nada forçado, foram consentidas”.  Mas complementou que não aconteceram “no consultório, não”. Além disso, explicou que só foram com “umas três pessoas”.

Quando questionado sobre o grande número de vídeos e relatos de abusos gravados durante os atendimentos, passou a dizer que só falaria após conversar com o advogado. “Deixa eu ver o advogado que eu vou me defender na frente de vocês, pode vir que eu me defendo, vou dizer o que foi que houve, o que tá acontecendo”.

O advogado Kaio Castro enviou nota explicando que “a defesa teve conhecimento dos vídeos apenas por ouvir dizer”. Castro disse, ainda, que só vai se manifestar de forma concreta sobre o caso quando tiver “acesso às mídias”.

Segredo de justiça

O Ministério Público do Estado confirma que está investigando o caso e que teve acesso aos novos vídeos dos abusos sexuais mas não vai se pronunciar porque o processo segue em segredo de justiça.

O Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará (Cremec) também foi procurado pela reportagem e, em nota, afirmou que não vai “comentar processos envolvendo profissionais porque tramitam em sigilo, por força da ética”. No site do Conselho Federal de Medicina, o registro do médico aparece com “situação regular”.

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