Depois de duas décadas, ditadura terminou sem ordem e sem progresso

Cinquenta e cinco anos depois do golpe militar de 1964, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) compele os brasileiros a comemorar a instalação da ditadura no país. A Ordem do Dia do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, produzida em alusão à quartelada que derrubou João Goulart do Palácio do Planalto, trata o rompimento da ordem democrática como um “episódio simbólico” do “alinhamento” e da “identificação” entre as Forças Armadas e os brasileiros.

Ainda sobre a tomada do poder, o pronunciamento de Azeredo e Silva afirma que a derrubada do presidente se deu em “cumprimento à Constituição de 1946” e exalta o papel desempenhado pelos militares. “As Forças Armadas, atendendo ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira, assumiram o papel de estabilização daquele processo”, diz a Ordem do Dia.

Contestada pela Defensoria Pública da União, a comemoração pelo aniversário da ditadura foi suspensa pela juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara da Justiça Federal em Brasília. Apesar da proibição, a decisão da magistrada teve pouco efeito prático, pois as celebrações em muitas unidades militares foram antecipadas para a sexta-feira (29).

Na manhã seguinte (20), véspera dos 55 anos do golpe (30), a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), atendeu pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) e cassou a liminar concedida pela magistrada da 6ª Vara Federal em Brasília. Assim, ficou tudo como orientado por Bolsonaro: se algum quartel do país desejar, poderá celebrar a data neste domingo.

Pelo teor da mensagem do ministro da Defesa (foto abaixo), deduz-se que a ditadura conduziu o país para a normalidade social e política. Quando se revisita os fatos daquele período, no entanto, afloram a desordem, o radicalismo e a instabilidade das instituições e da economia. A corrupção também avançava na administração pública.

Como todos os regimes autoritários, a ditadura começou violenta e desagregadora. Manteve-se no poder como um regime de exceção, com perseguição aos adversários e controle do Congresso. Diferentemente do que prega Bolsonaro, o governo dos militares terminou impopular, desacreditado, dividido e sem força política.

A foto em destaque nesta reportagem, preservada pelo Arquivo Nacional, mostra dois personagens centrais na transição da ditadura para a democracia. Neste encontro, no Palácio do Planalto, o então presidente da República, João Figueiredo (à esquerda na imagem em destaque), recebe o então senador José Sarney (Arena/PDS-MA). Rara e sem data, a imagem retrata o último presidente do regime militar, um general, e seu sucessor, um civil.

Os governos de Figueiredo e Sarney expõem o desastre econômico e político produzido pela ditadura. Ambos protagonizaram administrações instáveis e turbulentas, com o país fragilizado pela prolongada crise na economia.

Para se avaliar o clima político da época, embora tenham atuado no mesmo campo durante praticamente todos os governos militares, Figueiredo e Sarney romperam no fim da ditadura. Em consequência do desentendimento, o general recusou-se a transmitir a faixa presidencial ao sucessor civil, e saiu do poder por uma porta lateral do Palácio do Planalto.

No balanço final da ditadura, o Brasil encontrava-se sem ordem e sem progresso. Em seis anos no Planalto, o último general-presidente se desgastou com a resistência dos militares envolvidos com a repressão em devolver o comando do país à classe política.

Atentados terroristas
Depois de torturar milhares de opositores e matar mais de 400 pessoas os agentes ligados aos serviços secretos das Forças Armadas tumultuavam o país com atos terroristas contra a população. Desde o governo Ernesto Geisel, antecessor de Figueiredo, as organizações de esquerda envolvidas com a luta armada estavam desmanteladas.

Mas os responsáveis pelo combate sangrento aos adversários temiam a redemocratização por causa da possibilidade de serem punidos pelos crimes cometidos sob a proteção dos superiores. Para eles, a ditadura deveria continuar.

Um dos ataques contra a abertura aconteceu no dia 1º de maio de 1981, quando o sargento Guilherme Pereira do Rosário morreu ao se preparar para jogar uma bomba em um show com milhares de pessoas no Rio Centro. O artefato explodiu antes da hora, tirou a vida do militar e feriu gravemente seu parceiro no atentado, o capitão Wilson Dias Machado.

Outro ato terrorista contra a abertura política foi cometido no dia 27 de agosto de 1980, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro. Na ocasião, uma carta-bomba matou a secretária Lyda Monteiro da Silva.

Enfraquecido pelas ações dos militares radicais, Figueiredo fez um governo melancólico, agravado por problemas de saúde. Em julho de 1983, ele passou por uma cirurgia no coração em Cleveland, nos Estados Unidos, e ficou 49 dias fora do cargo. Nesse período, o vice-presidente, Aureliano Chaves, assumiu a função.

No plano político, os militares amargavam o crescimento a oposição nas últimas eleições para o Congresso. Mesmo no campo governista, eles perdiam terreno para os civis. Na sucessão de Figueiredo, o tenente-coronel e ministro do Interior, Mario Andreazza, foi derrotado pelo ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, na convenção do PDS que escolheu o candidato do partido para a eleição presidencial no Colégio Eleitoral.

Ao dar suporte a Maluf, os militares tiveram a imagem atrelada de forma definitiva à corrupção. Com seus métodos nada republicanos, o ex-governador cooptou os convencionais e se tornou o nome da ditadura para a Presidência da República.

Mesmo sem gozar da confiança das Forças Armadas, Maluf imiscuiu-se entre os líderes militares. Em campanha para o Planalto, em 1982, por exemplo, ele visitou o ex-presidente Ernesto Geisel (foto acima). Nessa época, o simples fato de ser recebido passava o recado de que desfrutava de prestígio junto ao general.

A candidatura de Maluf enfrentava a própria impopularidade e o sentimento de rejeição contra os militares no poder. Em 1984, a população desafiou a ditadura e tomou as ruas para pedir eleições diretas para presidente da República. A campanha das Diretas Já (foto abaixo) não foi suficiente para aprovar a emenda constitucional que devolveria ao povo o direito de escolher o sucessor de Figueiredo, mas inviabilizou o candidato do regime de 1964.

Nesse contexto, o homem que inspirou a criação popular do verbo “malufar”, que significava roubar, só foi derrotado pelo ex-governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, no Colégio Eleitoral. Mesmo sem chegar ao Planalto, Maluf seguiu sua trajetória de crimes no setor público. Aos 87 anos e doente, Maluf cumpre prisão domiciliar, condenado por lavagem de dinheiro.

Imprensa censurada
Pouco divulgados por causa da censura à imprensa, outra característica da ditadura, os casos de corrupção se acumularam naquele período. Algumas denúncias atingiram pessoas centrais do governo, como o ministro do Planejamento de Figueiredo, Delfim Netto, contra quem pesaram, por exemplo, acusações no escândalo das “polonetas”, uma negociação com títulos poloneses que causou prejuízos para o Brasil.

Os desmandos com dinheiro público foram denunciados, também, por um militar com longa ficha de serviços prestados para a ditadura. Ex-chefe da Casa Militar no governo Geisel, o general Hugo Abreu tratou do assunto no livro Tempo de crise, publicado em 1980 pela editora Nova Fronteira.

Em um tópico intitulado Austeridade e combate à corrupção, ele relata casos de “esbanjamento” e “abusos” cometidos com recursos públicos por funcionários ocupantes de cargos de confiança, “particularmente em empresas estatais”. Um dos focos de desvios, segundo o general, era a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). “O problema é que nossos governantes não foram eleitos pelo povo e, portanto, não se julgam na obrigação de lhe dar satisfação”, escreveu Abreu.

Nesse ponto, vale lembrar que as práticas abusivas nas estatais se mantiveram ao longo dos governos posteriores, como pode ser conferido nos últimos anos com as investigações dos escândalos do Mensalão e do Petrolão. Irregularidades praticadas nos Correios deram origem até a uma CPI durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

País quebrado
Na economia, depois de duas décadas no poder, os militares deixaram para os civis um país quebrado. A instabilidade do Brasil pode ser observada na queda de 4,39% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1981. No ano seguinte, houve um crescimento de 0,58% e, em 1983, o PIB voltou a cair, 3,41%.

Em 1978, a dívida externa brasileira era de US$ 43,5 bilhões e, em 1983, chegou a US$ 81,3 bilhões. As reservas em moeda estrangeira acabaram em 1981 e, desde então, a equipe econômica buscava recursos no exterior e fazia manobras cambiais para manter o fluxo financeiro. Nos seis anos do governo Figueiredo, a dívida pública dobrou de 24,6% do PIB, em 1979, para 48,2%, em 1984.

Em março de 1985, quando Sarney assumiu o Palácio do Planalto, a inflação anualizada chegou a 228,93%. Essa foi a herança deixada pelo ministro do Planejamento de Figueiredo, Delfim Netto, responsável pela condução da economia no final da ditadura.

As consequências dos governos militares foram catastróficas para o Brasil. Incapaz de debelar a crise, depois de implantar planos econômicos fracassados, Sarney deixou o cargo em 1990 com uma projeção inflacionária anual de 6.390,52%.

Os resultados absolutos do primeiro governo civil, claro, não podem ser creditados aos 21 anos dos militares no poder. Mas também não seria correto ignorar a situação caótica do Brasil no final da ditadura. De qualquer forma, os fatos demonstram que, se o propósito dos golpistas era colocar ordem no país, as administrações de Figueiredo e Sarney provaram que o objetivo esteve muito longe de ser alcançado.

 

Metrópoles

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