Ser Índio Jiripankó: identidade, pertencimento e religião
Por Adelson Lopes
Os índios Jiripankó habitam uma área no Alto Sertão de Alagoas, no interior do município de Pariconha. A aldeia situada no pé da Serra do Engenho está localizada a 6 km do centro da referida cidade e o acesso ocorre por uma estrada vicinal que corta o solo pedregoso e marcado pela vegetação de caatinga. Esse povo é originário do grupo Pankararu, habitante da aldeia Brejo dos Padres, na zona rural de Jatobá, em Pernambuco, que vivenciou uma diáspora assinalada pela fuga dos ataques do colonizador, no início do século XIX. Os indígenas, na Região Nordeste do Brasil, vivenciaram um processo de expulsão dos seus territórios e, com a extinção oficial dos aldeamentos a partir de meados século XIX, adotaram o silêncio, o anonimato e a invisibilidade étnica como estratégia de sobrevivência até o século XX, quando iniciaram um processo de reivindicação por reconhecimento étnico que se efetivou no final da década de 1980.
O tempo de anonimato lhes conferiu modelagens e adaptações socioculturais, dentre elas a substituição do idioma nativo pela língua portuguesa, os casamentos exogâmicos e a adição de práticas religiosas cristãs. Seus rituais foram ressignificados com a adoção dos cânticos em português, homenageando divindades católicas romanas; a cruz foi adotada como símbolo nos rituais e usada como mecanismo para afirmar alguma liberdade religiosa no seu Terreiro ritualístico. Com o passar do tempo e com a convivência com a sociedade à sua volta, os indígenas conferiram a modelagem do território simbólico, espaço onde encontram segurança espiritual.
A delimitação de um espaço definido como sagrado e a adoção das práticas católicas romanas não anulou o ritual nativo que continuou sendo praticado na comunidade; suas regras foram socializadas por duas irmãs, as anciãs Pankararu Chica e Vitalina Gonçala, referenciadas pela comunidade como responsáveis pela continuidade da tradição porque trouxeram o hábito de cantar e dançar o Toré, de ir para o retiro, na mata, para viver as experiências de receber a força dos Encantados e usar as ervas medicinais para curar os doentes. Essa experiência religiosa, chamada pelos indígenas de renascer da “Ciência da Tradição” é o objeto da pesquisa aqui descrita com o intuito de apresentar a dinâmica religiosa manifestada nos rituais de pagamento de promessas dos indígenas Jiripankó.
Elaboração do mundo religioso
Os povos indígenas adotaram diferentes estratégias para expressões socioculturais e crenças, fugindo das imposições coloniais para afirmações identitárias, mesmo que em outros espaços e com outras práticas não indígenas incorporadas ao seu discurso. Assim, na medida do possível, evitaram que
(…) entre imposição e resistência, a imagem que frequentemente se tem é a de um diálogo impossível, que acaba desembocando na assimilação, ou na aculturação, ou seja, no desaparecimento dos traços originais junto, na maioria das vezes, com os próprios grupos portadores desses traços. (POMPA, 2001, p.90).
Contrariando o esperado e defendido desaparecimento por meio da chamada “aculturação”, os Jiripankó ressignificaram e afirmaram suas expressões socioculturais, em contato com os Pankararu, através de visitas regulares a Jatobá/PE, principalmente durante as festividades, como também pelo fato de recebê-los quando das festividades em Pariconha/AL. Tais visitas possibilitaram a troca de aprendizagens das práticas rituais e as afirmações identitárias, fazendo com que os laços sejam mantidos, as memórias revividas e identidade fortalecida, pois
Se identidade, memória e patrimônio são as três palavras-chaves da consciência contemporânea – poderíamos, aliás, reduzir a duas se admitimos que o patrimônio é uma dimensão da memória -, é a memória, podemos afirmar, que vem fortalecer a identidade, tanto no nível individual quanto no coletivo: assim, restituir a memória desaparecida de uma pessoa é restituir sua identidade. (CANDAU, 2016, p.17).
Assim, as relações de contato fizeram com que aspectos e práticas identitárias do tronco fundador fossem socializados aos Jiripankó que os ressignificaram e utilizaram, coletivamente, para fortalecer a identidade do grupo contribuindo para o seu reconhecimento étnico. Tal situação, à medida em que consolidou suas práticas religiosas, favoreceu a comunicação com o catolicismo popular, de modo que ocorreu adição também de vários aspectos do universo religioso católico. As festas do povo Jiripankó são caracterizadas por algumas práticas usuais na Igreja Católica Romana e rituais no Terreiro da Aldeia, espaço notadamente marcado pelo culto aos antepassados que, segundo a tradição local, encantaram-se nas águas das Cachoeiras de Paulo Afonso e Itaparica, na Bahia, e desde então assumiram o papel de protetores e guardiões na comunidade.
Para Cunha, “os Encantados correspondem a espírito de ‘Caboclos Velhos’ que quando tinham sua morte anunciada através da ciência do Índio, se dirigiam para a antiga cachoeira de Paulo Afonso se atirando em suas águas, evitando assim a morte e tornando-se Encantados” (CUNHA, 199, p. 41). Na concepção de “Encantados” está presente uma noção hierárquica dos seres que compõem o Panteão Sagrado ou o Reino do Ejucá, supondo a existência dos herois e anti-herois míticos que fundam o encanto do mundo e anunciam seu desencantamento. Sua presença é percebida nas expressões mágico-religiosas elaboradas pelos Jiripankó, especialmente aquelas em que os Praiás manifestam-se.
É importante destacar que, aos “Encantados”, os Jiripankó rendem graças por alguns milagres, fazem promessas e realizam grandes festividades. Existe em torno deste povo uma mística de religiosidade, sentimento de pertença, silenciamento e interdições que regulam a vida cotidiana. Essa mística é coordenada pelo Pajé que juntamente com outras pessoas, denominadas de lideranças, conduzem a festa no Terreiro, onde as divindades são incorporadas por moços, trajados com máscaras rituais, confeccionadas de fibra de caroá, que executam um bailado denominado dança ou brincadeira dos chamados Praiás, ao som de flautas e maracás.
O povo Jiripankó tem dois principais líderes: o Cacique como líder político, e o Pajé, o ‘mestre da ciência’, condutor dos Praiás, rezador, dominador das técnicas de fitoterapia tradicional que desempenha um papel importante nos rituais e, posteriormente, no pagamento das promessas, pois quando um doente o procura em busca de cura, ele abre uma “mesa de trabalho”, ao final da qual afirma conhecer a origem da doença ou se não for um caso espiritual aconselha a procura de assistência médica. Quando o problema é espiritual, o doente é tratado na aldeia e, se necessário, fará promessa e, quando constatada a cura milagrosa, realizará uma festa para o pagamento à divindade. No geral, o cotidiano e a identidade indígena são marcados pela religião e pela reverência aos “Encantados” e aos santos católicos romanos como São Pedro, Padre Cícero, Nossa Senhora e a Santa Cruz. Esta última, presente nas pinturas corporais para os rituais e nas roupas que compõem as indumentárias ritualísticas, configurando, com isso, um profícuo diálogo religioso com o catolicismo.
O contexto das cerimônias religiosas é caracterizado por um conjunto de atividades iniciadas em dezembro, quando surgem os primeiros frutos do umbuzeiro e se estendem até a Quaresma, na sequência de um conjunto de rituais denominados Corridas ou Festas do Umbu. Essas festas são compostas por pelo menos três partes: o flechamento do umbu, a puxada do cipó e a queima do cansanção. A cansanção é um arbusto da família da conhecida urtiga que ao contato com a pele provoca irritações, semelhantes a queimaduras. Convém destacar que essas festividades são específicas dos povos do tronco Pankararu.
Segundo os anciãos na Aldeia Jiripankó, o flechamento do umbu é a proteção para toda a safra do fruto, a queima de cansanção é uma forma de agradecimento ou pagamento de promessa ao Encantado por uma graça alcançada. O evento dura quatro finais de semana, mas o domingo é o principal dia, pois pela manhã as mulheres organizam os cestos com vários alimentos: frutas, legumes e cereais que são expostos como oferendas aos Encantados no Terreiro, em agradecimento pela fartura. No último fim de semana, terminando a queima do cansanção, os Praiás voltam ao Terreiro e se dirigem ao Poró para fazer as obrigações finais, agradecer a Deus e aos “Encantados” por mais um ciclo concluído. Essas obrigações acontecem em regime fechado ao público. Esse gesto simboliza o encerramento do ritual e um pedido de proteção para os índios até o próximo ano, quando o Terreiro será reaberto para um novo ritual.
Além dessas festas, é significativa a realização de um ritual denominado “Menino do Rancho” que consiste em uma festa para o pagamento de promessas no Terreiro, após a constatação de cura por uma divindade encantada. Envolve a população indígena e os moradores do seu entorno e centra-se em personagens como o “Menino do Rancho” (o curado), cantadores, madrinhas, noiva, pajé, Praiás e padrinhos, onde os dois últimos desencadeiam uma disputa simbólica pela posse do menino consagrado. É, pois, uma forma de agradecimento que une dois mundos, um físico e outro espiritual, conferindo significações aquele povo e dando-lhe intimidade com o sobrenatural, com o seu sagrado.
Nessa perspectiva, esse povo indígena foi afirmando a identidade e se tornando visível na região, ao passo em que foi configurando seus rituais em consonância com alguns aspectos e práticas cristãs, notadamente católicas romanas, como as novenas, as procissões e, principalmente as penitências e os pagamentos de promessas na Igreja e no Terreiro do Ouricuri. Essa prática religiosa singular é marcada por uma simbologia própria expressa da cruz ao maracá, do altar ao Terreiro, da Igreja ao Poró, e se caracteriza pela comunicação entre o mundo terreno e o Reino do Ejucá, mundo dos Encantados.
Expressões religiosas Jiripankó
A realização de retiros espirituais na mata era a prática mais comum para a continuidade da ‘tradição’, porém os grupos de indígenas eram facilmente localizados pelo som emitido dos maracás, acarretando em muitas prisões a pedido dos fazendeiros locais, com quem os indígenas disputavam a posse das terras. É importante destacar que as prisões eram frutos de acusações de bruxaria, macumba e outras nomenclaturas pejorativas (GUEIROS; PEIXOTO, 2016). Para evitar essa situação, as famílias indígenas realizaram os rituais em silêncio, cantando baixo e marcando o tempo dos cânticos batendo com pequenas varetas de madeira no chão, em substituição ao maracá que fazia barulho. As atividades deixaram de ser realizadas nas matas e passaram a acontecer em algumas casas. Surgiu assim, o ritual denominado de “trabalho de chão”, importante aspecto religioso e identitário. As práticas religiosas ganharam destaque, atraindo visitas, olhares, cobiça e interesses acadêmicos para a aldeia. Os terreiros foram abertos à visitação em alguns eventos e alguns aspectos da religião Jiripankó foi exposta ao não índio. A afirmação étnica, foi lhes conferindo um atributo que é possível chamar de “definidor de expressões no campo da religião, da religiosidade ou da espiritualidade presentes na população brasileira”. (PISSOLATO, 2013, p.239), aspecto primordial para identificação e pertença indígena. A saída do anonimato, revelou o povo e aldeia para o sertão alagoano.
O território habitado pelo povo indígena Jiripankó é caracterizado por grandes serras e vales cobertos pela típica vegetação de caatinga. A região é castigada pelas estiagens prolongadas ou a seca, o que que acarreta baixa produtividade agrícola e uma consequente escassez de alimentos durante boa parte do ano. Porém, com as chuvas do inverno o chamado Sertão reveste-se de verde, de vida, de promessa e da esperança de uma safra que venha a atender os anseios da população sertaneja renovando os laços com as suas divindades nos rituais de pagamento de promessas por uma graça alcançada; ocasião em que a aldeia indígena reveste-se de festa e júbilo (GUEIROS; PEIXOTO, 2016). A aldeia foi formada em forma de vilarejo, com ruas principais e secundárias, praça, igrejas, estabelecimentos comerciais, escolas e posto de saúde; nos fundos da praça estar localizado um Terreiro, um amplo terreno de chão batido com algumas elevações e depressões. Ao seu redor, muitas pedras e poucas árvores compõem o cenário que no cotidiano é apenas um espaço vazio entre as casas, mas que assume um papel de espaço sagrado, de templo ou santuário, à medida em que vai sendo ocupado por um número significativo de pessoas a partir do início das cerimônias religiosas. O espaço material passa a ter um valor simbólico, imaterial e religioso para os Jiripankó.
No entorno do Terreiro existem algumas construções simples. Uma delas é um rancho, destinado ao preparo da comida que é servida aos participantes e convidados nas cerimônias. Nesse local, as mulheres preparam os alimentos que são “abençoados” pelos líderes religiosos e distribuídos com a numerosa população participante do ritual. A outra construção, denominada de Poró, é frequentado pelos homens; juntamente com o Terreiro é o espaço sagrado daquele universo ritualístico. Praticamente não há separação entre o Terreiro e o Poró, pois um existe em relação ao outro, mas cada um possui regras de funcionamento e interdição específicas ou particulares.
A atividade do Poró é interditada ao nosso olhar enquanto que a atividade do Terreiro é pública. O Terreiro é o santuário para o indígena, como constatou o indígena Cicero Pereira quando afirmou: “o Terreiro significa para o índio a sua igreja, seu templo. É o ventre da comunidade, onde se cria tudo”. Nas festividades de pagamento de promessa é possível observar, nos comportamentos e nas falas, que o Terreiro é um espaço festivo e religioso. Antes da abertura do evento é permitido circular por qualquer parte dele, mas após a entrada do “batalhão de Praiás” e dos cantadores, apenas esses podem cruzar tal espaço. Até o encerramento do ritual, a plateia só pode ir até às suas bordas. Essa interdição estende-se ao Poró, pois ambos são templos sagrados daquele povo.
Aos poucos, o Terreiro vai sendo ocupado pelos Praiás, padrinhos, cantadores e puxadores de toantes, que fazem a abertura do ritual, quando aquele espaço torna-se interditado ao não-índio, que não pode mais cruzar suas fronteiras. Assim, é a religião e a fé que modelam o espaço e o classificam como comum ou sagrado dependendo da ação que se desenvolve no momento. Assim como modelam e resignificam o Terreiro, os Jiripankó forjam suas identidades à medida em que vão assumindo o protagonismo das suas vidas e dos seus ritos em uma religião marcada pela presença de aspectos que foram tomados como empréstimos da religião dos colonizadores europeus, dos escravizados africanos e do habitante sertanejo, com quem dividem o espaço territorial.
Enquanto espaço religioso, o Terreiro foge do padrão visto nos lugares de congregação de outras religiões. A ausência de paredes, pisos cerâmicos, decoração suntuosa, mobília e altares é substituída pela simplicidade do chão de terra, pela poeira e pelo calor, mas é um espaço onde transborda pertencimento, partilha, fé, devoção e identidade. É perceptível a simplicidade do lugar, contudo, as expressões de prazer dos presentes naquele espaço não são possíveis de serem captadas por câmeras e torna-se difícil ou impossível descrever com precisão, em detalhes o que ocorre. Dizem os próprios indígenas: “é preciso viver a nossa cultura para entender o que significa cada elemento do nosso ritual”, como afirmou Cícero Pereira. É no terreiro que se realiza a maior parte das festas de agradecimento pela cura de uma enfermidade ou como agradecimento por uma vitória alcançada. O ritual é assentado no princípio da reciprocidade, na trilogia do dar, receber e retribuir (MAUSS, 2003), ou seja, doente é levado à presença do Encantado, no Poró, lá pede-se a cura e quando esta ocorre, o curador pode recomendar a realização da festa, entregando simbolicamente o curado ao mundo dos Encantados em uma festa, denominada de Menino do Ranho, que acontece em um dos Terreiros da aldeia.
Na Aldeia Jiripankó as crianças são iniciadas no mundo do ritual e aprendem a partilhar do universo das festas e das mobilizações por seus direitos desde muito cedo. O convívio estreito com os mais velhos é o primeiro ciclo de construção de saberes numa educação pautada na experiência cotidiana partilhada, nas vivências enquanto membro do grupo e no sentimento de pertença forjado diariamente (CANDAU,2016). A identidade é construída no aprendizado da importância dos aspectos socioculturais como a crença nos Encantados, os tabus, o ritual e os valores ancestrais. A construção identitária e a elaboração do senso de pertença étnica promovem a estabilidade de uma ordem cosmológica, espiritual expressa desde a participação em rituais até o pagamento de promessa e a entrega da criança aos Encantados no Terreiro, como fases de intermediação entre os dois mundos.
As relações entre os humanos e os Praiás são baseadas em respeito, pactos e reciprocidade. Tais relações ultrapassam o campo do físico e concreto e adentram ao mundo transcendental, sobrenatural possível de ser explicadas com a experiência e com a fé. O pacto é estabelecido no simples ato físico de fazer uma oferenda a um Praiá. Cria-se nesse ato, um laço entre o indivíduo que oferece a dádiva e a divindade encantada recebedora da oferenda em retribuição a um pedido atendido. Colocar um menino no rancho, faz parte de um grande evento que envolve o Encantado e o dono da festa, o pagante da dádiva, aquele que faz a oferenda e Encantado que realizou a cura é o homenageado, aquele que realizou a graça. A cerimônia é pública envolvendo os indígenas em um conjunto de ações desde a ajuda financeira à oferta de mão de obra nos preparativos.
Após o pacto ser firmado, a dádiva deve ser concretizada mediante dois aspectos: a fé no Encantado, nas suas habilidades, no seu poder. É uma relação de reciprocidade em dar e receber que coloca o Praiá e aquele que faz a oferenda em uma situação de troca, de harmonia. Essa relação é um ato de veneração, de respeito, de fé no Encantado, que cosmologicamente responde por suas qualidades. (AMORIM, 2010). O ritual Menino do Rancho, portanto, é o desfecho de um evento envolvendo um pedido de cura ou de solução para alguma situação de ordem diversa que pode estar prejudicando a vida do indivíduo, de um ente querido ou atrapalhando, de alguma forma, o próprio povo indígena. Um pedido é feito a um Encantado; a quem é oferecido um prato alimentício ou ao “batalhão de Praiás” que protege de forma sobrenatural o indivíduo e o povo. Se o pedido é atendido, a graça é alcançada e o penitente retribui fazendo a festa.
A realização da festa exige certa organização financeira, por isso a família do Menino é quem decide a data do pagamento da promessa. A única regra é que o evento inicie no final da tarde do sábado estendendo-se até o final do domingo. O ato de distribuir alimentos com os participantes e visitantes é uma demonstração do valor atribuído a ação do Encantado sobre o doente. Nesse momento, o Sertão se reveste de prosperidade, fartura e a alegria da dádiva estende-se a toda comunidade, aumentando os laços entre cada um dos participantes em uma atividade forte da expressão sociocultural Jiripankó.
Apesar da afirmação que é oferecido um prato ao Encantado ou Praiá, geralmente é ofertado um carneiro ou um boi como parte do almoço servido juntamente com a garapa feita de água açucarada ou caldo de cana e o fumo para a defumação, entre outros itens que compõem a oferenda (AMORIM, 2010). Observa-se, nessa atitude a prática da partilha, da retribuição e da reciprocidade. O ritual de pagamento de promessa é a efetivação pública de um vínculo firmado entre o mundo físico e o mundo espiritual, entre o material e o imaterial do povo Jiripankó no Semiárido alagoano.
Segundo as narrativas das memórias, desde a chegada ao Sertão alagoano os Jiripankó vêm realizado suas atividades religiosas como instrumento de fortalecimento étnico e de criação do senso de pertença. Ainda no passado, quando duas anciãs Pankararu, conhecidas como Gonçalas, iniciaram o ensinamento com a socialização dos rituais, estavam fomentando as expressões socioculturais religiosas desse povo indígena. Ao longo dos anos, na medida que a Aldeia foi se formando e o povo vivenciando suas experiências cotidianas surgiram os conflitos, inicialmente pela posse da terra e, depois com perseguições por terem a religião demonizada pelos poderosos do lugar com aquiescência da Igreja Católica Romana.
As perseguições obrigaram os indígenas a adotar práticas de silenciamento como forma de preservar sua integridade física e religiosa. Porém, o silenciamento não aboliu as práticas socioculturais, moldou-as com a adoção de aspectos religiosos cristãos e, a partir da década de 1980, com a reafirmação étnica, tais práticas converteram-se no aspecto identitário para lhes conferir o reconhecimento enquanto um povo indígena. A partir de então, as expressões religiosas Jiripankó tornaram-se marcas visíveis na região e seus rituais começaram a atrair estudiosos e curiosos das vizinhanças e de lugares mais afastados. Pesquisas sobre as Festas e o Menino do Rancho ocuparam a discussões acadêmicas, em Alagoas e nos estados vizinhos, pensadas como um aspecto que confere notoriedade e fortalecer a presença indígena Jiripankó no cotidiano local. As relações ininterruptas com os Pankararu possibilitaram aos Jiripankó o aprendizado e a socialização das práticas ritualísticas, além da autoridade necessária e indispensável para levantar a aldeia, abrir terreiros, buscar proteção dos Encantados, realizar rituais, conquistar o reconhecimento étnico, fortalecer o grupo e reivindicar os direitos preconizados em lei e desrespeitados enquanto efetivação prática.
A religião tornou-se, portanto, um importante aspecto para no mundo sociocultural Jiripankó, partindo das noções de doença e cura a partir da crença na força dos Encantados. Procuramos apresentar brevemente a concepção de promessa, dádiva e reciprocidade cotidiana na vida desse povo. Inclusive das crianças, que além de serem personagens centrais no ritual, desde bem pequenas aprendem, convivem e interagem socialmente no Terreiro e no Poró, o que lhes vem conferindo o senso de pertença étnica e a afirmação identitária no Semiárido alagoano.
Referências
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Apesar da existência de muita discussão teórica sobre o significado do termo tradição, tal termo é utilizado nesse estudo por ser usado pelo povo Jiripankó sempre que se refere às suas práticas culturais e religiosas.
Ouricuri é o nome dado ao povoado central dos Jiripankó. É também o nome dado ao ritual fechado de muitos povos indígenas no Nordeste.
Cicero Pereira é liderança na comunidade Jiripankó e professor na escola indígena. É um dos entrevistados desde 2012, quando iniciei as visitas e pesquisa de campo junto ao povo Jiripankó.
Pequenos cantos que animam a cerimônia. São entoados por uma pessoa e repetidos como refrão pelos indígenas.
Entrevista em 22/05/2016, realizada na Aldeia Jiripankó, Pariconha/AL