A trajetória que levou Lula de Garanhuns ao mundo e pode terminar em Curitiba
O iminente encarceramento em Curitiba do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado a pena de 12 anos por lavagem de dinheiro e corrupção no caso do tríplex do Guarujá, põe em dúvida o futuro político do homem que liderou o país sob índices recordes de popularidade – teve mais de 80% de aprovação quando deixou o governo.
Seu governo, entre 2003 e 2010, conquistou elogios no exterior pelas políticas de combate à pobreza e à desigualdade – não à toa, a notícia de que seria preso teve destaque na imprensa internacional.
Nos “anos Lula”, o Brasil se destacava pela robustez econômica – e era apontado como exemplo de país que conseguiu sair incólume da crise global de 2007-2008.
Mas durante os seus dois mandatos, o governo teria, segundo investigadores da Operação Lava Jato, permitido o esquema de desvio de dinheiro da Petrobras e de conluio entre agentes públicos e grandes empreiteiras.
Lula nega ter tido conhecimento deste esquema, de ser dono do tríplex no Guarujá – que teria recebido de uma construtora em troca de favorecimento em contratos da Petrobras – e diz que é vítima de perseguição política.
Aos 72 anos, ele era o candidato do Partido dos Trabalhadores à Presidência neste ano – ainda não se sabe o que o partido fará, se Lula desistirá da corrida ou como o Tribunal Superior Eleitoral decidirá sobre sua candidatura.
Mas muitos veem sua iminente prisão como o fim da carreira política do homem de origem humilde que não completou a escola, foi engraxate, operário, líder sindicalista e um dos políticos mais famosos e populares da América do Sul nas últimas três décadas.
Origem e raízes políticas
Lula nasceu em 27 de outubro de 1945 na localidade de Caetés, no município de Garanhuns, em Pernambuco. Aos sete anos de idade, migrou com a família liderada por sua mãe, Dona Lindu, para o Guarujá, no litoral paulista. A viagem de quase duas semanas foi feita em um caminhão “pau de arara”, como era comum aos migrantes nordestinos na época.
Chegou a São Paulo apenas em 1956. Estabeleceu-se com a família nos fundos de um bar no bairro do Ipiranga, bairro operário onde fincaria seu instituto anos mais tarde.
Aos 12 anos, encontrou seu primeiro emprego em uma tinturaria. Nos dois anos seguintes, Lula ajudava em casa como engraxate e office-boy. Seu primeiro emprego com carteira assinada foi aos 14 anos, nos Armazéns Gerais Colúmbia.
Em 1962, formou-se torneiro mecânico em um curso do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial). Um ano depois, perderia o dedo mínimo da mão esquerda – quando uma prensa se fechou sobre sua mão, decepando o dedo -, o que se tornaria uma de suas principais marcas, ao lado da barba farta e da voz rouca de tanto gritar em protestos.
Casou-se duas vezes. A primeira mulher, Maria de Lourdes, morreu em 1970 por conta de uma gravidez de risco, assim como seu primeiro filho. Em 1974, Lula conheceu a também viúva Marisa Letícia (1950-2017) e se casou com ela. Tiveram quatro filhos.
Marisa esteve ao lado de Lula em toda sua carreira política, mas o ex-presidente sempre elogiou em particular o grande apoio que recebeu de Marisa nos primeiros anos, desde sua primeira eleição como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em 1975. A partir dali, ele comandou as greves de operários que contribuíram para o enfraquecimento da ditadura militar (1964-1985). Mas mesmo entre os maiores inimigos cravou algumas amizades. Era o caso do ex-chefe da Polícia Federal Romeu Tuma, que o liberou da prisão para acompanhar o velório da mãe, em 1980.
Partido dos Trabalhadores
Foi o mesmo ano em que sua carreira político-partidária começou, com a fundação do PT.
Em 1982, com uma plataforma radical defendida por intelectuais do partido, Lula disputou o governo de São Paulo e terminou em quarto lugar, com menos de 10% dos votos. Logo depois fundaria a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e participaria do movimento Diretas Já, pela volta da democracia.
O movimento fracassou, mas a possibilidade de os brasileiros voltarem a votar para presidente reapareceu em 1985, em uma votação no Congresso. Lula, por sua vez, defendeu a abstenção dos deputados petistas na eleição de Tancredo Neves à Presidência da República. Os revoltosos acabaram expulsos do partido, contra a vontade do moderado Lula. Tancredo morreu antes de entrar no Palácio do Planalto como presidente. Quando José Sarney assumiu, o PT migrou à oposição.
Em 1986, Lula se tornou o deputado federal mais votado do país, para participar da Assembleia Constituinte.
O papel discreto não o afastou da candidatura à Presidência da República pela primeira vez.
Lula construiu sua carreira política como conciliador, garantem muitos dos seus aliados de primeira hora. Mesmo quando exibia uma retórica mais radical à esquerda, construía acordos com seus adversários.
Em entrevista à BBC Brasil, o ex-ministro Luiz Dulci, que trabalhou ao lado de Lula por quase 40 anos, diz que o petista deu mostras disso nas eleições presidenciais de 1989. “No início da campanha do segundo turno ele temia que o PT não fosse gostar das primeiras decisões dele se eleito. Ele queria um ministério moderado com Leonel Brizola, Miguel Arraes e até Ulysses Guimaraes. Quem visse muitos eleitores falando pensaria que o socialismo ia chegar, mas não era nada disso. Tinha compromisso, mas era para ser moderado”, diz Dulci.
Mas Lula perdeu no segundo turno para Fernando Collor de Mello. Dois anos depois, o petista estaria nas ruas para pedir o impeachment de Collor, acusado de corrupção. Quando Itamar Franco tomou o lugar de Collor, Lula recusou cargos no governo.
Acabou derrotado em 1994 por Fernando Henrique Cardoso, que foi ministro de Itamar e um dos idealizadores do Plano Real, chamado por Lula de “estelionato eleitoral”. Foi um choque para o petista, que meses antes chegara a cogitar a formação de uma chapa moderada ao lado do tucano Tasso Jereissatti como vice. Os planos foram barrados por radicais no PT. Quatro anos depois, surpreendido pela emenda da reeleição, perdeu novamente para FHC no primeiro turno.
A impopularidade de Cardoso em seu segundo mandato tornava a vitória de Lula mais provável em 2002. Além das mudanças políticas e econômicas, Lula abraçou o marketing político como centralizador das mensagens eleitorais. Um dos pontos cruciais foi a chamada “Carta ao povo brasileiro”, em que Lula acalmava o mercado com promessas de manter os pilares macroeconômicos do antecessor e governar com responsabilidade fiscal. Um empresário, José Alencar, se tornou seu confidente e vice-presidente por oito anos.
O sucesso lhe garantiu a vitória, contra José Serra.
Lula chorou na cerimônia de titulação no Tribunal Superior Eleitoral dizendo que o diploma de presidente da República era o primeiro que tinha ganhado na vida.
A antiga assessora Clara Ant, que coordenava iniciativas de Lula nos últimos 30 anos, define o ex-presidente como “um notório pragmático.” “Lula só rompia com os radicais. Mas não dizia nada, esperava até os radicais romperem com ele primeiro. Foi assim como sindicalista e foi assim como político também. Ele só quer saber do que pode dar certo.”
No poder, da popularidade ao mensalão
Em seu governo, iniciativas difusas até então se transformaram no unificado Bolsa Família, um programa de transferência de renda voltado aos mais pobres que hoje abarca 13,8 milhões de famílias.
Popular internamente, Lula ganhou fama internacional, sobretudo pelas medidas de combate à pobreza. Ficou famoso, em 2009, em reunião do G20, o momento em que o então presidente americano Barack Obama chama Lula de “o cara”.
O boom das commodities, o avanço de políticas de crédito e a emergência de uma nova classe média geraram anos de crescimento econômico e aumento do consumo, mas no fim do governo Lula esse modelo econômico já dava mostras de esgotamento.
Na política, veio o escândalo do mensalão, em 2005, em que ministros centrais do governo Lula foram condenados por compra de apoio político no Congresso.
Depois de perder para denúncias o seu ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e de ver seu amigo Delúbio Soares, tesoureiro do PT, apontado como artífice do esquema, Lula se disse “traído”, mas evitou apontar os aliados como responsáveis. Sua popularidade afundou até a faixa dos 30% e ele respondeu com acenos para os dois lados.
Primeiro ele instituiu a política de valorização do salário mínimo e o ProUni, programa de concessão de bolsas universitárias a jovens carentes. Depois, ofereceu mais ortodoxia na economia, sob o comando do presidente do Banco Central e ex-deputado do PSDB, Henrique Meirelles. Acabou reeleito em 2006, vencendo Geraldo Alckmin.
Seu segundo mandato foi mais moderado que o primeiro, principalmente por conta da aliança com o centrista PMDB. Em 2007, Lula privatizou estradas federais, deixando para trás um antigo dogma petista contrário à venda de patrimônio público. Lançou também o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), coordenado por Dilma Rousseff, então ministra-chefe da Casa Civil.
A ex-petista Marta Suplicy acredita que já nessa época Lula pensava em ter uma mulher como sua sucessora. “Mas é curioso que ele tenha escolhido para isso uma pessoa (Dilma) que não era moderada como ele nem gosta de falar com políticos”, diz a senadora.
Quando veio a crise econômica internacional, em 2008, Lula disse se tratar de uma “marolinha”. Foi à TV para pedir aos brasileiros que continuassem impulsionando o consumo. Pouco depois, veio o programa habitacional “Minha Casa, Minha Vida”, também a ser coordenado por Dilma.
Lula fez sua sucessora e deixou o cargo com quase 90% de aprovação popular. Mas isso nem de longe significava a aposentadoria do ex-presidente.
Fora do Planalto
Em 2011, nos primeiros meses longe de Brasília, Lula foi diagnosticado com câncer na laringe e iniciou um longo tratamento. Só retornou à cena política para intervir no PT de São Paulo e fazer do ex-ministro Fernando Haddad seu candidato (bem-sucedido) a prefeito.
O ano de 2013 parecia começar bem para Lula, mas os protestos populares do meio daquele ano transformaram Haddad e Dilma em dois grandes alvos dos manifestantes.
Por ter mais traquejo político do que os dois tecnocratas que indicou, Lula interveio nas duas gestões. Não faltaram relatos de insatisfação com a autonomia que o ex-presidente exibia para mandar nos governos de outros. Um antigo aliado que prefere não se identificar define essa liberdade assim: “Parecia aquelas reuniões de ministério quando um assessor dizia ao Lula que ele precisava fazer uma coisa diferente do que planejava. Ele respondia: ‘Você tem quantos votos? Eu tenho 50 milhões.’ No governo desses (aliados), os votos ainda eram dele.”
Muitos petistas esperavam que Lula voltasse a ser candidato a presidente em 2014, mas a vontade de Dilma se reeleger prevaleceu. Em uma campanha acirrada com menor presença do ex-presidente, a petista venceu Aécio Neves por estreita margem.
O ex-porta-voz e cientista político André Singer já via o esgotamento do modelo de conciliação de Lula no início do segundo mandato de Dilma. “Hoje o PT gira em torno do lulismo. Não é mais o PT com a alma da sua fundação. Mas o lulismo é sobre reforma gradual e pacto conservador, ele vai além do PT e da esquerda. Funcionou para muita gente por muitos anos. Gente que nunca tinha votado em partido de esquerda e que votou por Lula ser dessa forma”, disse.
Lava Jato
Até que, em 2015, a operação Lava Jato inicia investigações sobre figuras-chave de sua administração. As acusações de corrupção na estatal fizeram com que Lula fosse ouvido, pela primeira vez, como testemunha em uma série de investigações sobre integrantes do seu governo.
No ano seguinte, eclodiu uma nova onda de protestos populares pelo impeachment de Dilma Rousseff, e polêmicos bonecos de Lula vestidos como presidiário (os “pixulecos”) se tornam presença constante nas manifestações.
A Lava Jato resultou na prisão e condenação de antigos aliados de Lula, como o ex-governador do Rio Sergio Cabral (cujas penas chegam a 100 anos, em cinco processos) e o ex-ministro Antonio Palocci, condenado em 2017 a 12 anos por lavagem de dinheiro e corrupção.
Veio de Palocci, por sinal, o testemunho mais danoso a Lula até agora.
Em depoimento a Sergio Moro em setembro, Palocci afirmou que a relação entre o ex-presidente e a empreiteira Odebrecht envolvia um “pacto de sangue” que consistia em presentes pessoais ao líder petista, como um sítio em Atibaia (SP), a doação de um terreno que seria usado para um museu dedicado a seu legado e a contratação por palestras no valor de R$ 200 mil.
Em resposta, Lula afirmou que as declarações de Palocci eram uma tentativa de incriminá-lo para conseguir os benefícios de uma eventual delação premiada.
Até agora, Lula mantinha-se como líder em intenções de votos na corrida presidencial para 2018 – ainda que também possua significativa taxa de rejeição -, segundo pesquisas eleitorais recentes. O ex-presidente havia encerrado, há poucos dias, uma caravana pelo Sul do país, que teve momentos de tensão sobretudo durante a passagem pelo Paraná, quando dois dos ônibus da comitiva foram alvejados com tiros.
Ao mesmo tempo, Lula é ainda réu em outras seis ações penais: duas a cargo de Sergio Moro, em Curitiba – nas quais Lula é acusado de ganhar imóveis da Odebrecht e uma reforma no sítio de Atibaia como propina -, e outras quatro na Justiça Federal de Brasília. As acusações são de tentar comprar o silêncio de Nestor Cerveró, ex-diretor da Petrobras; favorecer a Odebrecht com contratos financiados pelo BNDES; vender Medida Provisória a montadoras de veículos; e comprar caças suecos e dar benefícios fiscais em troca de dinheiro a uma empresa de seu filho.
A defesa do ex-presidente nega as acusações e afirma que elas são parte de uma “perseguição judicial” contra Lula.
Fonte: BBC