Poucos processos deixam tão pouco espaço para as palavras quanto o luto. O recolhimento é o caminho mais comum, o tempo, apontado como a única cura. Mas o ser humano tem, realmente, muitas formas diferentes para lidar com tudo. Bárbara Paz escolheu não se recolher por completo. Mais: escolheu seguir com um trabalho que, no lugar de tirar sua atenção da dor, a transformaria. Não era hora de dar um tempo em tudo. Era hora de seguir com o documentário Corredor polonês, uma cinebiografia do cineasta Héctor Babenco, seu marido, que morreu em 13 de julho de 2016.
O filme começou a ser feito com Babenco ainda vivo, mas já ciente do delicado momento que enfrentava em sua saúde. Essa consciência emerge nas palavras do diretor em todas as cenas de um vídeo de aproximadamente 10 minutos de duração. E fica claro, na objetiva explicação de Bárbara, que este será, de certa forma, o tom do documentário: “O filme é sobre a finitude”.
Corredor polonês está em fase de montagem, mas muita coisa ainda acontece dentro da cabeça de Bárbara: “Tudo pode mudar, afinal, como dizia o Héctor, o homem é uma verdade e uma mentira ao mesmo tempo”. Mesmo o título, quem sabe. “É Corredor polonês, que já virou Monsieur Babenco, que talvez vire This is the man…”, conta.
Independentemente desse processo orgânico de criação, o projeto já caminha para decisões estratégicas. A atriz chega dia 17 de maio em Cannes para alinhavar possíveis parceiros para a produção. “Estou indo a Cannes para tentar algo no mercado europeu, acho que se encaixa. O filme está feito quase todo com recursos pessoais. Tenho coprodução GloboNews/Globo Filmes e Canal Brasil, de resto estou fazendo by myself. No Brasil, aguardo alguns editais; em Cannes, tenho reuniões com produtoras e distribuidoras. Acho que o filme é para o mundo”, diz.
Abaixo, uma conversa com Bárbara sobre como foi realizar esse documentário em um processo de criação tão peculiar.
Como surgiu a ideia de fazer Corredor polonês? Surgiu do meu amor por esse homem. Esse gigante com uma história de vida tão forte, tão bonita, tão vitoriosa e tão cheia de porradas. Um leão que nunca desistiu e nunca quis ver a cara da morte. Nunca se deixou levar pela fragilidade, driblou sua doença, a dirigiu como se fosse um filme.
Babenco ainda estava vivo. Foi uma ideia que vocês tiveram juntos? Eu disse: “Farei um documentário sobre você”. Ele disse: “Magnífico. Começamos quando?”. Eu disse: “Já começamos!”.
Como era o processo de filmagem? Trocamos de lugar muitas vezes nesses últimos anos. No começo, ele me dirigia, dirigia a cena, a forma que ele queria contar a sua própria história… Até o enquadramento, tudo. Mas, aos poucos, à medida que ele se sentia mais seguro comigo, foi invertendo os lados. Ele sentiu total confiança no meu olhar e já pedia para eu filmá-lo o tempo todo. Às vezes até eu esquecia.
O que devemos esperar do documentário? É um filme autoral, que vem da construção de um desejo de querer deixar registrado alguns momentos. Diria até que, no começo, a direção era nossa, minha e dele, de tão íntimo. Depois que mostrei para ele algumas imagens montadas, a linguagem que eu queria, o que eu esperava do filme, a direção passou ser absolutamente minha. Ele se encantou com a narrativa, com a fotografia, e disse: “Você pode tudo, confia em seu olhar, eu não tenho mais nada para fazer aqui. Estou te dando o meu passaporte”. Héctor sempre teve muito humor.
A relação de vocês ditou o ritmo do filme? Éramos cúmplices na alegria e na tristeza, muito amigos, acreditávamos um no outro. Ele acreditava em mim, como nenhum ser humano acreditou. Gostava do jeito que eu enxergava e me expressava com o mundo. Fazia eu ser melhor, maior, sempre. Foram os melhores anos da minha vida. De alguma forma, está registrado. Precisei eternizar.
Você assina roteiro e direção? O roteiro é da Maria Camargo e meu. Afinal, esse documentário começa a existir no momento em que eu ligo a câmera, é algo construído ao longo de muitos anos. E Maria é minha grande confidente, parceira na costura de tantas histórias e memórias que registrei, de uma vida deste amor. Desde que o Héctor partiu, é ela quem tem estado do meu lado, escutando vozes, vendo imagens, me ajudando a dar uma linha narrativa para histórias tão pessoais e únicas. É preciso se distanciar para conseguir fazer isso, não é fácil sozinha. Ela é minha parceira mais valiosa nesse trajeto, nessa caminhada. E agora estou no processo em que tudo começa a ganhar nova forma: a montagem. Estou começando a esboçar a forma que quero para contar essa história.
Conversava bastante com o próprio Babenco também? Antes de ele partir, tínhamos outros planos. Fui percebendo, ao longo do tempo, que, para mantê-lo com a memória ativa, ele precisava criar – e isso estava muito difícil depois que ele entrou na morfina. Um dia, no hospital, combinei de ele dirigir as muitas mortes que já teve, os muitos sonhos, enfim, colocar ele em ação. Ele amou a ideia e começamos a gravar, mas não durou muito tempo, começou a ficar mais fraco e partiu logo depois. Mas eu continuei.
Já terminaram as filmagens? A princípio, já, mas nunca se sabe, na montagem surgem novas coisas. É tanta vida que esse homem tinha, tantas histórias, que é preciso escolher muito bem o que de fato quero deixar registrado. Na verdade, o que ele queria que ficasse.
Como foi gravar com ele, conversar tanto sobre a finitude do homem que você amava? Eu não participei das gravações, participei da vida de um homem. Só registrei o processo desse sentido de estar vivo. Registrei o instante, o criador, o lutador no seu ringue, lutando para se manter vivo e lúcido, brigando contra seus leões. Amando e sendo amado.
Você viveu o seu luto de maneira muito diferente, não teve o tempo de recolhimento que normalmente as pessoas têm. O meu filme é a forma mais poética que encontrei para viver o meu luto. O homem que amei, desnudo, cru, sem personagens. Ele por ele mesmo, impresso numa tela para o mundo.
Mas imagino que tenha sido difícil. Li sobre você ter procurado um médium nesse processo também. João de Deus, o médium em que fui, foi por uma curiosidade que tinha de conhecê-lo. Estava em Brasília com a peça Gata em telhado de zinco quente, de Tennessee Williams, Héctor tinha partido fazia três meses. Eu estava com muita insônia e, em uma noite dessas sem dormir, fui até Abadiânia, uma cidade perto de Brasília, onde mora o João. Fui até lá sozinha, dormi numa pousada e, de manhã cedo, 6h30, fui até o lugar das orações, da corrente. Foi uma experiência muito forte, ele me fez muito bem. A energia do lugar, a fé nas pessoas, todos de branco rezando, a luta pela sobrevivência de cada um, procurando uma cura. Eu, que só fui lá por carência, acabei sendo levada pela energia do lugar, das pessoas, de João. Ele é uma força da natureza, um pai. Eu lembro que, depois que passei por lá, consegui dormir 11 dias seguidos sem remédio.
Foi muito importante no seu processo pessoal, então. Senti um alívio dentro de mim, uma serenidade que tinha perdido. Acho que, de alguma forma, meditar, rezar é um reencontro com você mesma. Sempre depois de uma perda – e eu já tive muitas –, você volta a se sentir sozinha no mundo. E realmente, na hora de deitar na cama, na hora de dormir, é o abraço do outro que faz falta, é um outro corpo quente encostado em você, são os pés que se entrelaçam. É um vazio enorme que se instala, que eu sei que esse buraco vai permanecer até a chegada de um novo amor.
Aquele formato de cinebiografia clássica, com muitas pessoas falando de alguém importante – não parece ser o que veremos em Corredor polonês. Que bom que entendeu o sentido do filme. Héctor não tinha nada de clássico, ele era um punk, um beatnik, um poeta… Era um grande contador de histórias, um maestro da sétima arte. O filme tem que ser uma extensão dele. Um homem único. Um homem infinito.
Existe algum momento do filme que marcou mais você? Em cada leito de vida. De vida…
O que você gostaria que as pessoas descobrissem ao fim do filme? Amor. Amor. Amor.