A criança com TEA e o adulto viciado em jogos on line
Recentemente, a mídia tem trazido o tema de “vicio em jogos” como sendo um novo problema a ser considerado, principalmente após sua oficialização de “doença”. Trata-se de mais um transtorno que entra no DSM (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais 2013), o “transtorno por jogos de internet”. Diferente de outros, este transtorno resume-se basicamente a “não exposição da pessoa às contingências ambientais”, tendo por este motivo consequências aversivas para o sujeito ‘viciado’. Com isso, a psiquiatria abre alas para um novo público adentrando nos consultórios de psicoterapia, inclusive a USP cria um lugar apropriado para os “dependentes de tecnologia”. Quanta semelhança com o Transtorno do Espectro do Autismo! Parece até absurdo tal comparação, mas ao longo do texto, irei explorar as semelhanças, ao menos no tratamento. Imagino o espanto do leitor pela maneira reducionista de se comparar, mas tem coisas bastante interessantes que darei destaque.
Existe um ponto chave nessa comparação: Nos dois diagnósticos, é gritante a dificuldade de socialização que essas pessoas possuem, visto que governam um repertório comportamental muito empobrecido e isso dificulta que essas pessoas tenham uma variabilidade comportamental para a socialização, prejudicando o contato com as pessoas e a emissão de repertórios comportamentais mais adequados. A diferença é que em crianças com autismo a causa tem um peso mais orgânico do que ambiental, em pessoas com transtorno por jogos de internet é o oposto.
O Transtorno do espectro do autismo (TEA) possui esse nome justamente para designar suas várias formas de se manifestar no organismo, indo desde disfunções leves até quadros mais avançados comprometendo gravemente funções específicas no cérebro. Sendo um transtorno do desenvolvimento, sua característica é a paralisação de funções que deveriam continuar a desenvolver-se após os primeiros anos de vida, deixando à criança sujeita ao mau funcionamento orgânico.
[…] a dificuldade de socialização da criança com espectro do autismo é uma das características mais fortes e enfatizadas em todos os estudos sobre este. A criança com autismo pode isolar-se, como pode também interagir de forma percebida como estranha. Seu comportamento e sua linguagem as diferenciam de outros sujeitos da mesma faixa etária” (BRANDÃO, 2009. p.11).
Comparando os dois diagnósticos, vejo que comportamentos prazerosos como o vídeo game têm grande proximidade com as estereotipias de crianças com TEA. Estereotipia nada mais é que tendência à repetição de comportamentos tanto motores como verbais, os quais produzem um alto valor de reforço para a mesma pois provoca sensações internas prazerosas, as quais são reforçadoras cada vez que a criança está sentindo-se ansiosa por estar vivenciando algo novo que não sabe lidar, por sensações internas prazerosas ou quando recebe algum tipo de atenção com isso; como quando um adulto pede para que ela pare de fazer estereotipia segurando suas mãos. Na prática, isso quer dizer que mudanças e situações novas geram medo, ansiedade, irritabilidade e podem evocar comportamentos disruptivos (FIALHO, 2014). No caso dos jogos on line, o sujeito também é reforçado internamente (Neurotransmissores dopaminérgicos são liberados em alta potência pelo sistema nervoso central), sensação esta que o faz continuar naquele comportamento, principalmente quando “outras pessoas envolvidas com a mesma” reforçam tal comportamento dizendo que o sujeito é “craque” no jogo e até acham o máximo isso. Nesta conjuntura, enquanto crianças com TEA passam a maior parte do tempo engajadas nesses comportamentos repetitivos e os adultos jogando vídeo game estão isentando-se de envolver-se mais com o ambiente externo, ou seja, perdendo oportunidades de adquirirem aprendizagem e interação social, essenciais para seu desenvolvimento no ambiente em que vivem ficando ainda mais empobrecido em variabilidade comportamental. Em 2015, em entrevista ao Jornal Hoje, da rede Globo, Cristiano Nabuco, coordenador do laboratório de dependências tecnológicas da USP afirma: “O grande ponto de preocupação nosso na verdade não é o jogo em si ou a internet em si, mas é o fato que esses jovens eles estariam, na medida em que eles ficam muito tempo conectados perdendo habilidades importantes. Criando então na vida adulta problemas sérios de relacionamento.”
A “não socialização” é contingente a outros comportamentos como o desenvolvimento da linguagem, pensamento, raciocínio, atenção, percepção, motivação, e outros processos psicológicos básicos. Embora o vídeo game também estimule funções como estas, o ambiente é muito restrito e irreal. Potencializando o pobre repertório comportamental de crianças com TEA, as quais preferem ficar sozinhas (significado da palavra autismo). Comportamento bem típico também entre os “viciados em jogos”.
O que me chama a atenção nessas pessoas não é o vício em jogos on line como sendo causadoras de problemas de socialização, mas sim, os jogos on line sendo uma maneira que o sujeito encontrou para fugir dos aversivos sociais, sendo dessa maneira, o vício consequencia da não socialização aproximando-se do comportamento disruptivo da criança com TEA. São pessoas marcadas por exposição a contingências ambientais não reforçadoras. Na avaliação funcional, usada na análise do comportamento, que poderíamos fazer desses sujeitos ficará claro que tais pessoas viciadas em jogos on line externalizam a pobreza em seu repertório comportamental antes mesmo de iniciar o “vício”, pois vejo o vício como sendo contingente a problemas já existentes no indivíduo. Dessa maneira, há uma probabilidade enorme de encontrarmos pessoas que já tinham um repertório enfraquecido marcado por inúmeras decepções ao lidar com situações ambientais, sendo muitas vezes pessoas mal sucedidas na vida social, acadêmica, educacional, amorosa, enfim. Causadas por outros motivos de sua história de reforçamento/punição.
Semelhante ao trabalho realizado com crianças com TEA, o trabalho do psicoterapeuta com pessoas com “transtorno por jogos de internet” tem função prioritariamente de trabalhar junto ao paciente o treino de repertórios comportamentais necessários para a socialização e a diminuição do tempo gasto inadequadamente por estes sujeitos. O trabalho de comunicação funcional é parte essencial desta socialização, pois muitas vezes a fala dessas pessoas “não é mantida por reforçadores mediados pelo ouvinte, ela não fala para que o ouvinte entenda ou de modo compreensivo para o ouvinte, fala apenas porque isso é organicamente prazeroso para si mesma” Juliana Fialho (2013), promovendo dessa forma a exposição do sujeito em contingências instaladoras e mantenedoras de comportamentos funcionais, afim de que este veja como importante para si, bem como instigar o comportamento do mesmo, ou melhor, promover operações ambientais que alteram afetividade de algo como reforçador/punidor, fenômeno conhecido como operação estabelecedora.
Contudo, acho válida as sementes lançadas sobre esse tema que, de fato, é preocupante, porém, o mesmo deve ser analisado com mais cautela para não acabarmos, com isso, explicando certos comportamentos sendo causado si somente si pelo vício em jogos. Não ser a causa não significa que não influencia. É válido ressaltar que não estou afirmando que não há influência de comportamento nesses jogos (jogos de violência por exemplo podem servir de modelação), há sim. Porém, acredito não ser o vício em jogos on line de uma dimensão preocupante tal qual outros comportamentos-problema possuem, a ponto de entrar no livro dos psiquiatras, e isso deve ser observado por nós que estudamos o comportamento dos organismos. O olhar do analista do comportamento sobre o DSM-V deve ser pautado pela funcionalidade do comportamento não pela topografia. Com isso, poderemos fazer análises críticas bastante sérias, se formos parar para analisarmos novos transtornos como este apresentado neste texto.
Diego Marcos Vieira da Silva
Graduando em Psicologia e análise do comportamento
Referências:
BRANDÃO, Lúcia de Carvalho. Interação social em diferentes contextos escolares: Estudo de caso de uma criança com autismo. 124f. Dissertação de mestrado (Psicologia) – Universidade Católica de Brasília, Brasília-DF, 2009.
Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. DSM-V/[American Psychiatric Association, tradução: Maria Inês Corrêia Nascimento, et al.]; revisão técnica: Aristides Volpato Cordiolli, et al. – e. Porto Alegre: Artimed, 2014.
FIALHO, Juliana. Autismo: o treino da comunicação alternativa por pistas visuais. Comporte-se, 2013. Disponível em <http://comportese.com/2013/10/autismo-o-treino-da-comunicacao-alternativa-por-pistas-visuais/>. Acesso em dezembro, 2015.
FIALHO, Juliana. Autismo: a tendência à repetição e as estereotipias. Comporte-se, 2014. Disponível em <http://comportese.com/2014/10/autismo-a-tendencia-a-repeticao-e-as-estereotipias/>. Acesso em dezembro, 2015.
MOREIRA, Márcio Borges; MEDEIROS, Carlos Augusto de. Princípios Básicos de Análise do Comportamento. São Paulo: Artmed Editora S.A. 2007.
Texto Esplêndido!