Mais de dez mil magistrados recebem remunerações superiores ao teto
Três de cada quatro juízes brasileiros receberam remunerações acima do teto constitucional, revela levantamento feito pelo GLOBO analisando as últimas folhas salariais dos 13.790 magistrados da Justiça comum brasileira, a maioria de agosto. São 10.765 juízes, desembargadores e ministros do Superior Tribunal de Justiça que tiveram vencimentos maiores do que os R$ 33.763 pagos aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Pela Constituição, esse deveria ser o maior valor pago aos servidores, e lá está expresso que nesse limite estão incluídas “vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza”.
Para driblar o teto, porém, os tribunais pagam aos magistrados recursos a títulos variados de “indenizações”, “vantagens” e “gratificações”, com respaldo legal dado por decisões do próprio Judiciário ou resoluções dos conselhos Nacional de Justiça (CNJ) e da Justiça Federal (CFJ), que têm a atribuição de fiscalizar esse poder.
O levantamento revela que a média das remunerações recebidas por magistrados da Justiça comum é de R$ 39,2 mil. Esse valor exclui, quando informado pelas cortes, os pagamentos a que fazem jus todos os servidores dos Três Poderes: férias, 13º salário e abono permanência, montante pago a todo servidor que segue na ativa mesmo já podendo ter se aposentado.
A média dos rendimentos nos tribunais estaduais ficou em R$ 39,4 mil, acima da obtida na Justiça Federal, de R$ 38,3 mil. No entanto, no âmbito federal nove em cada dez magistrados (89,18%) ultrapassaram o limite constitucional, percentual maior que os 76,48% registrados nos tribunais estaduais. No STJ, 17 dos 31 ministros receberam mais do que os ministros do STF, graças a indenizações como auxílio-moradia e ajuda de custo.
Um grupo seleto de cortes chama atenção pela vastidão do descumprimento: nos tribunais de Justiça de Distrito Federal, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que tem sede no Recife (PE) e abrange seis estados do Nordeste, mais de 99% dos magistrados recebem vencimentos acima do recebido pelos ministros do Supremo. Por outro lado, apenas em dois estados, Bahia e Pernambuco, menos da metade dos magistrados recebe acima do teto. Além disso, são os dois únicos tribunais em que a média dos vencimentos ficou abaixo dos R$ 33.763 obtidos pelos ministros da Suprema Corte.
A maior média foi registrada em Sergipe, com R$ 54 mil, seguido de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. Nesses casos, porém, os tribunais recusaram-se a informar quais magistrados receberam férias, antecipação do 13º salário ou abono permanência em agosto, o que pode levar à redução na média dos vencimentos. Entre os que forneceram os dados detalhadamente, Rondônia foi o estado que pagou as maiores remunerações, com média de R$ 41,2 mil por magistrado.
O levantamento identificou dezenas de casos de magistrados país afora que ultrapassaram R$ 70 mil em vencimentos (mais que o dobro do teto) e até um desembargador, em Rondônia, que ganhou R$ 111.132,44, acumulando gratificações, licença não gozada convertida em salário extra, e pagamentos retroativos de auxílio-moradia. Trata-se do maior vencimento entre os estados que detalham o pagamento de férias, 13º e abono. Entre as cortes que não subdividem as informações, o recorde ficou com Sergipe, onde um desembargador recebeu em agosto R$ 141.082,20 — isso após serem descontados R$ 4.325,89, a título de “abate-teto”.
No Rio, descontados os que receberam férias, a maior remuneração foi de um juiz de Valença: R$ 62,9 mil. Ele teve direito a gratificações por acumular a função em mais de uma vara e por ministrar aula na Escola Superior de Administração Judiciária, que pertence à Corte. Há ainda o caso de nove desembargadores e uma juíza que receberam mais de R$ 60 mil. O tribunal não identificou o tipo de vantagens que formaram esses vencimentos.
Quando se observam só os desembargadores, verifica-se que a norma constitucional do teto vem sendo driblada de forma ainda mais frequente. Só 51 dos 1.671 desembargadores do Brasil receberam nas folhas analisadas remunerações abaixo do
Atual secretário do Programa de Parceria de Investimentos do governo federal, o ex-deputado Moreira Franco foi o responsável por relatar a emenda constitucional que fixou o teto, promulgada em 1998. Ele ressalta que a intenção era justamente evitar que fossem utilizadas manobras para aumentar os vencimentos.
— Lembro que eu sempre insistia: teto é teto, não pode ter claraboia. Com o tempo, e uma certa leniência com o rigor na fiscalização, foi se gerando essa deformação. As categorias mais vinculadas ao mundo jurídico foram incorporando muitas vantagens; em alguns estados, chega-se a ter dois contracheques para tentar evitar o teto — disse Moreira, referindo-se a fato que ainda hoje ocorre no Mato Grosso do Sul.
Ex-ministra do STJ e ex-conselheira do CNJ, Eliana Calmon se destacou ao fazer críticas às tentativas de driblar o teto quando ainda estava na ativa:
— Isso acaba desgastando a imagem do Judiciário. Auxílio-moradia: todo mundo mora. Por que o juiz vai receber? Auxílio-alimentação: todo mundo se alimenta. Por que só o juiz vai receber? Então é ridículo. E isso desmerece o Judiciário.
Ela recorda que sofreu forte resistência dos juízes federais quando, em 2013, deu o voto que levou o Conselho da Justiça Federal a rejeitar o pagamento de auxílio-moradia a esses magistrados.
— Os juízes entendiam que os salários estavam congelados e precisavam de aumento. Como o governo não dava aumento, então se arranjaram esses penduricalhos — afirmou Eliana Calmon.
LEVANTAMENTO CUIDADOSO NAS CORTES
Para conseguir realizar uma radiografia das remunerações pagas aos juízes, O GLOBO debruçou-se durante cinco semanas sobre as folhas de pagamentos de 13.790 magistrados da Justiça comum brasileira. Trata-se não apenas dos 27 tribunais de Justiça dos estados e do Distrito Federal, mas também do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dos cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs) e suas 27 seções judiciárias, responsáveis por abrigar as ações que envolvam direta ou indiretamente a União.
Foram verificadas as últimas folhas salariais que estavam disponíveis nos portais de transparência dos tribunais em 15 de setembro, quando o trabalho foi iniciado. A maioria delas era relativa aos vencimentos do mês de agosto. Como em diversos portais não há a possibilidade de consultar a folha de pagamentos de forma integral, foi necessário, nesses casos, fazer a coleta individual dos dados sobre cada magistrado.
Para evitar distorções, foram retirados da base de cálculo, sempre que possível, os adicionais a que todos os servidores públicos têm direito: férias, 13º salário e o chamado “abono permanência”, valor pago aos funcionários que já teriam direito a se aposentar e permanecem na ativa. São, inclusive, os únicos benefícios adicionais pagos aos ministros do STF.
Todos os tribunais foram procurados há cerca de duas semanas para que informassem detalhadamente os gastos com esses três itens. No entanto, 15 tribunais de Justiça estaduais se negaram a fornecer essas informações individualizadas.
Há na base de cálculo de todas as cortes alguns benefícios eventuais, pagos a magistrados em um mês específico, mas que não significam que estarão permanentemente atrelados a seus vencimentos. É o caso, por exemplo, de licença-prêmio, ajuda de custo para quem mudar de cidade e pagamentos adicionais por substituição de outros magistrados e convocações.
No entanto, esse tipo de benefício foi contabilizado, pois muitas delas são vantagens que não se aplicam ao funcionalismo em geral. Além disso, esses pagamentos são práticas dos tribunais mês após mês, ainda que se alternem os beneficiários.
POLÊMICA NO PARANÁ
O debate sobre a remuneração de magistrados no Paraná levou profissionais da “Gazeta do Povo” a uma verdadeira peregrinação por fóruns no primeiro semestre deste ano. Após publicarem reportagens sobre o tema, a equipe foi alvo de 48 processos e teve de participar, em três meses, de 25 audiências. O périplo só foi encerrado quando a ministra Rosa Weber reconsiderou uma decisão anterior e concedeu uma liminar suspendendo todos os processos até que o Supremo Tribunal Federal (STF) analisasse o caso.
Os magistrados paranaenses desejavam receber indenizações por terem tido seus nomes citados no material, que apontava a existência de pagamentos acima do teto.
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