A imagem projetada do índio nas narrativas e documentos locais
Ao longo da história de Palmeira dos Índios, os habitantes nativos foram espoliados das suas propriedades, aprenderam a língua e vários costumes do não índio, de modo que sua imagem foi sendo folclorizada e até exotizada ao passo que iam criando mecanismos de resistência e adaptação frente à colonização. Assim, à medida que aconteceram os empréstimos culturais de ambos os lados, o índio foi sendo relegado a uma condição de exclusão e invisibilidade que o anulou enquanto grupo social, chegando a ser discriminado, perseguido e até mal visto e mal recebido em espaços públicos da cidade. Com este processo, tornou-se visível em momentos pontuais dos festejos da emancipação política do município ou de exibições folclóricas do dia do índio como engodo para atrair turistas, condição que vem sendo alterada desde a segunda metade do século XX quando começaram a recuperar a posse de alguns lotes de terra, a ter seus nomes estampados em fachadas de estabelecimentos comerciais e sua presença física voltou a ser constante na cidade e no cotidiano local.
Nessa perspectiva da significação, tem se destacado em Palmeira dos Índios o traço ou a questão de pertencimento étnico como elemento chave do processo de aceitação ou de negação dos indígenas.
A presença do índio no entorno da cidade, a imagem na bandeira e no brasão, os nomes em fachadas de estabelecimentos comerciais, não são por si só garantia de afirmação da etnia na região ou na cidade. Tal garantia só se consolida com a manutenção das características da comunidade, inclusive de sua identidade cultural (destacando-se a religião como elemento que estabelece uma fronteira entre índios e não índios), resultado de uma luta intensa do grupo, inclusive contra o Estado em determinadas situações para proteger-se como grupo específico e assegurar o direito a tratamento específico e diferenciado.
Breve histórico e cronologia de Palmeira dos Índios
A História de Palmeira dos Índios, cidade do interior de Alagoas é marcada por disputas pela posse das terras habitadas por índios Xukurus e Kariris e pela população envolvente. A literatura sobre a fundação da localidade é escassa e se encontra em poucos acervos preservados por particulares, no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, em documentos cartoriais e paroquiais na referida cidade.
As terras ocupadas pelo município de Palmeira dos Índios formavam inicialmente “um aldeamento dos índios Xukuru, que ali se estabeleceram no fim da primeira metade do século XVII”. O território era formado de matas nas serras e palmeiras na região do vale.
O nome do município veio, pois, em apologia aos seus primeiros habitantes e a abundância de palmeiras em seus campos. “Os nativos formaram seu aldeamento entre um brejo chamado Cafurna e a Serra da Boa Vista.”
Nos levantamentos que fiz sobre os acervos de Palmeira dos Índios identifiquei a existência de um acervo composto por fotografias, atas, cartas e jornais, de propriedade do Promotor Público e Jornalista Ivan Barros; um acervo documental e fotográfico arquivado na Casa Museu Graciliano Ramos (não disponível para pesquisas); um acervo digital na página Palmeira dos Índios das Antigas, que disponibiliza fotografias da cidade, dos eventos e das famílias tradicionais do município; um acervo de posse do Museu Xukurus de história, Arte e Costumes e de um acervo existente na catedral diocesana de Palmeira dos índios (composto pelos relatos e fotografias produzidos ao longo da história da religião católica em Palmeira dos Índios), além do acervo produzido por Luiz Torres, do qual possuo a guarda de uma parte.
Não encontrei registros na cidade sobre quem lhe atribuiu o nome Palmeira dos Índios, nem quando isso se deu. Os documentos da prefeitura e da paróquia, bem como os livros publicados por Luiz Torres e por Ivan Barros fazem referência Espíndola quando citam a data da criação da freguesia em 1798, porém a criação da vila de Palmeira dos Índios data de 1835 e a elevação à categoria de cidade é de 1889.
A vila de Palmeira dos Índios foi criada em 1835 através da resolução Nº 10, de 10 de abril, assinada pelo presidente da Província, José Joaquim Machado. O fato atendia aos anseios dos moradores que acreditavam num florescimento em curto prazo, mas não previam que esse passo rumo à liberdade política do povoado traria uma série de disputas pelo poder e pela posse territorial, rompendo com as bases da cultura fundante do lugar que passaria a condição de figurante no processo que se iniciou a partir então.
A data exata da criação da freguesia não é conhecida. Segundo Espíndola, é 1798. Outros autores, como Barros, Torres e Brandão enfatizam o ano de 1789, o que indica haver entre eles uma troca nos dois últimos algarismos. Apesar da criação da vila pela resolução nº 10, desmembrada da vila de Atalaia, sua instalação só se tornou válida depois da Resolução nº 27, de 12 de março de 1838 e esta foi suprimida pela Lei nº 43, de 23 de junho de 1853 e elevada à categoria de cidade pela Lei nº 1113, de 20 de agosto de 1889. Seu termo fazia parte, desde a criação, da comarca de Atalaia, passando, em 1838, para a de Anadia. Em 1872, pela Lei nº 624, de 16 de março, foi criada à sua comarca com o seu termo.
Os mapas e a fotografia apresentados a seguir tem o objetivo de apresentar a localização física de Palmeira dos Índios de modo que o leitor possa situar geograficamente o lócus dessa pesquisa.
O mapa 01, é um recorte do mapa político de Alagoas, apresenta o município de Palmeira dos Índios e os municípios que fazem fronteira com o seu território.
No mapa 02, elaborado pela Secretaria de Estado da Cultura, aparece em destaque à região do agreste, 3ª região do Estado, composta por Palmeira dos Índios e outros 18 municípios. Em toda essa região existem registros ou relatos da passagem e/ou estabelecimento de índios na época da colonização do interior de Alagoas.
A fotografia aérea da cidade de Palmeira dos Índios apresenta a sua posição no vale entre as serras. Observando a imagem pode-se perceber a localização privilegiada da cidade, que possui dois açudes de médio porte e é cercada por rica vegetação no seu entorno. As serras que cercam a cidade são habitadas por pequenos agricultores, alguns latifundiários e por sete comunidades indígenas do povo Xukuru-Kariri.
Segundo Antunes em 1770 chegou à região frei Domingos de São José com o objetivo de converter os índios ao cristianismo. Posteriormente, em 1773, o franciscano obteve de D. Maria Pereira Gonçalves (herdeira da Sesmaria de Burgos) e dos seus herdeiros a doação de meia légua de terra para patrimônio da capela que aí foi construída, sendo consagrada ao Senhor Bom Jesus da Morte. A escritura foi lavrada pelo tabelião Manoel Pereira da Rocha em 27 de junho de 1773 no cartório da comarca de Garanhuns.
Conforme descrito no texto da escritura, a doação foi feita para frei Domingos de São José, para que este desenvolvesse o trabalho missionário de catequese indígena e a edificação de uma capela. Com o processo de catequese em desenvolvimento, foi construída uma segunda capela na parte mais alta da planície, no sopé da serra, com o intuito de fazer desenvolver uma povoação naquele local. O padroeiro da capela do alto, Bom Jesus da Boa Morte foi substituído por Nossa Senhora do Amparo e um padre foi nomeado para dirigir os trabalhos na nova igreja, o Padre João Morato Rosas.
A criação da igreja e o estabelecimento do padre na região foram elementos propulsores para um considerável fluxo de pessoas no vale, entre elas alguns comerciantes e tropeiros que foram lentamente estabelecendo residência no entorno da capela, criando, desse modo um pequeno aglomerado populacional de não índios no sopé da serra enquanto que a parte mais alta do território era habitada pelo povo Xukuru-Kariri.
À medida que o povoado crescia, os comerciantes iam se estabelecendo e trazendo suas famílias enquanto os índios assistiam esse estabelecimento do progresso, algumas cercas começavam a ser erguidas, delimitando posses, cercando nascentes d’água, e criando a privatização de um espaço que o índio estava habituado a usar livremente. Nos anos seguintes, os limites foram ficando mais sólidos e o índio já não mais podia andar pelo território que lhe pertencera. Nesse aspecto, Ivan Barros (1969) é enfático quando afirma que o índio foi expropriado do seu patrimônio e submetido a humilhações à medida que a vila surgia. Destaca que,
(…) de 1821 a 1822 os indígenas, depois de muitas humilhações e explorações, conseguiram recuperar as terras invadidas pela horda de ‘cara-pálidas’, numa campanha chefiada por Diogo Pinto, que, desfrutando de um sólido prestígio junto do Presidente e da Assembleia Provincial, logrou êxito em seus objetivos, quando o Juiz das Sesmarias, sargento-mór José Gomes da Rocha, lavrou o termo demarcando o “Rio Pau da Negra a Panelas”, conforme reivindicação dos próprios indígenas. (BARROS, 1969, p.28)
Vale destacar que a reivindicação dos indígenas só foi atendida graças à política clientelista existente e tão fecunda no Brasil, fazendo com que já naquela época se estabelecesse entre os nativos e o colonizador alguns laços de dependência, de contratualismo e de reciprocidade. Dessa forma, o direito que lhes era assegurado ecoava como que troca de favores e necessidade de efetivação de laços de dependência com algum não índio poderoso na sesmaria. Nasceu, assim, o processo de exclusão do povo indígena dentro do seu próprio território, de modo que os mesmos passam a ser pouco evidenciados na história da cidade, apesar da sua presença física nas matas que a circundam.
Conhecida como a Princesa do Sertão por se localizar na faixa de transição entre o agreste e o sertão, Palmeira dos Índios tem também sua origem explicada por uma lenda sobre o amor proibido entre um casal de índios Xukuru-Kariri, os primos Tilixi e Tixiliá. Esta lenda é amplamente divulgada na região e foi publicada em várias versões, desde a original pelo seu criador, Luiz Torres, até versões contemporâneas adaptadas para crianças e até mesmo como história em quadrinhos, o que fortalece a imagem dos nativos enquanto presença viva na história local.
Os Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios
Em Palmeira dos Índios habitam índios aldeados na Fazenda Canto, Mata da Cafurna, Serra da Capela, Cafurna de Baixo, Serra do Amaro, Coité, Boqueirão e Riacho Fundo. Encontram-se divididos em oito aldeias reconhecidas pela Fundação Nacional de assistência ao Índio – FUNAI (até 2015) e uma aldeia na Fazenda Monte Alegre ainda não reconhecida pelos seus pares, pelos órgãos de tutela e pela sociedade envolvente.
Os indígenas das aldeias reconhecidas são da etnia Xukuru-Kariri e os que habitam a Fazenda Monte Alegre se autodenominam Xukuru-Palmeira, mas se dizem pertencentes ao mesmo grupo dos primeiros, porém não são reconhecidos por eles. Na cidade, são todos conhecidos como Xukuru. Contudo, os atuais índios principalmente os mais velhos afirmam que ouviram seus avós dizerem que “eles não são Xukuru, mas sim índios Kariri da tribo Wakonãn”. O termo Xukuru é um apelido, afirmam.
O mapa a seguir apresenta a localização das aldeias no município de Palmeira dos Índios. Este mapa foi produzido para compor o Relatório Preliminar Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Xukuru-Kariri/AL e se encontra como anexo do referido relatório. Para melhor visualização das aldeias, circulei em azul a Aldeia Mata da Cafurna (lócus dessa pesquisa), em verde a Aldeia Monte Alegre e em vermelho as demais aldeias. É necessário, porém, salientar que todas as aldeias ficam ao norte da cidade e ocupam as serras em sua volta. Essa localização deve-se, segundo os índios, à possibilidade de visualização do vale o que lhes permitia no passado identificar qualquer ameaça de invasão a suas terras.
Segundo alguns estudiosos alagoanos, entre eles Antunes, Torres, Barros, Amorim, Almeida e Cunha, os Xukuru palmeirenses são oriundos da Serra do Ororubá em Cimbres, atual município de Pesqueira em Pernambuco.
Contam os atuais indígenas palmeirenses que uma família Xukuru de Cimbres (Pesqueira) em Pernambuco saiu das suas terras devido a uma grande seca no sertão pernambucano e solicitou abrigo aos Kariri de Palmeira, recebendo autorização para se fixar na entrada da Serra da Cafurna. Em apologia a eles, hoje existe um bairro e um açude chamados Xukuru. Quando os Kariri desciam da Serra da Cafurna, da Serra da Capela, em direção à cidade, visitavam os Xukuru e algumas vezes chegavam a pernoitar em suas casas. Assim, os Xukuru tornaram-se influentes e hospitaleiros. Aos poucos, tornou-se costume no lugar chamar os índios que habitavam Palmeira dos Índios de Xukuru, em lugar de Kariri-Wakonãn. Daí tornou-se comum e muito generalizado aos moradores da cidade dizerem:
“Palmeira dos Índios, terra de Xukuru”, quando deviam afirmar que é terra dos Kariri-Wakonãn.
A cidade de Palmeira dos Índios foi fundada em terras que pertenciam a Sesmaria de Burgos, doada em 23/12/1661, ao desembargador Cristovam de Burgos e outros. Em 26/07/1712, parte das terras dessa sesmaria foi vendida ao português Manuel da Cruz Vilela que tomou posse no ano seguinte. O sesmeiro foi assassinado em 1729 e a viúva Maria Pereira Gonçalves e os demais herdeiros fizeram a doação, em 1773, de meia légua de terras a frei Domingos de São José, com a condição de que o frei erguesse uma capela ao Senhor Bom Jesus da Boa Morte. Este ano é considerado pela literatura e documentos paroquiais como início do processo de catequese dos índios que já viviam na região.
Como a igreja foi construída no alto da serra, num local de difícil acesso, denominado Igreja Velha, pouco propício à edificação de uma vila, o frei decidiu transferir a igreja e para isso utilizou-se de uma estratégia para convencer os índios.
A doação se deu através de Alvará de Doação e Sesmaria emitido pelo governador Afonso Furtado de Castro de Rio de Mendonça.
Informações deixadas no livro de atas da paróquia pelo vigário José de Maia Mello, cujo vicariato ocorreu de 1847 a 1899.
Retirava ou mandava retirar a imagem da capelinha de palha e a fazia aparecer numa fenda existente no tronco de uma árvore exatamente no local onde atualmente se ergue a igreja Matriz.
A povoação da Mata da Cafurna, e ocupação do local conhecido como igreja Velha é confirmado em um laudo antropológico de 1990, que descreve a realização de algumas escavações a 40 cm de profundidade nas quais encontraram vestígios de cachimbos, discos de pedra polida, lascas de sílex e quartzo, cacos cerâmicos de panelas e urnas funerárias.
No Arquivo Paroquial da Diocese de Palmeira dos Índios encontra-se a referência mais antiga aos índios de Palmeira. O documento com o título História da Palmeira, de autoria do vigário José de Maia Mello faz referência a uma índia Xukuru, de nome Izabel Maria da Conceição, nascida em 1762. Segundo o Vigário, “os índios Xukuru, teriam migrado da aldeia de Cimbres de Pernambuco em 1740, em função da grande seca ocorrida em todo o Nordeste. A migração de Cimbres para Palmeira dos Índios é também referenciada em Hohenthal (1960) que fala da convivência dos Wakonã com os Xukuru como casamento interétnico comum à época. Já Antunes acrescenta que “os índios Xukuru teriam se aldeado à margem do ribeiro Cafurna, entre as terras da fazenda Olhos d´Água do Accioly (atual município de Igaci) e a serra da Palmeira”. Os índios Cariri, segundo o arquivo, são da etnia conhecida como Wakonã, da aldeia de Colégio (atual Porto Real do Colégio, às margens do rio São Francisco, na divisa de Alagoas com Sergipe), que teriam se aldeado na Serra do Cariri onde construíram uma pequena igreja, de palha de palmeira, no atual sítio chamado “Igreja Velha”.
A busca por referência sobre a origem desses indígenas nos levou a outros autores que descrevem a ocupação nativa das serras de Palmeira e não divergem nos relatos sobre a migração de Cimbres – PE e Colégio – AL. Aires de Casal fala dos Wakonã e os identifica em Porto Real do Colégio como uma etnia distinta que se originou do distrito de Lagoa Comprida em Penedo – AL, Saint-Adolphe (geógrafo francês) registrou, em 1845, que os jesuítas assentaram os Aconan na aldeia de Colégio. Diz que estes pertenciam à nação
Segundo depoimentos de anciãos da Aldeia Mata da Cafurna o frei decidiu transferir a imagem porque não conseguia evitar que os indios a enfeitassem com penas.
Ainda do século XIX, 1862, existe o relatório do bacharel Manoel Lourenço da Silveira que descreve a existência de “193 índios em Porto Real do Colégio reconhecidos como Coropotó, Cariri e Acunan”.
Pesquisadores mais recentes como Abelardo Duarte – 1938 e Carlos Estevão – 1935 falam dos índios Waconã em Porto Real do Colégio e outros escritos vão apresentar argumentos para ligar esses povos aos atuais Xukuru-Kariri. Merece ainda destacar a visita ao nordeste, do zoólogo José Cândido de Melo Carvalho, em 1961, para estudar 18 urnas funerárias encontradas durante a construção de uma estrada, à margem do rio Itiúba. No seu relatório cita que ao chegar a Palmeira dos Índios encontrou aproximadamente 500 a 1000 índios que se autodenominavam Wakonã.
Outro fato importante se dá em 1964 quando o Serviço de Proteção ao Índio reconhece, através do seu diretor José da Gama Malcher, os índios de Palmeira como Wakonã afirmando o que Curt Nimuendaju já havia colocado em seu mapa elaborado em 1944 que reconhecia os índios de Penedo como Wakonã. Os dados ora apresentados têm o intuito de apresentar elementos para justificar a afirmação do porque os índios de Palmeira foram chamados de Wakonã-Xukuru.
Segundo W. D. Hohenthal (1960) “os índios palmeirenses são Kariri oriundos dos cariri da Bahia (as tribos do Médio e Baixo Rio São Francisco)”. Saíram das suas terras fugindo da escravidão que se impunha à medida que a pecuária começava a ser implantada às margens do grande Opara (Rio São Francisco). Acrescenta ainda que “Em fuga, chegaram a Palmeira dos Índios por volta de 1740 quando estas terras ainda faziam parte da Sesmaria de Burgos”.
Dessa forma, os índios de Palmeira conviveram com frei Domingos de São José até quando o rei de Portugal mandou demarcar as terras dos índios fundando as sesmarias indígenas dentro das sesmarias dos brancos, determinando que onde houvesse 100 famílias indígenas fosse fundada uma sesmaria o que assegurou o direito de possuírem duas léguas de terra. Porém, com a República, o governo considerou extintas todas as aldeias, o que acirrou o conflito territorial que se estende à atualidade.
Os anos seguintes foram marcados por conflitos e lutas pela posse das terras, pela invasão das terras indígenas e pela expulsão dos nativos do vale que atualmente abriga a cidade. Nesse processo, descrito por Dona Salete Santana“as malocas foram queimadas e muitos índios foram mortos pelos posseiros armados com armas de fogo que deixavam os arcos, flechas, lanças e tacapes inúteis”.
Os sobreviventes buscaram refúgio na Serra da Cafurna e na Serra da Capela, passando a conviver com os Wakonã formando a tribo chamada de Wakonãn-Kariri-Xukuru. Foi nesse contexto de fusão de povos que estes foram encontrados pelo Frei Domingos de São José. A fusão facilitou o trabalho catequese dos aldeados que passaram a viver do cultivo da terra, da manipulação das ervas, dos trabalhos da olaria, na fábrica de potes, jarras e igaçabas além de outras atividades como o artesanato e a criação de pequenos animais, enquanto nascia uma nova cidade, uma nova cultura e uma nova civilização.
O dia 27 de julho do ano de 1773, data da fundação da cidade de Palmeira dos Índios, quando Frei Domingos de São José recebeu em cartório a doação de um terreno para erigir uma capelinha, a Capela dos Índios Wakonã-Kariri marca o nascimento da cidade.
Quem são os Xukuru-Kariri
Os Xukuru-Kariri se organizam em grupos familiares que segundo eles são originários de um tronco comum. São redes de famílias extensas com interações e separações. Atualmente estão distribuídos em oito aldeias existentes em Palmeira dos Índios e uma aldeia em Caldas, Sul de Minas Gerais. As separações se deram a partir de dissidências na Fazenda Canto. Tais dissidências originaram a formação da aldeia Mata da Cafurna e a aldeia da Fazenda Pedrosa, na Bahia de onde o grupo liderado por José Sátiro mudou-se para Caldas, no sul de Minas.
Segundo pesquisa realizada pela antropóloga Silvia Martins,
O homicídio de João Celestino cometido por José Sátiro do Nascimento (atual cacique da AI Fazenda Pedrosa) desencadeou a divisão dos Xukuru-Kariri da Fazenda Canto em três facções políticas atualmente localizadas em diferentes áreas. Como consequência, hoje o grupo se encontra em diferentes situações históricas (nas três áreas já mencionadas), em contextos organizacionais (intersocietários) e relacionais, particularmente com o órgão tutor, diferenciados. No entanto, continuam a utilizar o mesmo etnônimo indígena. Sobre a unidade étnica Xukuru-Kariri é suficiente ressaltar alguns dados importantes sobre essa questão que é bastante complexa e relativa.
Há um silêncio quando se tenta abordar as origens da dissidência. Os motivos são apresentados em frases curtas, quase monossilábicas e falam apenas que “a disputa pelo poder fez as famílias se separarem”. Quando insisti em obter detalhes sobre tal disputa, ouvi como resposta “conviver com alguns parentes não é fácil… Nem eles mesmo se aguentam. A nossa aldeia se formou porque houve um desentendimento entre dois irmãos e um deles saiu da Fazenda Canto e veio morar aqui”. Não consegui mais detalhes. Houve um longo silêncio que foi rompido com a seguinte frase: “melhor deixar esse assunto morto e enterrado”.
A comunidade é formada por aproximadamente 120 famílias, com aproximadamente 700 pessoas que se dizem pertencer a um mesmo tronco, conforme pesquisa de Silvia Martins. As famílias que se estabeleceram na Aldeia Mata da Cafurna vieram a convite do Sr. Antonio Celestino e da sua esposa Marlene Santana e são, na sua maioria, descendentes de treze famílias apontadas pelos Xukuru-Kariri como pioneiras formadoras do seu povo na Fazenda Canto.
Atualmente algumas famílias vivem em conflito, mas a família Celestino é descrita pelos seus pares como detentora de grande poder entre os Xukuru-Kariri, fato que gera dificuldades de relacionamento entre algumas aldeias, porém mesmo com essa situação tem se registrado momentos de alianças, como foi o caso das retomadas territoriais. Observa-se também que é entre os membros dessa família que figuram os mais famosos personagens da etnia, destacando Maninha Xukuru, filha de Antonio Celestino que chegou a fazer parte da APOINME e é tida como grande exemplo de liderança entre seu povo.
A linhagem dos Celestino tem se sucedido no poder ao longo de gerações, podendo citar o Senhor José Celestino da Silva conhecido como Zé Caboclinho (atuou como informante de Carlos Estevão, para quem fez escavações que resultaram na descoberta de urnas funerárias), seus filhos Alfredo e Miguel Celestino, além dos netos Antonio Celestino, Manuel Celestino e do bisneto Purinã
Celestino que compõem a lista de membros dessa família a ocupar cargos de cacique ou de pajé Xukuru-Kariri.
Apesar de citarem algumas famílias como formadoras do seu povo e, consequentemente detentoras de maior prestígio social na comunidade, os Xukuru-Kariri me apresentaram algumas famílias formadas pela sua fusão através de casamentos com índios Pankararu, Kariri-Xocó e Kalancó, além de outras famílias que se formaram com a união com não índios. Estas últimas, porém, não gozam dos mesmos direitos que os demais no que se refere a voz nos conselhos internos e a participação nos rituais onde os chamados estranhos a cultura são interditados, mesmo sendo casados com Xukuru-Kariri.
Principais publicações sobre os Xukuru-Kariri
Trabalhos sobre os povos indígenas ou mesmo sobre a história local não são muito frequentes nas listas das obras publicadas em Palmeira dos Índios. Os pioneiros foram Luiz B. Torres e Ivan Barros, cujas obras são comentadas a seguir.
Das obras de Luiz Torres, destaco A terra de Tilixi e Tixiliá. Palmeira dos Índios dos séculos XVIII e XIX (publicada em 1975), composta de duas partes, sendo a primeira bem ampla, com 237 páginas divididas em 29 tópicos que iniciam com a discussão sobre o momento em que as terras que compõem o município de Palmeira dos Índios pertenciam a duas sesmarias e evolui com a descrição da chegada do primeiro branco a região, frei Domingos de São José, e com abordagens superficiais sobre as condições de moradia, organização social e lendas indígenas. A primeira parte é encerrada com abordagens sobre a emancipação política do município, o uso de mão de obra escrava na região e descreve ainda algumas medidas adotadas pela Câmara Municipal de Vereadores com o intuito de normatizar as ações de tributação e funcionamento do comércio. A segunda parte do livro, com um só tópico, ocupa 118 páginas e apresenta uma visão da cidade através das atas, da Câmara de Vereadores, do período de 1870 a 1892.
Esta obra não permite grandes aprofundamentos quanto ao tema, mas essa limitação é fundamental para esta pesquisa por transparecer a forma pouco visível como o índio é descrito na literatura local que o referencia mais como ícone folclórico do que protagonista da história local.
O autor não usa fotografias, mas apresenta um conjunto de 18 desenhos, de sua própria autoria, sendo um índio sepultado dentro de uma igaçaba, um desenho de uma espingarda no final de um texto sobre a participação dos Xukuru-Kariri na Guerra do Paraguai, um desenho de índio vestido como praiá, um de colar feito de caramujos, um pote de barro no final de uma descrição de comidas típicas, um instrumento de pesca chamado puçá, uma rede de dormir, um índio com arco e flecha, um maracá, cinco instrumentos de pedra (cachimbos, panela e machado) quatro igaçabas. Em nenhum dos desenhos o autor faz comentários sobre eles, coloca apenas o nome de cada elemento.
Outra obra que ajuda a recriar a história de Palmeira dos Índios foi também produzida por Luiz B. Torres “Os índios Xukuru e Kariri em Palmeira dos Índios”. Neste livro o autor apresenta a história dos índios Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios, descrevendo o processo de fixação dos mesmos nessas terras e os conflitos que viveram desde a chegada do beato Frei Domingos de São José, a criação do diretório e da missão indígena e a luta pela posse e propriedade da terra. Para isso, Luiz Torres utiliza desenhos (produzidos por ele mesmo) de peças em barro, palha e madeira confeccionadas para fins domésticos, ritualísticos e funerários. Apresenta, ainda algumas considerações sobre o papel do pajé, os rituais de cura, o papel da bebida nos rituais e cita algumas lendas locais sobre lutas contra ciganos, doenças e cura com ervas associadas à ação de espíritos encantados e finaliza com uma breve abordagem sobre as pesquisas arqueológicas que realizou quando encontrou as pedras demarcatórias dos limites territoriais e os cemitérios indígenas.
O autor repete os mesmos desenhos que usou na obra A terra de Tilixi e Tixiliá, já descritas anteriormente, porém acrescenta a imagem da bandeira do município e as fotografias das escavações por ele realizadas.
Dentre os trabalhos de Luiz Torres foi o mais difundido em Palmeira dos índios sobre os povos indígenas do lugar. Foi editado quatro (04) vezes e amplamente divulgado nas escolas à época do seu lançamento.
De autoria de Ivan Barros, publicado em 1969, o livro Palmeira dos Índios, Terra e Gente em suas 131 páginas trata de apresentar um panorama da cidade e dos seus habitantes, o que o leva a citar os Xukuru-Kariri logo no primeiro capítulo, quando descreve a chegada do Frei Domingos de São José, a criação da missão indígena e ao longo da obra esses nativos praticamente não aparecem mais, com exceção da descrição do teor da escritura da carta de doação das terras da Sesmaria de Burgos.
O livro traz nas suas páginas finais um conjunto de 48 fotografias de personagens da história local, políticos, festas, feira, encontros de família e apenas 01 (uma) foto de índios (três caciques). No conjunto de imagens que compõem esta obra há uma breve nota abaixo de cada foto descrevendo os personagens que a compõem. Na foto dos Caciques aparece a seguinte descrição: “Os três derradeiros caciques Xucurús. Estaturas baixas, morenos, braços musculosos, pés achatados, largos. Fabricavam chapéus, jarras, potes e plantavam ervas medicinais”. A descrição refere-se aos índios como pessoas do passado, pois indica que à época da publicação do livro se pensava em índio como não mais existente nessa região.
Luiz Sávio de Almeida, professor da Universidade Federal de Alagoas, criador de um grupo de estudos intitulado Índios do Nordeste, vem se dedicando ao longo de 11 anos do grupo estudos a publicar a história dos nativos alagoanos. Como organizador, publicou em 1999, o livro Os Índios nas Fallas e Relatórios Provinciais das Alagoas, publicizando, a partir de documentos do arquivo público, da FUNAI, do CIMI e do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) os documentos oficiais e correspondências particulares que abordam a situação e as questões indígenas em Alagoas. O trabalho não traz discussões dos documentos expostos, apenas os divulga obedecendo a uma ordem cronológica, mas permite ao leitor entender o processo de luta pela posse e propriedade da terra indígena em Alagoas.
Esse mesmo autor publica, nos anos seguintes, a coleção Índios do Nordeste: temas e problemas, com 12 volumes, dedicando um espaço em cada volume para registrar as pesquisas de estudiosos alagoanos sobre os Xukuru-Kariri. Cada volume é composto de um conjunto de artigos produzidos por pesquisadores alagoanos e de outros estados como Pernambuco, Sergipe, Paraíba e Rio Grande do Norte. Sobre os Xukuru-Kariri a coleção traz um artigo da Professora Maria Ester Ferreira (UFAL) sobre a luta por demarcação de terras em Palmeira dos Índios no início do Século XXI, do Professor Ademir Barros Junior (UNEAL) é publicado um artigo sobre o processo de retomada de terras no Sítio Macaco em Palmeira dos Índios e outro sobre as visões do Pajé Miguel Celestino, abordando a importância dos sonhos como canal de comunicação do pajé com os espíritos encantados. Os demais artigos discorrem sobre índios do sertão alagoano e sobre povos de outros Estados do nordeste, destacando-se os Fulni-ô de Águas Belas e os Xukuru de Pesqueira – PE.
A maioria dos trabalhos apresentados versa sobre o povo Kariri-Xocó da divisa de Alagoas com Sergipe e é resultado de pesquisas de um grupo de professores do Curso de História do Centro de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC) e da Secretaria Estadual de Educação, membros do Conselho Indigenista Missionário – CIMI e pesquisadores do Grupo de Estudos coordenado por Luiz Sávio de Almeida.
Imagem do índio nas obras de Luiz Torres e Ivan Barros
Luiz Torres e Ivan Barros são conhecidos em Palmeira dos Índios como pioneiros no trabalho com indígenas. O primeiro, não tinha formação acadêmica, mas atuou em várias áreas como jornalismo, teatro, literatura, política e tantas outras áreas que lhe conferiu notoriedade na pequena cidade. O segundo é advogado, promotor público e proprietário de um jornal local “Tribuna do Sertão” que circula nas principais cidades alagoanas, inclusive na capital. Suas obras foram publicadas na segunda metade do século XX e ainda são vistas como importantes por oferecer um referencial inicial para as pesquisas sobre a temática local, apesar de apresentarem pouco aprofundamento da temática indígena.
Os dois autores são convergentes na descrição dos índios como primeiros habitantes da localidade, detentores das melhores terras da região com água em abundância e solo fértil, além de ricas em caça e pesca, elementos que converteram estas terras em alvo da disputa com o colonizador. Os Xukuru e Kariri, segundo Torres e Barros, já haviam abandonado outras áreas anteriormente (em Pernambuco e Sergipe, respectivamente) fugindo do processo de povoamento e implantação da pecuária no interior deixando suas posses para o novo dono da terra, mas mesmo assim não conseguiram livrar-se da ação de ocupação do interior que os reencontrou nas terras de Palmeira dos Índios.
A caça ao índio foi, segundo Luiz Torres, iniciada em 1537, através de Carta Régia do rei D. João III que concedeu expressa autorização para escravizar membros da “raça guerreira dos caetés” como retaliação ao suposto banquete com a carne do Bispo Sardinha. Em 1549, os jesuítas iniciaram à catequese dos nativos, mostrando-se tão zelosos que em 1558 a regente D. Catarina, sensibilizada com a causa, encarregou-os da pacificação e conversão daquelas almas.
Ivan Barros ao falar do início da colonização em Palmeira dos Índios, descreve que “Palmeira dos Índios, portanto se originou da necessidade dos índios fugirem das entradas e bandeiras, cujas funções contrárias às dos portugueses, era abrir caminho, descobrir minas, e comércio de braços humanos”. Acrescenta que sob a égide da colonização os portugueses se apropriaram das terras, escravizaram o índio, abusaram sexualmente das mulheres, impuseram a língua, a crença e vários costumes da civilização europeia, contribuindo para que as aldeias presenciassem o nascimento de uma gama de cachaceiros criando problemas ao desenvolvimento da Colônia.
Sobre o Diretório os dois autores se repetem. Observando as datas de suas publicações, pode-se inferir que Torres transcreveu Barros, porém não fez referência ao seu trabalho. Abordam a questão do diretório indígena a partir da publicação, em 1758 (pelo Rei D. José I) de uma Ordenação Real criando o Diretório Indígena que determinava que os índios passassem a ser dirigidos por um diretor, até que adquirissem a capacidade de si governarem. Com esse ato, afirmam que o Diretório Indígena iniciou o processo de integração do índio à civilização europeia sob a égide de um só governo, o Rei; um só Deus, o dos cristãos; um só chefe espiritual, o Papa; uma só lei, a dos portugueses, rompendo, dessa forma, com a tradição nativa.
O documento é composto de 95 artigos, dos quais Luiz Torres destaca a substituição da língua geral pela língua portuguesa (artigo 6), a abolição do uso de nomes indígenas e a adoção de nomes e sobrenomes portugueses (artigo 11), a proibição do uso do termo negro (artigo 10), o incentivo ao casamento de colonos brancos com indígenas (artigos 88 a 91) e punição contra discriminações (artigos 84 a 86) como principais nortes do Diretório em Palmeira dos Índios. Até este ponto, os dois autores apresentam o mesmo discurso. No restante das obras eles se separam em abordagem de temas distintos.
Nos escritos de Luiz Torres consta que os Diretores eram escolhidos pelos Presidentes da Província das Alagoas entre os nomes de uma lista tríplice encaminhada por indicação da Câmara de Vereadores. Ao Diretor, autoridade máxima na Missão, cabia à função de coordenar os trabalhos de catequese dos índios e a integração destes como força de trabalho no desenvolvimento da economia.
A falta de investimentos em conservação de prédios históricos em Palmeira dos Índios fez com que a ação do tempo promovesse o desabamento do prédio que abrigou a Missão Indígena e junto com os escombros se perderam os documentos da sua instalação e os registros da data da sua criação. Supõe-se que sua instalação seja posterior a criação da Freguesia de Nossa Senhora do Amparo, em 1798.
A forma como os escritores abordam os Xukuru-Kariri os colocam numa condição de observadores passivos dos acontecimentos. Nessa primeira parte das obras não há referência a nenhum tipo de reação contrária aos processos de redução, catequese ou dominação a que foram submetidos. Com a ausência de referência a qualquer reação, começa, nessas obras, a criação da imagem do índio ingênuo, talvez aos moldes do nativo descrito na Carta de Caminha.
Luiz Torres contradiz a imagem do nativo ingênuo quando em uma seção destinada a abordar a extinção da Missão Indígena em 1872 (fato também citado por Sávio Almeida, 1999) escreve que se efetivou uma disputa em torno das terras palmeirenses e esta situação ganhou impulso quando o governo declarou extintos os aldeamentos de Alagoas em 17 de junho de 1872 e, em 1874 a Câmara de Vereadores de Palmeira dos Índios solicitou, ao Governo, as terras para constituírem o patrimônio municipal.
A imagem do índio pacífico é ratificada por Luiz Torres na abordagem sobre o Decreto nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854 (documento regulamentador da Lei de Terras), que destina o Capítulo VI a discussão “das Terras Reservadas” e, dispõe no artigo 72 que “Serão reservadas terras devolutas para a colonização e aldeamento de indígenas nos distritos onde existirem hordas selvagens”. Com tal artigo ficava assegurado o direito à posse da terra apenas para os índios considerados selvagens, o que excluía, segundo o escrito, os Xukuru-Kariri que tinham passado pelo processo de moldagem cultural imposto na Missão e enquadravam-se no que João Pacheco de Oliveira denomina hoje de ‘índios misturados’. Nesse contexto, (SILVA, 2005, p. 123-4) coloca que:
O drama de identificação ou reconhecimento oficial vivido pelos “índios misturados” não deveria ser reduzido a um questionamento sobre serem eles indígenas ou não, uma vez que foram submetidos a processos de integração nacional (aldeamento, acamponesamento e proletarização são apenas alguns desses processos), mas em como reconhecer a permanência de suas identidades indígenas particulares a despeito das transfigurações étnicas a que foram submetidos (RIBEIRO, 1970). Nesse sentido, a questão não é saber quanto de “índio” sobrou na mistura, mas saber como elaborar um modelo de interpretação para múltiplos processos de mistura conformadores de múltiplas indianidades ou modos de ser índio.
A imagem do índio pacífico vai sendo substituída, na literatura de Luiz Torres, pela imagem do índio excluído. O processo de exclusão é descrito como acelerado a partir do momento em que a presidência da província foi encarregada de informar ao Governo Imperial sobre o número de índios e a extensão e valor das propriedades das aldeias existentes nas províncias. Segundo rege o artigo 73 da Lei de Terras de 1850, a partir dessas informações os inspetores e agrimensores se encarregariam de encaminhar os estudos para a regularização do aldeamento destes grupos em local apropriado, que poderia ser, ou não, no lugar de origem.
Com a efetivação desta lei, as terras indígenas, notadamente as do Nordeste, foram classificadas devolutas, loteadas e transferidas através de título de compra a terceiros. São esses terceiros que os Xukuru-Kariri denominam de posseiros e é contra eles que se desenvolve desde então o conflito citado por Luiz Torres o que tem gerado sérios problemas políticos, econômicos e culturais na região do entorno da cidade de Palmeira dos Índios.
O documento expedido em 1874 pela Câmara de Vereadores de Palmeira dos Índios fazia uma denúncia de apropriação irregular dessas terras. A Ata da sessão da Câmara do dia 29 de outubro do mesmo ano registra que o então vereador Manuel Marques de Oliveira se apropriou indevidamente das melhores terras que pertenciam ao extinto aldeamento. A denúncia feita pelo vereador Julio Gomes Correia diz que “o usurpador’ fez o que quis; derrubou o travessão existente construiu açude e ocupou enfim o que havia de melhor. O seu gado invadiu roças, agora sem proteção alguma”.
A ata não registra qualquer reação da Câmara. Luiz Torres deduz e registra em seu livro que tal atitude deve-se ao fato de o “usurpador” se tratar de uma pessoa de renome econômico e político, e as terras em questão eram consideradas terras públicas sob a responsabilidade do governo provincial, por isso foi enviada uma cópia do requerimento ao referido governo.
Em 17 de julho de 1879 na ata da Câmara Municipal de Palmeira dos Índios consta o registro de que aquela casa recebeu um ofício da Presidência da província, datado de 10 de dezembro de 1878, solicitando toda a documentação referente às terras e ao patrimônio do extinto aldeamento.
Uma nova ata de 1890 transcreve a solicitação da Câmara ao Governador do Estado para que este a represente junto ao Governo Federal sobre os aforamentos das terras dos antigos aldeamentos. Destaca que tal solicitação está ancorada na Lei de 20 de outubro de 1887, parágrafo terceiro, que lhe concedeu o direito sobre as terras em questão, enquanto que uma Circular do Ministério da Fazenda suspendera tal aquisição, deixando a câmara, segundo os reclamantes, privada de seus direitos.
Observa-se que a partir daí os documentos da Câmara de vereadores, citados por Luiz Torres e Ivan Barros, não fazem menção a reivindicação dos índios. Relatos sobre as vozes dos índios só vão reaparecer após 1920 com a presença do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) no Nordeste.
Os índios voltaram a ter o direito a uma propriedade denominada Fazenda Canto adquirida pelo Serviço de Proteção ao Índio, em 1952, com área de 372 hectares, considerada insuficiente para atender às necessidades básicas de moradia e produção agrícola, o que demandou a organização do grupo para atuar em duas frentes, uma de reivindicação junto aos poderes públicos e outra de retomada das áreas que fazem parte do território inicialmente doado em 1773 pela sesmeira D. Maria Pereira Gonçalves.
Dessa forma, Luiz Torres apresenta uma imagem do índio pacífico, apenas partícipe no processo histórico que se desenvolveu em torno da posse das terras, assumido uma imagem de excluído até a segunda metade do século XX quando desperta para as reivindicações em torno das retomadas territoriais.
Ivan Barros, por sua vez não centra sua narrativa aos Xukuru-Kariri, apresenta as mesmas questões discutidas por Luiz Torres, acrescentando apenas uma breve descrição sobre a obra catequética de Frei Domingos de São José, onde afirma que, a obra catequética do Frade, foi empolgante. Dezenas de núcleos onde reuniam a indiada, pacificando-a, incorporando-a a um novo sistema de vida, surgiram por diligências do intrépido missionário. A dinâmica da conquista se fazia sentir por todos. Criou-se uma aldeia maior: casebres mal equilibrados, cobertos de ramos de palmeiras, em torno da igrejinha, situada no chapadão da serra das palmeiras, que passou a denominar-se “Capela”. E felizes, os nativos passaram a dominar a caça, a pesca nos riachos. Rasgaram o ventre da terra e fecundaram-na com sementes de algodão, feijão e mandioca. Faziam a colheita de poucos vegetais. E muitas vezes tomavam o “grulijó” (bebida de mandioca) e baforando “canabis-sative” em quakis, enebriados, dançavam o tore, invocando, em trajes bizarros, altas horas da noite, o Rikukilhiá (deus da floresta), num estranho culto.
Além dessa referência, os índios são descritos em outro trecho da obra que juntamente com os escritos de Luiz Torres vão compor a imagem dos índios na cidade de Palmeira dos Índios. Descreve que
Os Xukurus são nômades, por excelência. Andarilhos, conforme a etmologia da palavra “xukurús”. Baixos de estatura, musculosos, pés largos, muitos de pernas bambas. Mas ágeis. Trepavam com facilidades às árvores, de cujos frutos silvestres viviam. Não tinham casas, se abrigavam em grotas oiu ocas, sob ramagens de ouricury ou palmeiras. Eram sobretudo sentimentais.
Apresenta como anexo no final do livro a única foto de índios entre quarenta e oito que compõem a obra e que retratam personalidades da cidade, a catedral e inaugurações de obras como a estrada de ferro e desfiles escolares de 7 de setembro. Nessa foto, refere-se a eles como “os três derradeiros caciques xucurús. Estaturas baixas, morenos, braços musculosos, pés achatados, largos. Fabricavam chapéus de palha, jarras, potes e plantavam ervas medicinais”, mostrando com isso a sua impressão do índio como ser do passado.
Luiz Torres apresenta fotos de índios, de utensílios como arco e flecha, cachimbo e roupas ritualísticas usadas no Toré, reforçando a imagem, descrita por Ivan Barros, do índio como ser que no passado vivia da subsistência e fabricando suas próprias armas e utensílios.
O pedido estava embasado no artigo 12 da Lei de Terras de 1850, preconizando que “O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessarias: 1º, para a colonisação dos indigenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de estradas, e quaesquer outras servidões, e assento de estabelecimentos publicos: 3º, para a construção naval”.
A foto não foi copiada para compor este texto, porque a qualidade da impressão da mesma, no livro, não permite uma boa visualização.
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Excelente texto! Parabéns professor Adelson!
Eu tenho um livro sobre os 3 derradeiros cacique xucurus … que são os meus bisavos que é Pai da minha vó, e ela sempre chorar quando vê o livro … ela me.conta várias histórias sobre a aldeia dos xucurus e da santa viva de palmeiras dos índios … eu fico facinada 😍😍😧