A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil, diz CPI
Depois que você terminar de ler este texto e tomar um cafezinho, um jovem negro terá sido morto no Brasil. É este o país que salta do relatório final da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens, que será divulgado esta semana em Brasília: todo ano, 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados. São 63 por dia. Um a cada 23 minutos.
A CPI toma por base os números do Mapa da Violência, realizado desde 1998 pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz a partir de dados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. O último Mapa é de 2014 e contabiliza os homicídios de 2012: cerca de 30 mil jovens de 15 a 29 anos são assassinados por ano no Brasil, e 77% são negros (soma de pretos e pardos).
Depois de sete meses de trabalho, com 21 audiências públicas em sete Estados brasileiros, o relatório do senador Lindbergh Farias (PT-RJ) apresenta um diagnóstico amplo, com números e pesquisas de várias fontes e períodos.
Cataloga histórias recentes e de ampla repercussão, como a de Eduardo de Jesus, de 10 anos, morto por um policial militar no Complexo do Alemão, zona norte do Rio, em abril de 2015. Recupera outras já quase esquecidas, como a de Ana Paula Santos, morta em 2006 em Santos, São Paulo, aos 20 anos, quando estava grávida de nove meses. O marido dela e o bebê também foram assassinados.
“Dudu me disse: Mãe, minha irmã Patrícia está quase chegando, vou esperar na varanda de casa. Eu disse: Vai, filho. Ele foi esperar a irmã e nunca voltou. Logo depois ouvi o estouro, a gritaria, e vi meu filho caído sem vida. Era um menino saudável, ótimo aluno”, relembra a diarista Terezinha Maria de Jesus, mãe de Eduardo.
Um milhão de mortes
Especialistas costumam usar a palavra epidemia para se referir à mortandade de jovens no Brasil, especialmente de jovens negros. De acordo com o Mapa da Violência, a taxa de homicídios entre jovens negros é quase quatro vezes a verificada entre os brancos (36,9 a cada 100 mil habitantes, contra 9,6). Além disso, o fato de ser homem multiplica o risco de ser vítima de homicídio em quase 12 vezes.
Weiselfiz adiantou à BBC Brasil dados preliminares do Mapa que será divulgado este ano: de 1980 a 2014, o número de mortes por arma de fogo no Brasil soma quase um milhão. Entre 1980 e 2014 morreram 967.851 pessoas vítimas de disparo de arma de fogo, sendo 85,8% por homicídio.
“Entre 1980 e 2014 os homicídios cresceram 592,8%, setuplicando sua incidência”, analisa o sociólogo.
Em entrevista por e-mail, por intermédio de sua assessoria, o senador Lindbergh Farias diz que “o principal destaque da CPI foi reconhecer aquilo que os movimentos negros, sobretudo de jovens, vêm dizendo há muito tempo: um verdadeiro genocídio da nossa juventude negra”.
“A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Isso equivale à queda de mais de 150 jatos, cheios de jovens negros, todos os anos. Genocídio da população negra é a expressão que melhor se enquadra à realidade atual do Brasil”, afirma.
Autos de resistência
A CPI destaca a responsabilidade do Estado, seja por ação ou omissão. “Em um ambiente onde a omissão do poder público suscita o aparecimento de grupos organizados de traficantes, bem como de milícias, os índices de violência contra a juventude negra atingem o paroxismo. De outro lado, o crescimento da violência policial contra esses jovens também é uma chocante realidade. Situações envolvendo a morte de jovens negros, sobretudo aquelas cujas justificativas da ação policial se apoiam nos chamados autos de resistência”, afirma o relatório.
Autos de resistência são, com variações de nomenclatura de um Estado brasileiro para outro, registros de mortes ocorridas em supostos confrontos nos quais o policial afirma ter atirado para se defender.
Em caso de resistência à prisão, o Código de Processo Penal autoriza o uso de quaisquer meios para que o policial se defenda ou vença a resistência. Determina também que seja lavrado um auto, assinado por duas testemunhas – daí o nome auto de resistência. Muitas vezes, tais registros escondem execuções em “confrontos” que nunca aconteceram.
Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que, entre 2009 e 2013, as polícias brasileiras mataram 11.197 pessoas em casos listados como autos de resistência – seis mortes por dia, sabendo que o total é subnotificado, pois alguns Estados não repassaram dados ao FBSP.
O relatório também cita uma pesquisa do sociólogo e professor da UFRJ Michel Misse realizada em 2005, no Rio de Janeiro, indicando que, entre os inquéritos de autos de resistência, 99,2% foram arquivados ou nunca chegaram à fase de denúncia.
O delegado de Polícia Civil Orlando Zaccone fez dos autos de resistência o tema sua tese de doutorado em Ciência Política defendida na UFF (Universidade Federal Fluminense).
Ao analisar 314 casos de auto de resistência de 2003 a 2010 no Rio, Zaccone aponta a responsabilidade não só da polícia, mas também do Ministério Público, na construção de uma rotina em que a maior preocupação é saber se o morto era ou não ligado ao tráfico – em vez de esclarecer as circunstâncias de sua morte.
“A folha de antecedentes penais do morto é usada sistematicamente para pedir o arquivamento. Várias instituições se articulam nesse processo, o que caracteriza uma política de Estado na qual se admite que há pessoas extermináveis”, analisa Zaccone.
A criação de um protocolo único para registrar autos de resistência está entre as recomendações do relatório final da CPI, assim como a criação de um banco de dados nacional com indicadores consolidados e sistematizados de violência.
A unificação das Polícias Militar e Civil é outra recomendação. O relator da CPI, Lindbergh Farias, destaca as linhas de atuação no Congresso: implementação do Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens, sugerido em comissão especial da Câmara; aprovação do projeto de lei 4.471/2012 – que extingue os autos de resistência, determina a abertura de inquérito e abre a possibilidade de prisão em flagrante do policial em caso de auto de resistência; aprovação da PEC 51 (que, entre outras medidas, desmilitariza e unifica as polícias).
“Toda polícia deve realizar o ciclo completo do trabalho policial (preventivo, ostensivo, investigativo). Sepulta-se, assim, a jabuticaba institucional: a divisão do ciclo do trabalho policial entre militares e civis. Esta é uma batalha que teremos à nossa frente no Congresso”, afirma Lindbergh.
A PEC 51 e o projeto que extingue os autos de resistência enfrentam a oposição de parlamentares mais ligados a corporações policiais. Muitos argumentam que o projeto 4.471 pode acabar amedrontando o policial que está em campo, em confronto real com criminosos.
Um dos pontos abordados pela CPI é justamente o alto número de mortes de policiais brasileiros, que acabam sendo não só os principais agentes, mas também vítimas da violência. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública citados pela CPI, só em 2013 foram assassinados em serviço quase 500 policiais.
Questionado pela BBC Brasil, o corregedor da PM do Rio, coronel Welste Medeiros, afirmou que a corporação não se omite em apurar crimes de seus membros e tem buscado soluções para otimizar investigações de crimes cometidos por policiais.
Entre elas, destaca parcerias com o Ministério Público, ampliação da atuação da corregedoria da PM e realização de projetos com universidades para análise dos dados de violência policial.
Foi criado o Programa de Gestão do Uso da Força e da Arma de Fogo, por meio do qual os policiais que mais fizeram disparos de armas de fogo nos últimos seis meses são identificados e submetidos a um programa de treinamento que inclui desde simuladores de tiros até avaliação psicológica e metodologia de abordagem de pessoas e veículos.
‘A gente vira número’
A CPI jogou luz também sobre um tema pouco discutido, as mortes de jovens infratores abrigados em unidades para ressocialização. Na audiência pública realizada em 15 de junho de 2015, foram apresentados os dados oficiais do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo): em 2013, 29 adolescentes infratores morreram sob custódia do Estado.
A causa mais comum das mortes foi o “conflito interpessoal” (59% do total), seguido de conflito generalizado (17%) e de uma proporção estarrecedora de suicídios dentro do sistema – 14%. O país tem cerca de 24 mil adolescentes em “situação de privação de liberdade”, ou seja, mantidos em unidades para ressocialização. Segundo o Sinase, 57,41% deles são pretos ou pardos, enquanto em 17,15% dos casos não houve resposta sobre cor ou raça.
País afora, mães negras choram o assassinato dos filhos. Débora Maria Silva, mãe do gari Édson Rogério Silva dos Santos, ainda não viu alguém ser responsabilizado pela morte dele, em maio de 2006, em Santos.
Segundo o relatório da CPI, ele foi um dos mais de 400 mortos numa onda de violência na região iniciada depois que uma facção criminosa assassinou 43 agentes do Estado. Na sequência, uma forte repressão policial fez outras vítimas. De acordo com testemunhas, Édson foi abordado por policiais num posto de gasolina, seguido e assassinado.
“Fiquei até doente depois que ele morreu. Um dia sonhei com meu filho, como uma visão, e ele me dizia: Mãe, vai lutar pelos vivos”, conta Débora, que se tornou uma ativista e criou o movimento Mães de Maio, agregando mães de jovens assassinados na região em 2006.
A ela se juntaram várias outras mães que perderam seus filhos, como Vera Lúcia Santos, mãe de Ana Paula Santos, a jovem assassinada grávida. “Depois de quase dez anos, a gente vai perdendo a esperança. A gente vira número, vira tese. E mais gente continua morrendo. A impressão é de que é um mês de maio contínuo”, lamenta Vera Lúcia.
Terezinha de Jesus, mãe do menino Eduardo, foi embora do Rio depois de receber ameaças anônimas de morte. A investigação da Polícia Civil concluiu que os policiais militares agiram em legítima defesa, mas o Ministério Público não concordou e denunciou pelo crime um policial, que irá a julgamento.
Terezinha agora divide o tempo entre o acompanhamento do caso e os cuidados com o restante da família. Ela tem mais quatro filhos e quatro netos, entre eles o novo Eduardo da casa: um bebê de cinco meses e olhos redondos como os do tio. É filho de Patrícia, a irmã que Eduardo de Jesus esperava na varanda de casa quando foi morto.