Mãe de adolescentes com microcefalia ajuda nova geração a desafiar limites
Quando começou a acompanhar o noticiário sobre a epidemia de microcefalia que foi descoberta no nordeste brasileiro em outubro de 2015, a funcionária pública amazonense Viviane Lima preocupou-se com as mães que, como ela, enfrentariam a condição.
“Só se fala dos problemas de saúde das crianças, mas o que acontece agora? Ninguém falava das possibilidades, do que é possível alcançar”, disse à BBC Brasil.
Viviane, de 35 anos, é mãe de duas adolescentes com microcefalia e desde que decidiu contar sua história no Facebook, foi procurada por mulheres de todo o Brasil para dar conselhos e dicas de estímulo às crianças. Agora, reúne mais de 70 mães em um grupo de WhatsApp.
“Eu tento mostrar que elas vão conseguir resultado com a estimulação das crianças. Digo que eu não aceitei diagnóstico que me deram, que fui atrás do que poderia fazer. Mando vídeos das minhas meninas em casa, falando e cantando.”
A microcefalia, que pode ser causada por problemas genéticos ou infecções que atingem os bebês ainda na gravidez, é uma má-formação do cérebro que dificulta o desenvolvimento do órgão.
Por causa disso, a criança pode ter desde problemas cognitivos, passando por deficiências visuais, motoras e auditivas, ou desenvolver transtornos ouo síndromes mais sérias.
Para tentar auxiliar o amadurecimento do cérebro do bebê – com a possibilidade de que algumas regiões saudáveis assumam as funções de outras, prejudicadas –, os médicos recomendam que os bebês comecem a ser estimulados de diversas formas o mais cedo possível.
Viviane estava no sexto mês de gravidez quando descobriu que sua primeira filha teria microcefalia. “Eu tinha 18 anos. Acho que minha imaturidade não me deixou entender o tamanho do desafio e acabei conseguindo avançar muito com Ana Victória”, relembra.
“Era tudo muito novo e os médicos estavam curiosos para saber o tamanho do comprometimento dela. No dia do parto, estavam na sala o pediatra, o neurologista, a fonoaudiólogo e a fisioterapeuta. No primeiro dia de vida, ela já recebeu os primeiros laudos.”
Massagem, sol e cócegas
Segundo a neuropediatra Vanessa van der Linden, que alertou a Secretaria de Saúde de Pernambuco sobre a epidemia de microcefalia em setembro de 2015, o estímulo é fortemente recomendado para crianças com microcefalia, assim como para aquelas com paralisia e outros tipos de lesões cerebrais.
“É importante começar cedo, antes mesmo que as limitações da criança comecem a aparecer. Como o cérebro de um recém-nascido é imaturo, algumas lesões só se revelam mais adiante”, disse à BBC Brasil.
“O estímulo não cura, mas desenvolve o potencial da criança. Se a lesão é muito grave, ela não vai se desenvolver tanto, mas pode ter uma qualidade de vida melhor.”
Além das sessões de fisioterapia, de fonoaudiologia e outras terapias, recomenda-se que as mães tentem estimular os movimentos e o aprendizado dos filhos em casa. Para Viviane e Ana Victória, estas dicas foram as mais valiosas.
“O primeiro banho que ela tomou no hospital foi com a fisioterapeuta ao meu lado, me ensinando os movimentos para estimular. Esse primeiro contato foi 60% do que minhas filhas são hoje”, afirma.
“Entendi que o banho que eu daria na minha filha não seria igual ao de qualquer criança. Eu estimulava os músculos de Ana Victória no banho. Se ela ia mamar, eu fazia cócegas no pé dela com uma pena. Parece simples, mas isso estimulava a reação do corpo dela e, consequentemente, o cérebro.”
“Nos primeiros meses, eu a levava para tomar sol de manhã, para que ela sentisse a claridade e pudesse estimular a visão, enquanto eu fazia massagem nas pernas dela. O médico tinha me dito que ela não ia andar, mas andou com 1 ano e 2 meses. E hoje, aos 16 anos, até anda de patins”, diz.
Ana Victória nasceu com o perímetro cefálico de 30,5 cm. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, crianças com perímetro cefálico igual ou menor que 32 cm podem ser consideradas microcéfalas.
“Ela nasceu muito rígida, não esticava as perninhas, nem os bracinhos. E também tem uma irritabilidade muito grande. Chora tanto que engole o choro e fica roxa. É assim até hoje, mas sabemos controlar a situação”, diz Viviane.
Segunda vez
Depois que exames descartaram as possíveis infecções, os médicos concordaram que um problema genético havia causado o problema de Ana Victória. A investigação foi confirmada quando Viviane descobriu que sua segunda filha teria a mesma condição.
“Me bateu um desespero porque eu já sabia por tudo o que iria passar. E Maria Luiza nasceu muito mais comprometida, com 27,5 cm de perímetro cefálico”, descreve.
Os problemas de desenvolvimento causados pela microcefalia têm graus variados e, de um modo geral, são mais graves quanto menor é o tamanho da cabeça do bebê ao nascer.
“Quando ela nasceu, ela não chorou e não mamou. Os médicos não sabiam se ela iria aguentar e me disseram ela poderia morrer em 24 horas. Mas quando conseguimos ir para casa, eu já sabia tudo o que tinha que ser feito”, afirma Viviane.
Aos 14 anos, Maria Luiza brinca, fala e faz atividades normalmente. No entanto, têm uma idade mental cerca de 10 anos menor que a biológica, desenvolveu TOC (Transtorno obsessivo-compulsivo) e dislexia, que a impede de reconhecer letras e números. Ana Victória, também disléxica, teve desenvolvimento intelectual maior do que o da irmã.
“Eu coloquei as letras do alfabeto na parede do quarto de Ana Victória, para que ela dormisse e acordasse todo dia olhando para as letras. Ninguém me ensinou a fazer isso, a gente vai tendo ideias. Mas Maria Luiza não respondeu tão bem à mesma técnica.”
Segundo Vanessa van der Linden, crianças com microcefalia causada por fatores genéticos tendem a ter menos problemas motores do que cognitivos. Isso poderia ajudar a explicar o desenvolvimento das filhas de Viviane Lima.
“No caso da microcefalia causada por infecções congênitas, como a toxoplasmose e a zika, os problemas costumam ser mais gerais: funções motoras, cognitivas e visuais podem ser prejudicadas.”
Ela ressalta, no entanto, que há uma variação muito grande de casos. Crianças afetadas por infecções podem ter quadros leves e as que tiveram problemas genéticos podem ser casos graves.
Escola
As duas meninas frequentam uma escola pública em Manaus, apesar de não conseguirem acompanhar o currículo.
“A lei diz que minhas filhas têm que ficar na turma correspondente à idade delas. A escola têm que se adaptar a elas e fornecer um auxiliar responsável pela educação delas na sala de aula. Quando morávamos em Boa Vista (Roraima), isso funcionava bem na escola municipal. Aqui em Manaus, não”, diz Viviane.
“A gente sofre por conta disso, mas focamos mais na importância da socialização. Quando elas vão para a escola, estão felizes. Se elas só conviverem com crianças que têm a idade mental delas, não vão desenvolver o comportamento esperado da idade real.”
Em casa, as meninas (de 16 e 14 anos) têm a companhia da irmã, Júlia, de 9 anos, filha do segundo casamento de Viviane, que nasceu saudável.
“No nosso dia a dia não existe deficiência. Claro que é preciso ter um pouco mais de atenção, mas elas são como eu”, disse a menina à BBC Brasil.
“Eu brinco muito com elas, só que as brincadeiras são meio esquisitas. Na brincadeira de pegar, Maria Luiza puxa o meu nariz, faz uma cosquinha que dói mais do que faz cosquinha… (risos).”
Júlia diz querer ser médica para cuidar das irmãs na vida adulta. “Minha intenção é que elas morem comigo, porque vai ter um tempo que os meus pais não vão estar em condições de cuidar delas.”
‘E agora?’
Quando descobriu a microcefalia de Ana Victória, Viviane havia acabado de passar na primeira fase do vestibular de administração de empresas, mas não conseguiu ir até o fim do processo seletivo. “Para mim foi difícil, mas tive que fazer uma escolha e hoje não tenho uma profissão. Sempre trabalhei no governo”, afirma.
“Vivi períodos críticos com elas, em que tive que ficar em casa mesmo. Mas agora que elas estão maiores, pretendo retomar os estudos.”
Com apoio familiar e a maior parte dos tratamentos custeados pelo plano de saúde, ela reconhece que sua situação foi mais confortável do que a de muitas mães que enfrentam o problema.
“Aqui em Manaus não temos Apae nem AACD (que atendem crianças com diversos tipos de deficiência). O que o Estado te dá é quase nada, você tem que ter plano de saúde. Mas eu me assustei com as histórias das mulheres que entraram em contato comigo pelo Facebook. Eu não sofri nem metade do que elas sofreram”, afirma.
“Eu já chorei, fiquei sem dormir, me senti a pior mulher do mundo, mas tive que aprender a viver um dia de cada vez. Eu sonhava que estava no velório das minhas filhas. Você estimula, passa por todo um processo e a criança consegue superar uma limitação. Mas todo o tempo na nossa cabeça, a pergunta é essa: ‘E agora? Qual o passo seguinte?’.”
Por causa do bem-estar físico adquirido com anos de estímulos constantes, nenhuma das duas meninas precisa, atualmente, de sessões de fisioterapia. No entanto, Viviane diz que “até hoje descobre” novos sintomas associados à microcefalia.
Mesmo assim, ela acredita que é essencial dar esperança à nova geração de mães que enfrentarão este desafio. “A gente tem que levantar a cabeça. Essas crianças não receberam uma sentença de morte.”
Fonte: G1