Maconha ganha livro sobre sua história no Brasil
Pito de pango, diamba, cânhamo da Índia, cigarros da Índia, cocaína do caboclo, veneno verde e ópio de pobre. Todas estas são denominações da Cannabis sativa, ou maconha. Os muitos nomes da planta ao longo da História ajudam a traçar o que pensavam os brasileiros a respeito da droga, que aportou aqui nos primeiros anos após o Descobrimento. Primeiro era um hábito dos escravos, depois, um produto importado da Índia e também consumido pela população rica no formato de remédios. Em seguida, foi demonizada no início do século XX como “mais perigosa do que o ópio.” A fala, do médico Pernambuco Filho, poderia ter sido só mais uma afirmação absurda para os dias de hoje, mas, proferida durante uma reunião da Liga das Nações, em 1925, acabou tendo impacto mundial. A trajetória desta droga cercada de controvérsia é o tema do livro do historiador Jean Marcel Carvalho, a “História da maconha no Brasil”, da editora Três Estrelas.
Foi difícil o acúmulo de dados sobre o tema?
A documentação é pouca e dispersa. Encontra-se, por exemplo, uma referência à cannabis no relato de um viajante, mas depois só se vai ver algo sobre ela nos arquivos da Inquisição. No século XIX de vez em quando ela aparece em decisões da Câmara, ou em livros médicos. A partir do século XX são muitas as informações em revistas. É uma documentação muito dispersa e quando isso acontece é muito difícil enxergar tendências na relação da sociedade brasileira com a cannabis, que foi o foco do meu trabalho.
O senhor fala muito da relação da cannabis com os negros. A pesquisa sustenta que a droga teria chegado com eles?
A História não é uma ciência exata. Na verdade, talvez nem seja ciência. É um discurso articulado, mas impreciso. Os negros podem ter trazido. Eram conhecedores do hábito. A África praticava esse hábito. Mas marinheiros portugueses também conheciam a droga. A questão é que com o tempo se consolidou que os usuários frequentes da cannabis eram os escravos africanos. Mas esta era uma constatação, da mesma forma que se fala de um hábito qualquer, como fazer churrasco no fim de semana. Era só um fato, não um problema de saúde pública. Não preocupava ninguém. Só virou uma questão social no século XX.
Do aspecto legal, vemos decretos antiquíssimos do governo estabelecendo multa para escravos que fumarem. Há um de 1830 que trata disso.
Era uma proibição ingênua. A ideia era impedir o escravo de fumar para não prejudicar o seu trabalho. No lazer não havia restrição. Não havia preocupação com o efeito social. A lei está sempre vindo a reboque desta discussão, sempre sendo ditada pela sociedade. As drogas neste sentido viveram algo parecido com o que ocorre com a tecnologia hoje.
O Brasil teve um papel de protagonista neste sentido, com a fala de Pernambucano Filho na Liga das Nações, em 1925. Por que nos prestamos a este papel?
O Brasil tem uma forte tradição da psiquiatria eugenista, comprometido com uma ação muito forte sobre o meio social. Tivemos um pioneiro que se chamava Rodrigues Dória. Ele apresentou os primeiros artigos sobre os perigos da cannabis e eles se tornariam referência. Pernambuco Filho foi um discípulo dele. Os dois queriam uma ação do governo brasileiro contra a cannabis, e para isso precisavam do respaldo internacional.
Qual a lógica que levou a ele dizer que a maconha era mais perigosa que o ópio?
Devemos entender a mentalidade do médico no início do século XX. O discurso eugenista era muito forte. No Brasil e no Egito, os dois que se posicionaram mais fortemente pela proibição da cannabis, o consumo de ópio era quase inexistente. Os pobres no Egito usavam haxixe e isso caracterizava um problema social. No Brasil, a droga se associou à figura do negro. Isso, na visão do eugenista, tinha um impacto gigantesco e teria mais ainda nas gerações futuras. Na visão deles, havia um contingente enorme de descendentes de escravos que eram consumidores ou potenciais consumidores da droga. O discurso comum era que essa gente comprometeria o futuro do Brasil. A cannabis é um detalhe do discurso. A visão eugênica ia além, passando pela educação, literatura e outras áreas. Para estes médicos fazia sentido associar a maconha uma degradação do usuário.
Em 1932 o médico Leonardo Pereira diz que o que estava em jogo era a “pureza da raça.”
Exatamente. A ideia de progresso e branquização da raça estava associada. Na visão deles, a cannabis poderia colaborar para o atraso do país ou manter um indivíduo como um excluído social. Mas não podemos julgar muito. A época era propícia a este tipo de pensamento. Ela abraça esse discurso repressivo.
Mais tarde isso é substituído pelo discurso de que a maconha era algo que vinha como moda dos países ricos. Por que a mudança?
A volta da maconha nas décadas de 1960 e 70 do século passado foi muito imprevisível. A ideia dos médicos até então era de que seria possível evitar que o consumo chegasse às classes altas. Mas o uso retornou de uma forma que desafia o discurso eugenista. Como enquadrar os atuais usuários dentro deste discurso? Aí aconteceu algo muito curioso, que foi a radicalização dos efeitos da droga. Um lado dizia que a droga ia acabar com a juventude. Outro que iria elevar a mente das pessoas. Os dois grupos atribuíam à maconha poderes extraordinários. Ambos lidavam com uma ideia exagerada do poder da droga. A questão da legalização só começa a avançar quando este extremismo se perde.
Além do papel dos médicos, o senhor comenta sobre o poder da imprensa neste processo.
As matérias que consultei da imprensa mostram que não há um discurso sistematicamente hostil. Ao mesmo tempo em que a imprensa cria um certo pânico em torno do assunto, transmite certa sensação de inevitabilidade. As pessoas perdem a dimensão de como esta ideia foi importante para forçar as pessoas a discutir a droga. Quando há uma matéria contando que o John Lennon fumou maconha no Palácio de Buckingham, é uma forma de propaganda da cannabis. Cria uma aceitação.
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