Tabu alimenta epidemia de cesáreas no Brasil
“Uma vez cesárea, sempre cesárea.” A frase, dita pelo pesquisador Edwin Cragin, em 1916, era para alertar seus colegas obstetras sobre o risco de se fazer uma cesárea e sobre como deveriam evitá-la, especialmente em mulheres grávidas pela primeira vez.
Hoje, 99 anos depois, ela continua, segundo especialistas, sendo tirada de contexto e usada para alimentar o tabu de que mulheres não poderiam ter um parto normal se já tiverem passado por uma cesárea.
E em um país como o Brasil, que tem o mais alto índice de cesarianas do planeta, essa concepção tem um impacto ainda maior e mais perigoso, alimentando uma epidemia que já faz com que 84% dos partos na rede privada sejam cesáreas (na rede pública, é de 40%), enquanto o recomendado pela OMS é de 15%.
Embora tenha índices mais baixos que os brasileiros, os Estados Unidos também enfrentam desafios semelhantes para baixar do patamar de 32,8% de cesáreas, já que muitas das razões que fizeram esse índice subir por lá são as mesmas que temos aqui.
E um desses pontos em comum é justamente o tabu do parto normal após cesárea ou VBAC – sigla em inglês para Vaginal Birth after Cesarean Section (parto vaginal após uma cesárea), que também é usada no Brasil.
Proibido
O estudo “Listening to Mothers” (Ouvindo as Mães), feito com mais de 2.400 grávidas nos EUA pela organização Childbirth Connection, concluiu que muitas das cesáreas estavam ligadas ao acesso restrito ao VBAC.
“É claro que aumentar as expectativas (de que sempre é possível um VBAC) não é algo saudável para as mulheres”, afirmou à BBC Brasil Carol Sakala, doutora em saúde pública e bem-estar materno da ChildBirth Connection. “Mas é completamente inaceitável que não se discuta a possibilidade de um VBAC com as mães. É inaceitável pressionar uma mulher a ter outra cesárea desnecessária diante da quantidade de evidências que temos hoje mostrando que VBACs podem ser seguros.”
Carol ressalta que o estudo mostrou ainda que entre mulheres com cesáreas anteriores, quase a metade (48%) estava interessada em um parto normal, mas 46% tiveram essa opção negada. Em 24% dos casos, isso ocorreu por relutância do médico e, em 15%, os hospitais em que elas dariam à luz simplesmente não faziam VBACs.
‘Fui chamada de louca’
E foi exatamente esses empecilhos que a enfermeira e professora da Universidade Federal de Brasília (UnB) Mônica Chiodi de Campos enfrentou ao ter seus três primeiros filhos – todos por cesárea – até conseguir ter seu quarto filho por parto normal, um VBA3C.
“Me colocaram todo o tipo de barreira possível. Foi muito difícil encontrar uma equipe para me auxiliar no parto. Fui chamada de louca por muita gente”, conta.
“Na minha primeira gravidez, minha bolsa rompeu com 38 semanas e passei por uma cesárea ‘de urgência’. No meu segundo filho, meu ginecologista da época já me despejou a famosa ‘uma vez cesárea, sempre cesárea’, e assim foi. Na terceira gestação, achei que seria diferente, mas, ao ser atendida na maternidade por uma médica plantonista e por ter duas cesáreas, minha sentença já estava decretada.”
A enfermeira conta que, quando engravidou pela quarta vez, encontrou um médico que, depois de muita insistência, topou lhe acompanhar. “Durante a gestação, pesquisamos muito sobre VBA3C, que ele nunca tinha feito. Há pouca literatura sobre isso no Brasil.”
“Sofri muita pressão, mas me mantive firme. É claro que, se houvesse qualquer problema, faria uma cesárea. Mas meu parto foi ótimo e meu filho (que tem 3 meses) é super saudável. Ao saber da história, várias mulheres me procuraram, pedindo dicas de VBAC. Muitas nem sabiam que podiam fazer parto normal depois de uma cesárea.”
Terrorismo
Para a obstetra e professora da UFSCar Carla Andreucci Polido, aos poucos as brasileiras estão indo atrás de informações sobre esse procedimento, mas ela acredita que ainda haja muito “terrorismo” sobre risco de rotura uterina após cesarianas.
Segundo Carla, estudos mostram que o sucesso de um VBAC após duas cesáreas pode ultrapassar 70% e que a segunda, terceira ou quarta cesarianas têm riscos de complicações semelhantes à prova de trabalho de parto após cesariana.
Já para o ginecologista Etelvino Trindade, presidente da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), o risco de rotura uterina é preciso estar bem claro para a mãe, já que se isso ocorre há chances de morrerem mãe e bebê.
Os dois médicos, no entanto, concordam que ampliar a discussão sobre o VBAC é um dos caminhos para se combater a epidemia de cesárea por aqui.
“Entender que é uma possibilidade segura é uma constatação especialmente digna de nota em nosso país”, afirmou Carla, em relação ao fato de Brasil ter a maior taxa de cesáreas do mundo. “Isso porque é cada vez mais provável que mulheres já cheguem aos obstetras com cicatrizes uterinas anteriores.”
Tudo online
Mas como fazer para que o número de partos normais após cesáreas entre as brasileiras se eleve?
Se formos novamente comparar nosso cenário com o americano, vale considerar algumas medidas que elevaram a taxa de VBACs de 8,3% em 2007 para 10,2% em 2012.
As principais iniciativas vêm de organizações independentes, que divulgam informações sobre o procedimento, auxiliam grávidas interessadas no tema e publicam na internet taxas de VBACs de milhares de hospitais e médicos país afora.
Sites como o CalQualityCare comparam os índices em todas as cidades da Califórnia. O site VBACfinder também faz um levantamento na maioria dos Estados americanos. Outra fonte é o e-book Vaginal Birth Bans in America: The Insanity of Mandatory Surgery, que traz um mapa interativo com hospitais que não atendem mulheres com cesáreas prévias que querem tentar um parto normal.
É ou não cesarista?
No Brasil, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) deu recentemente um primeiro passo nessa direção.
Uma das resoluções para estimular o parto normal e reduzir as cesarianas na rede privada (que atende hoje 23,7 milhões de brasileiras) prevê que as mulheres possam solicitar aos planos de saúde os porcentuais de cirurgias cesáreas e de partos normais por estabelecimento de saúde e por médico. O dado deve estar disponível em 15 dias, sob pena de multa de R$ 25 mil.
A medida foi criticada por algumas classes médicas, que disseram que é uma invasão na autonomia do médico.
“Invasão é quando uma mulher é cortada sem necessidade”, afirma Carol Sakala, da ChildBirth Connection. “E a autonomia deveria estar com a mulher. Sempre que são publicados os dados sobre os procedimentos usados no parto, isso sempre melhora a situação e o atendimento de mães e bebês”
Para Carol, seria ainda mais útil se as barreiras fossem eliminadas, e os dados estivessem à disposição para todos online, sem a necessidade de pedir para o plano de saúde e esperar.
Segundo a ANS, essa possibilidade está sendo estudada para o futuro.
No entanto Trindade, da Febrasgo, diz que sua preocupação é com o fato de o médico poder ficar “estigmatizado” ao ver sua taxa de cesáreas se tornar pública.
“A percepção das taxas pode ficar enviesada e ter distorções, no caso de um médico especialista em casos complicados, de alto risco (que podem ser indicação de cesárea). Ele pode ser chamado de cesarista, como costumam dizer. E isso é incômodo para alguns”, afirma o ginecologista, em referência a como são chamados médicos com altíssimos níveis de cesarianas.
Karla Coelho, gerente de assistência à saúde da ANS, rebate essa opinião, dizendo não creditar que haja médicos com 80% de casos complicados. “Isso é uma reversão da lógica. Não se pode banalizar essa discussão.”
Trindade atribui a epidemia de cesárea, em parte, ao temor dos médicos brasileiros de serem processados.
“Os médicos estão mais reticentes em querer assumir um risco maior”, disse, acrescentando que um congresso em março vai discutir medidas para se reduzir as cesáreas e apontar propostas.
Questionado se essas propostas não deveriam estar sendo feitas há anos, ele afirmou que “muitos médicos estão em sua zona de conforto e, embora concordem que é preciso reduzir as cesáreas, não se preocupam muito com isso”.
BBC