Artigo: Necrópole

No Dia dos Mortos visitei a necrópole onde estão sepultados os meus entes queridos. Vi sepulcros ornamentados, caiados, desbotados, caídos, esquecidos. Ouvi preces, prantos, murmúrios e gritos. A dor da saudade materializada em gemidos ecoava daqueles aflitos que jogavam flores naturais e artificiais sobre centenas de jazigos construídos em diversos estilos. E sob o clima pesado do ambiente, pude ler apenas dezenas entre milhares de mensagens sepulcrais estampadas em placas de mármore. Eu estava perplexo diante da diversidade de informações que captava a cada momento que passava na cidade dos ex-viventes. Nomes, sobrenomes, tragédias, doenças, poesias, pensamentos, homenagens. Está espalhada naquele lugar, aparentemente fúnebre, uma parte desconhecida da nossa história – uma fonte extraordinária de pesquisa.

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Milhares de velas derretiam e as parafinas ganhavam novas formas. Eram desenhos de lágrimas, rostos, pessoas, anjos, nuvens, estrelas, animais e outras tantas figuras traçadas pela minha fértil imaginação. Eu assistia concentradamente ao espetáculo promovido pelas velas, em homenagem aos mortos, quando fui interrompido por um ancião que buscava informações sobre como localizar o túmulo de sua esposa. Ele vestia uma camisa preta e carregava na mão direita uma sacola com flores naturais. Cumprimentei-o e fiz algumas perguntas objetivando ajudá-lo. Confesso que fiquei mais perplexo ainda com a história que ouvia daquele velhinho que falava com dificuldades por conta da idade avançada.

– Fiquei viúvo aos 20 anos de idade e ontem completei 91. Desde o ano de 1941, trago, ininterruptamente, flores naturais para a minha amada esposa. No início eu vinha em companhia de dois filhos gêmeos que ela me presenteou minutos antes da sua partida para a morada eterna. Naquela época os avanços da medicina caminhavam a passos de tartaruga. Hoje tudo ficou mais fácil. Criei-os com todo o amor do mundo. Com a mesma intensidade do amor que ainda hoje sinto por ela. Mas o tempo foi passando e Deus os chamou, um a um, para a eternidade. Eles foram para junto da mãe. Agora sozinho, sem parentes e amigos, porque todos já se foram, continuo a trazer flores para a minha inesquecível e eterna namorada. Sentado sobre o seu túmulo, em Dia de Finados, passo horas a fio rezando, conversando e renovando o meu voto de amor perpétuo feito no altar, no dia do nosso casamento, no ano de 1940. E hoje, quase sem a minha visão, prejudicada por glaucoma, preciso da sua ajuda para que eu possa chegar ao berço onde dorme a minha eterna esposa e onde em breve dormirei, também. O glaucoma está roubando a minha visão, porém não consegue roubar a nítida imagem que guardo da primeira e única mulher da minha vida. O Pai a levou, mas deixou guardado comigo um sentimento puro e verdadeiro que posso chamar de eterno amor. Mas, nos dias de hoje, a coisa não é mais assim. Para muitos casais o amor morre primeiro que a pessoa amada. Que pena! Quanta desesperança!

Traído pela emoção, segurei carinhosamente a mão esquerda daquele velhinho e o conduzi até o local pretendido. Deixei-o ali com a imagem imortal que conserva da amada esposa e caminhei em direção ao jazigo da minha família. Fui logo percebendo que nele havia ausência de flores e velas. Quem sabe, talvez, motivada por concepções religiosas ou de vida. Porque neste mundo de diferenças tantas, uns cultuam os mortos, outros os vivos, alguns coisa nenhuma e quase todos amam os perecíveis bens materiais. Porém, aquele anônimo ancião, com quase cem anos de idade, continua visitando a necrópole para cultuar e regar o seu imortal amor.

Geralmente passamos pela vida e deixamos (ou levamos) fragmentos importantes das lições que aprendemos. E hoje, em pleno Dia dos Mortos, aprendi que a necrópole não guarda somente corpos em decomposição, esqueletos, tumbas, covas rasas, cheiro de vela, silêncio sepulcral, choro, tristeza e saudade. A necrópole guarda, também, flores e histórias, narra fatos, identifica pessoas e famílias, perpetua sentimentos e conserva as mais diversas e sinceras declarações de amor.

 

Hélio Fialho

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