Copa escancara abismo entre o que o Brasil é e o que poderia ser
Copa do Mundo contrasta o “Brasil em potencial” com o “Brasil real”
Algumas pessoas veem a obsessão dos brasileiros com a Copa do Mundo como um caso de alienação. Eu confesso que não posso concordar inteiramente com isso.
Não é apenas o valor estético das pinturas nos muros ou das deslumbrantes bandeirinhas verde e amarelas enfeitando as ruas. Muito mais importante do que isso é a questão do que está sendo celebrado.
O clima de festa nas ruas me lembra um pouco uma versão tropical de um Jubilee, uma festa que acontece no meu país de origem para comemorar 25 anos de monarquia ou algum marco político importante lá.
Mas a Copa do Mundo não é para celebrar alguma festividade política (apesar de os governos acabarem se aproveitando dela) e nem é uma homenagem para algum aristocrata da família real. Na Copa do Mundo, os brasileiros estão celebrando eles mesmos.
O momento do hino nacional antes dos jogos, quando a câmera passeia pelos jogadores, é sempre um momento mágico. Como uma janela para a alma da nação, o que se vê são legítimos representantes (masculinos) do país.
Os rostos são, em sua maioria, de pessoas com origens humildes, com alguns representantes da classe média também. O futebol é uma atividade que não impõe barreiras para quem quiser entrar e isso cria uma verdadeira meritocracia – não importa qual escola essas pessoas frequentaram.
A Copa do Mundo, então, é uma espécie de “Nações Unidas” para o homem comum. Ser o melhor do mundo nessa atividade – o único país a conquistar a taça cinco vezes – é algo que vale a comemoração.
A Copa do Mundo é o momento em que o Brasil aparece para todo o planeta por razões positivas: como o país a ser invejado, o país que tem o melhor estilo.
E isso coloca uma questão: como o Brasil seria se o mesmo conceito de meritocracia aplicado no futebol fosse aplicado também em outras áreas da sociedade?
Nas famosas palavras do cientista social americano Janet Lever, a seleção brasileira serve como um “registro vivo do potencial da sociedade”.
Mas, claro, há um enorme abismo entre potencial e realidade. E é exatamente por essa razão que a Copa do Mundo de 2014 está se provando tão “explosiva”. Na tensão permanente entre potencial e realidade, o caso típico da Copa do Mundo no Brasil destacaria o primeiro.
Mas sediar a versão 2014 está deixando todos os holofotes voltados para a abundância deste último. Se normalmente a competição apresenta razões para o Brasil ser invejado, desta vez – como o mundo inteiro está assistindo atentamente e nervosamente – está fornecendo os motivos para o país ser criticado, temido ou até mesmo ridicularizado.
A experiência é algo semelhante a um pontapé no traseiro prolongado da frequentemente frágil auto-estima nacional.
A falta de planejamento, a falta de segurança no trabalho, o fato de deixar as coisas para a última hora, a dificuldade de executar as tarefas de forma coletiva, as promessas não cumpridas, as decisões pouco eficientes, a burocracia excessiva, a infraestrutura precária, o oportunismo de curto prazo, as coisas custando muito mais do que deveriam – tudo isso são componentes diários na vida do brasileiro, que agora estão chamando a atenção do mundo por causa da Copa.
As insatisfações populares com tudo isso provocaram os protestos, que têm atraído o interesse da mídia internacional, que, por sua vez, dá mais cobertura para as causas do descontentamento, aumentando, assim, a vergonha e causando ainda mais insatisfação.
Parece um ciclo vicioso. Mas pode até ser um ciclo virtuoso.
Já que todos sabemos que os problemas existem, o que temos a ganhar escondendo todos eles?
É muito mais útil reconhecê-los e discutir soluções para eles. O desejo furioso de rejeitar todas as críticas estrangeiras pertence a uma ditadura. A democracia deve ser capaz de algo mais maduro.
Existe um sentimento esquizofrênico conforme a abertura da Copa se aproxima. De um lado, existe o movimento de protesto. Do outro, a venda de ingressos foi excepcional, com os brasileiros comprando muito mais do que qualquer outra nacionalidade.
Mas não há nenhuma necessidade de ver isso como uma contradição absurda. É completamente possível manter as duas posições ao mesmo tempo. Torcer pelo time comandado por Luiz Felipe Scolari em uma comemoração pela seleção brasileira e pelo potencial do país – e, ao mesmo tempo, desejar que os protestos e o processo democrático possam melhorar a realidade nacional.
BBC Brasil