Estupro, torturas e abusos: indígenas guaranis relatam barbárie em meio a conflitos na divisa entre PR e MS

Em meio a conflitos por disputa de terra que se arrastam por décadas, indígenas guarani kaiowá viveram cenas de terror nas mãos de pistoleiros no município de Iguatemi, em Mato Grosso do Sul, nos últimos oito anos. Relatos de violência física e sexual sofrida por mulheres — duas delas estavam grávidas —, feitos ao GLOBO, vêm à tona agora e revelam a atrocidade com que capangas de fazendeiros agem desde o acirramento da disputa pela posse na Terra Indígena (TI) Iguatemipeguá I.

Lideranças guarani kaiowá denunciaram às autoridades abusos sexuais de mulheres da etnia em ocasiões diferentes feitos por pistoleiros em Iguatemi entre 2016 e 2023. Os incidentes também foram registrados em relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) que, somados, totalizam 23 queixas de violência sexual contra indígenas no país no ano passado. Dois desses relatos feitos à Polícia Federal, aos quais O GLOBO teve acesso, dão conta de uma série de abusos e torturas cometidos por supostos jagunços de proprietários de terra locais, em novembro de 2023. Antes delas, em setembro de 2016, Janete (nome fictício para preservar sua identidade) contou que estava grávida de oitos meses quando foi estuprada por pistoleiros em um das tentativas de retomada da TI Iguatemipeguá I.

De acordo com os relatos, o grupo já estava há seis dias dentro da ocupação quando foi surpreendidos por pistoleiros. Ela estava acompanhada de sua irmã caçula, que tinha 12 anos na época. Com a voz embargada, Janete contou à reportagem que homens mascarados tentaram estuprar sua irmã e ela que, ao tentar impedi-los para proteger a caçula, acabou por sofrer a violência.

Segundo a mulher, os pistoleiros também bateram forte em sua barriga com a ponta das armas que usavam. As agressões foram tão intensas que a fizeram perder o bebê que estava esperando.

— Eu não consegui correr porque minha barriga estava muito pesada, e por isso que me pegaram. Todos eles estavam de máscara e bateram em minha barriga três vezes com a ponta da arma. Eu chorei e a minha irmã caçula estava junto comigo. Eles queriam estuprar e daí para protegê-la, eu me deixei estuprar. Por isto me bateu antes, judiaram mesmo. “Agora vamos fazer à vontade”, um deles falou. Aí eu segurei a minha irmã, segurei e puxei ela pelo braço do meu lado enquanto um dos homens a puxavam pelo outro braço. Aí falei para largarem ela, que era minha irmã caçula, para não fazerem aquilo, porque era uma criança e iam matá-la, e eu chorei muito nesse momento e assim me violentaram gritando pra nós “vamos matar todo mundo”. Amarraram todo mundo, as crianças também, mas só bateram nelas. É isso que eu queria passar pra vocês. Eu quero que vocês mandem minha fala para suas autoridades, porque na época ficamos com medo de denunciar. Ninguém veio conversar com a gente. Nem autoridade lá em Brasília, nem nada — conta Janete.

‘Uma perdeu o bebê, morreu dentro dela de tanta violência’

Em outro depoimento obtido pelo GLOBO, por meio de tradutores da língua kaiowá, mais relatos de abusos e violências, desta vez feitos à PF há oito meses e até hoje sem investigação, conforme documento que comprova a denúncia. Nele, a guarani kaiowá Ana (outro nome fictício), conta que se prontificou em novembro do ano passado a participar da retomada de parte da TI Iguatemipeguá I, quando foi alvo de pistoleiros da região, que a agrediram e a violentaram de diversas maneiras. Ana relata que foi amarrada, torturada e abusada sexualmente por pistoleiros.

— Eu fui violentada e agredida em dois momentos. Sofri o primeiro ataque em novembro do anox passado. Fui amarrada e torturada. Minha perna está machucada até hoje, não consigo mais andar direito. Fiquei em casa oito ou nove dias deitada, sem conseguir nem se levantar. Nós estávamos em quatro mulheres e um homem, ficamos todos machucados. Uma perdeu o bebê, morreu dentro dela de tanta violência. A outra teve hemorragia. São sempre as mesmas fazendas — afirmou sem dizer os nomes das propriedades.

Em seu depoimento à PF, afirma Ana, não se preocuparam em fazer muitas perguntas, mesmo com uma tradutora dando apoio. A mulher cita ainda outro momento em que foi baelada no braço.

— Ainda no dia 10 de abril deste ano, às 7 horas da manhã, veio aqui um pistoleiro. Ele veio pela estrada e entrou na minha casa, queria me agarrar, estava eu e minha filha. Eu estava lavando a roupa da criança e quando fui pendurar para secar veio correndo aquele pistoleiro, um que é ou da fazenda Cachoeira, ou da Cambará ou da Vera Cruz. Eu corri ao redor da minha casa para fugir dele, mas eu caí e ele atirou no meu braço. Eles vieram aqui me atacar, essas pessoas são das fazendas. Eles me disseram que queriam matar três indígenas e depois entregariam a terra. Eles atiraram em mim com bala normal, mas atiraram mais de oito balas de borracha na minha casa. Eu entreguei tudo para a polícia, mas eles não querem nos ajudar. A polícia só me disse que quando isso acontecer era para eu correr e me esconder. Depois de ser baleada, fui ao hospital em Iguatemi e eles não me atenderam, tive que ir na cidade de Naviraí, onde me deram os pontos e fizeram curativo. A polícia me disse para correr e me esconder, mas onde? Eu estou na minha casa. A Polícia Civil e a Militar devem estar ligadas com os fazendeiros, eu sei disso. E nada fizeram. Não é fácil viver assim, não é fácil — lamenta.

— Eu posso morrer, mas a minha família vai continuar na luta por essa terra, e vai morar nela. Tenho certeza, eu vou usar essa terra, eu vou morrer, mas eles vão ganhar essa terra. Meus filhos vão viver nessa terra.

‘Pisaram na minha barriga e eu tive que ganhar cesárea’

Além de Ana, outra indígena, que faz parte do tekohá (como são denominados seus territórios) Pyelito Kue, contou as violências que sofreu também na mesma ocasião que Ana. Paula (nome fictício) estava grávida de dois meses quando foi agredida por pistoleiros, também nos ataques em novembro do ano passado, revela a mulher.

— Os pistoleiros pisaram na minha barriga e me machucaram também — afirmou Paula que precisou passar por uma cesárea de risco para ter o bebê, por conta dos ferimentos.

— Agora mesmo que eu falei para o cacique, para o líder que a minha perna, estou sentindo muito até agora, que bateram, bateram na outra menina também. E também eu me escondi quando começou o tiro, eu me escondi embaixo da lama para proteger meu bebê naquele dia. É muito triste o que aconteceu naquele dia. E até agora está sempre fazendo tiro por aqui. Minha bebê nasceu traumatizada quando dorme até agora. Ela fica assustada. Por isso que eu ganhei cesárea também, que eu peguei pressão alta, né? Quando eu ouvi um monte de tiro eu peguei pressão alta. Aconteceu naquele dia muito tiro, bateram em nós. É, eu vi também a menina que estava pegou na minha frente, bateram nela, né? Mas eu fiquei escondida embaixo da lama e ali que os pistoleiros me procuraram, os capangas. E pisaram na minha barriga porque eu me escondi debaixo da lama. E procuraram de dia até de noite os outros, escondidos para não matar a gente. Mas falaram que mataram alguns. Me mataram também naquele dia. Porque pisou na minha barriga. E deu três tiros perto de mim e o baraulho fez sair sangue do meu nariz. E naquela hora o capanga do pistoleiro falou assim: “Sim, eu já matei uma aqui e eu vou buscar a corda e nós vamos jogar lá no rio ou nós vamos levar no Paraguai?” E depois foi de novo, foi buscar corda. E então quando ele foi, eu saí dali do outro lado, para ficar embaixo da lama. Mas muito bicho. Tem sucuri lá, mas eu fiquei lá para poder me proteger. Passei fome, fiquei na lama com chuva — relembra.

— Mas tudo já passou e eu sobrevivi. Eu estou aqui. Mas eu não vou desanimar pela nossa terra, mesmo. Eu quero mesmo é pedir para vocês agora: demarcação já! Não tem mais espaço para plantar mandioca, para plantar qualquer coisa. Para criar mais uma galinha, para criar nada, aqui não tem mais espaço. E quando nós plantamos não dá nada, né? Por isso que nós queremos demarcar. Eu te peço para vocês nos ajudarem para demarcar a nossa terra — finaliza.

No entanto, a reportagem obteve um despacho da delegacia da PF de Naviraí (MS), em que o órgão afirma que as investigações sobre as denúncias do povo guarani kaiowá feitas em novembro do ano passado “estão em andamento, sendo realizadas diligências pelos policiais federais”. Ainda no documento — assinado pelo delegado federal Adenilton Figueiredo do Carmo — a PF desconsidera que houve negligências dos órgãos públicos em relação às denúncias de abuso sexual feita pelas mulheres, já que os possíveis crimes “não produziram lesões a serem constatadas por meio de atendimento médico” .

O despacho menciona que foram tomados depoimentos de todas as vítimas, os quais O GLOBO teve acesso na íntegra. Neles, as mulheres repetiram os mesmos relatos que fizeram à reportagem. Constam também as falas de outras quatro vítimas indígenas, um homem e três mulheres.

A advogada especialista em Direitos Humanos Talitha Camargo — que é parte ativa na defesa dos indígenas do tekohá Pyelito Kue e que faz parte do Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos, do governo federal — emitiu uma petição, assinada em conjunto com o advogado criminalista e professor de direito penal, Pedro Lazarini Neto, em que denuncia os crimes contra a comunidade guarani kaiowá.

— As mulheres indígenas relataram que alguns membros da equipe médica do hospital as chamaram de invasoras, e por conta disso houve uma retração de confiabilidade das pacientes vítimas relatarem as violências sexuais e agressões físicas. Após contato com o Ministério da Saúde, as indígenas foram atendidas novamente, mas ainda assim sem o acolhimento devido. Entendemos que o problema é estrutural permeado por estereótipos, o que nos faz concluir que não há respeito à dignidade humana dos povos indígenas no Brasil, e que entre os 33% do crescente de violência contra a mulher do último Anuário de Segurança Pública provavelmente é muito maior, pois como exemplo, o presente caso caiu na invisibilidade da estatística. Já que sequer investigação foi realizada — afirma Talitha.

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